Era sempre um momento tenso, no recreio da escola, o da escolha dos elementos para a equipa… e não, não me refiro aos jogos de futebol. Nesses, e naquela época, ainda tinha lugar garantido, porque a turma tinha poucos rapazes e ainda menos reforços femininos interessados em bater cantos à maneira curta (ou de uma maneira qualquer, normalmente descrita como “meia bola e força). Mais difícil do que ser ala esquerdo na equipa do 5º C era conseguir lugar nas Spice Girls do intervalo grande.
O casting era exigente. Todas queriam ser a Emma Bunton. Eu deixava as loiras digladiarem-se, enquanto esperava a minha vez. A eleição de Geri Halliwell também era concorrida, e o lugar de Mel Brown ia sempre para uma colega minha com cabelo muito semelhante. Sobravam sempre Mel C e Victoria Adams, e não sendo eu uma Sporty Spice, que é como quem diz, uma aluna razoável a educação física, deixava ficar a Mel C para quem sabia fazer um salto engrupado no trampolim, e ficava com os restos. Neste caso, a futura mulher de David Beckham. Na altura ninguém a queria, nem num simples recreio de uma escola lisboeta, quanto mais na alta esfera do futebol internacional.
[o vídeo de “Wannabe”, o primeiro single das Spice Girls, editado a 8 de julho de 1996 no Reino Unido:]
Escolhidos que estavam os papéis, partíamos para a imitação do videoclip de “Wannabe”, single de estreia da banda que foi lançado há uns cruéis 25 anos (chegou primeiro ao mercado japonês, no fim de junho, mas foi a 8 de julho no Reino Unido que começou a febre). E digo cruéis porque há poucas coisas que, como a música, nos lembrem de forma tão implacável que já não somos jovens. Sejam as músicas atuais, que já não conhecemos, por estarmos ocupado nas nossas recordações, sejam essas mesmas recordações, que nos transportam até ao sítio onde estávamos quando as ouvimos pelas primeiras (duzentas) vezes. Lembro-me de ter o CD, fundo branco com as letras “S P I C E” às cores, enfiado no discman, meses a fio.
Lembro-me de estar na Valentim de Carvalho a adquiri-lo, provavelmente com as semanadas que fui juntando. Lembro-me de estar na sala de casa dos meus pais, junto a uma daquelas aparelhagens gigantes que faziam parte da mobília da época, a ouvir o disco faixa a faixa. Tudo coisas de antigamente: sistemas hi-fi, lojas que vendem CDs e pessoa que ouvem álbuns na integra, e não apenas o tema que lhes interessa, em streaming. As Spice Girls são banda sonora desse tempo. Do tempo em que o meu disco ficava ali, na mesa de vidro da sala, como que desafiando os vinis de Beatles dos meus pais, em seu redor.
Numa década em que do Reino Unido chegavam músicas de reconhecido bom gosto, dos Oasis ou dos Blur, que faziam escala no quarto do meu irmão antes de chegarem ao meu, eis que rompo com esse paradigma e trago uma girlband para o seio do nosso lar. Acredito que tenha sido um choque para toda a família, mas felizmente respeitaram a minha individualidade, individualidade essa que apreciava não um indivíduo apenas mas um grupo inteiro. Um grupo de miúdas que nem sabíamos bem se eram cantoras. Percebo agora, 25 anos volvidos, e já mãe de filhos, que caí numa manobra de marketing. Mas relativamente inofensiva…
É que tudo nas Spice Girls foi pensado para vender, inclusive as alcunhas, que faziam delas uma espécie de Patrulha Pata daquela era. Da mesma maneira que esse grupo de resgate composto por cãezinhos tem as respetivas cores, nomes e meios de transporte, também aquele grupo de meninas tinha a ruiva, a loira, a negra, a morena, a também morena mas maria-rapaz… e as alcunhas! Ginger Spice ou Baby Spice eram nomes que caberiam bem em qualquer produto do Canal Panda. E depois aquele slogan, “Girl Power”, repetido até à exaustão. Soava-nos bem apesar de não termos exata noção do que queria dizer (aliás, nem percebíamos bem as letras das canções, as nossas aulas de inglês ainda se baseavam muito no “where are you from?”).
Convenhamos que “Yo, I’ll tell you what I want, what I really, really want, so tell me what you want, what you really, really want” é um trava-línguas complicado para miúdos de dez anos. E pensar que passei vários anos à espera que chegássemos àquela parte da matéria em que o professor nos explicava o que queria dizer”zigazig-ha”. Afinal foi só uma palavra inventada pelas Spice Girls. Logo aí devíamos ter desconfiado que não eram (nem estavam acompanhadas por) grandes letristas. Se o melhor que arranjam para rimar com “wanna” é um vocábulo semi-tribal e totalmente inventado…
Mas nada disso interessava na altura: a música ficava na cabeça, o videoclip passava sem parar na MTV, nós víamos MTV, comíamos Bollycaos, não nos preocupávamos com lírica pobre nem com alimentos ricos em gorduras saturadas. E a vida era boa assim! Revendo o vídeo de “Wannabe”, parece-me estranho que a família que sai de um carro à porta da mansão não venha de Uber, parece-me cansada a coreografia feita pelas cinco na escadaria, porque nos faz lembrar os Excesso (ou as Nonstop), parece-me jurássico o autocarro que as apanha à saída da festa ou a farda dos polícias.
A verdadeira estranheza, há que reconhecê-lo, é já terem passado 25 anos. Parece que ainda ontem tinha dez e ia para a aula de Estudo do Meio, e de repente, eis-me aqui, a apreciar músicas que têm mais de duas décadas, como via os meus pais fazerem. Será que os meus filhos acharão isto tão obsoleto como eu achava as canções de Peter Paul and Mary, que a minha mãe ouvia em cassete no rádio da cozinha?! Soará “Wannabe” tão desinteressante quanto “Leaving on a jet plane”? Pergunta retórica, prefiro nem saber a resposta.
Segundo reza a lenda, “Wannabe” foi gravada em menos de uma hora. É uma daquelas informações enervantes para a concorrência, porque uma pessoa aguenta melhor um mega êxito que tenha demorado tanto a compor como o teto da Capela Sistina a ser pintado, do que uma coisa que sai naturalmente aos autores, como se fosse tão fácil como beber um copo de água. Este foi o primeiro single mas muitos se lhe seguiram, como “Say You’ll be There” ou “Who Do You Think You Are”, ou as mais melosas “2 Become 1” e “Mama”, provando assim que não estávamos perante mais um caso de one hit wonder. Pelo menos o título de five hit wonder já ninguém lhes roubaria…
A famosa “Spicemania” tornou-se viral (numa altura em que ainda não usávamos o termo “viral” todos os dias, à conta do Youtube ou das redes sociais) e deixou a crítica dividida: em 1997, “Wannabe” foi nomeado para pior single do ano nos NME Awards, ao mesmo tempo que ganhou o prémio Best Single nos Brit Awards. Ia escrever que Spice Girls ou se ama ou se odeia, mas tenho de acrescentar uma terceira via: ou se ama, ou se odeia, ou se ama mas finge-se que se odeia. “Wannabe” é a típica canção que está na nossa playlist “guilty pleasure”, mas deviam isentar-se de culpas. Não tem mal nenhum, libertem-se! Saiam desse armário musical em que estão encarcerados e admitam que, sim senhora, sabem de cor não só a “Wannabe” mas também a “Holler” (OK, essa se calhar sou só eu…).
Para assinalar os 25 anos desde o lançamento do primeiro single (e talvez os 25 anos com perdas de rendimento, mas não vem agora ao caso), as Spice Girls lançam dia 9 de julho um EP com a versão original da música e com uma faixa inédita (“Feed your love”), inicialmente gravada para o álbum Spice, mas que acabou por ficar de fora. Pior do que nos servirem restos, só restos com vinte e cinco anos. É coisa para ser bem bolorenta! Mas nada que umas especiarias não disfarcem (trocadilho resultava melhor em inglês, tal como todas as letras das Spice Girls resultariam trágicas em português).
Seja qual for a canção que lancem agora, será apenas mais uma daquelas que ninguém ouve com atenção nos concertos, enquanto se grita “toca aquela!”. Sim, leu bem, concertos. As Spice Girls prometem regressar aos palcos assim que possível. Para uns, isto será a derradeira prova de que a pandemia só trouxe coisas más, para outros um sinal de que devemos voltar ao sítio onde fomos felizes. Já não tenho tamanho para andar nos baloiços da escola, mas ainda posso cantar “Stop right now thank you very much/ I need somebody with a human touch” em conjunto com uma data de outras pessoas que teimam em aceitar que já estão mais perto dos quarenta do que dos vinte.
Joana Marques é humorista, faz rádio muito cedo e deita-se demasiado tarde