Quando Ana descobre que o parceiro sexual da noite anterior é portador de VIH fica paralisada pelo medo. Corre a fazer análises, toma os retrovirais mas a vida está em suspenso até fazer o derradeiro teste, que lhe dirá se foi, ou não, infetada. Falta um mês para o poder fazer. Decide então ir para a quinta de uma amiga em Petrópolis chamada Paraíso, para se isolar a escrever e a combater os ataques de pânico. Mas a solidão não é total. Rosa, a empregada da quinta, foi abandonado pelo marido, chorando a sua partida ao mesmo tempo que aparece com estranhas nódoas negras. E, no meio da mata, Ana descobre Daniel, um artista que ali se retirou do mundo. Quando, à noite, finalmente a solidão chega, chega também o medo, as memórias, os fantasmas com que Ana vai ter de lidar. Pelo meio, um romance vai nascendo: a história de uma escrava enterrada viva. O paraíso transforma-se num inferno.
Acabado de chegar às livrarias, Paraíso (ed. Tinta-da-China) é o terceiro romance da brasileira Tatiana Salem Levy, apontada pela Granta como uma das 20 jovens vozes brasileiras a estar atento. A Chave de Casa, o seu primeiro romance, venceu o Prémio São Paulo de Literatura, foi finalista do Prémio Jabuti e ganhou o Pen no Reino Unido para melhor romance traduzido.
Nascida em Portugal durante o exílio dos pais e a viver há três anos em Lisboa, Tatiana Salem Levy, descendente de judeus sefarditas expulsos de Portugal durante a Inquisição, conversou com o Observador a propósito deste seu novo romance, da literatura brasileira e do momento político que se está a viver no Brasil, bem como de temas centrais de Paraíso, como o racismo, a violência contra as mulheres, a morte e a memória.
Um dos temas centrais de Paraíso é a memória, um tema que vem sendo recorrente na sua escrita. Por que é tão importante para si?
Procuro trabalhar com a memória em diferentes planos. Parto de uma memória pessoal para pensar uma memória histórica e política. Os meus livros têm sempre alguma coisa da própria história do Brasil. Neste tem a escravatura, tem o período da ditadura militar… A forma da gente se entender, enquanto indivíduo, passa pela construção da memória. E a construção da memória, para mim, passa pela escrita. Acho que é também uma forma de o país se entender. O Brasil precisa de construir a sua própria história, a sua própria memória. A escrita, seja literária, historiográfica ou sociológica, é uma forma de construir essa identidade. Mas para isso a gente precisa entender o que aconteceu antes de nós. O passado é também o presente. Nós somos aquilo que já aconteceu.
Faz também uma escavação arqueológica familiar, andando para trás várias gerações. Somos influenciados ainda pelos nossos tetravós?
O que se passa de geração para geração é uma questão que atravessa a minha obra. Há o que passa pelo que é dito e há o que passa pelo silêncio. E tem a questão física, do que o corpo recebe como herança. As minhas personagens têm sempre uma espécie de paralisia que exige que voltem ao passado para depois seguir adiante. A Ana, face à situação do possível contágio por HIV, fica paralisada. Tem que esperar para saber. Trabalho com essa ideia da espera, que é justamente o momento para se mergulhar no passado e depois seguir adiante.
É preciso uma suspensão da vida?
Sim. Essa é também a minha ideia do que é escrever: suspender o mundo, suspender o tempo. Ter a sensação de que você está fora do lugar, fora do tempo.
A Ana vai para um sítio escrever enquanto espera que decorra o tempo necessário para fazer o teste do VIH. E o que parece um paraíso isolado acaba por se transformar num inferno cheio de gente que a puxa para a realidade.
O isolamento é a condição para ela escrever. Mas são os encontros que a fazem movimentar e tornam a escrita possível. Conforme fui escrevendo me dei conta de como a questão da violência contra a mulher ia aparecendo no livro, cada vez mais forte. Uma questão que, enquanto eu ia escrevendo o livro, se tornava cada vez mais forte e mais presente no Brasil. As mulheres começaram a falar disso de uma forma que nunca tinham falado, da violência em diferentes níveis. Desde a violência doméstica – até fui algumas vezes num núcleo, no Rio de Janeiro, da Procuradoria, que recebe mulheres vítimas de violência, que vão lá fazer denuncia, onde fiquei ouvindo as histórias – às violações. Então esse lugar idílico foi-se tornando um inferno à medida que a questão da violência se foi tornando uma questão central do romance.
Quase todas as mulheres do livro sofrem algum tipo de violência.
Chegou um momento em que pensei: será que é muito? Mas no Brasil isso é completamente possível, completamente verosímil. Há muita violência contra as mulheres no Brasil. O número de violações é muito alto e a violência doméstica tem números muito altos também. Portugal ainda é um país machista. Mas o Brasil é bem mais machista que Portugal. Tenho pessoas muito próximas, amigas, que já foram violadas. E agora as mulheres resolveram falar sobre isso. E os jornais resolveram começar a falar sobre isso, bem como uma media mais alternativa, na Internet, no Facebook. No ano passado surgiu uma hashtag que era o meu primeiro assédio [#omeuprimeiroassedio], com milhares e milhares de mulheres brasileiras a contar as suas histórias. Todas as mulheres no Brasil passam por isso, desde pequenas, nem que seja uma coisa de você sair na rua e ter homens em cima de você falando “ai que linda, que gostosa”. Mas também tem coisas muito mais violentas. A gente cresce com medo.
Há uma normalização?
É. Esse tipo de violência te impõe medo e te impõe uma certa culpa. É a ideia de que a mulher está sendo assediada porque ela está com um decote, com uma saia muito curta. Tem toda essa ideia de que a culpa é também da mulher. Juntando a isso o medo, sobretudo quando é uma coisa doméstica, alguém que mora do seu lado.
Outro tema central do livro é a escravatura. É ainda um fantasma que paira sobre o Brasil?
Com certeza. E os fantasmas no Brasil são pouco mencionados, é preciso falar sobre isso. As consequências da escravatura são evidentes até hoje. Existe um racismo muito forte, com separação. Por mais que nunca tenha existido um apartheid como na África do Sul, explícito, existe um apartheid no sentido em que os negros têm condições sociais desfavoráveis. É muito recente o fim da escravidão, tem pouco mais que 120 anos. Me lembro de quando era criança de conhecer ex-escravos. É uma ferida muito recente com consequências graves. Existe esse apartheid. As pessoas falam que não é preconceito racial. Mas é. Eu estudei numa escola de classe média, da esquerda intelectual, e tinha uma negra na escola inteira. Isso é consequência de um regime escravocrata. É preciso falar sobre isso para entender o que é o lugar do negro hoje no Brasil e lutar para que deixe de ser assim. É uma sociedade muito pouco misturada.
Os judeus estão aqui também presentes. É importante voltar ao tema?
Às vezes é. Na Chave de Casa foi totalmente. Aqui apareceu um pouquinho. A minha relação com a memória tem muito a ver com o judaísmo. Cresci ouvindo que o judeu era o povo do livro, justamente porque foi expulso muitas vezes, teve que deixar tudo para trás. A única coisa que você não deixa para trás é o saber, que você leva para qualquer lugar. O judaísmo para mim são os livros, a relação com a memória, a relação com a história, com os antepassados. Essa ideia geracional que aparece nos livros é uma coisa bem judaica. Talvez eu seja mais apegada à história dos antepassados do que a maior parte dos meus amigos que não são judeus.
Afirma-se como judia?
Sou judia, não sou religiosa. Na verdade, acho que o meu judaísmo se resume na pergunta “Sou judia?”. O judaísmo não é só uma questão genética. A pergunta “Sou judia?” é muito judia, o judeu está sempre se perguntando isso. Nesse sentido sou judia. Mas não sou religiosa, nunca fui, nem meus pais, não fui criada num ambiente religioso. É uma questão existencial.
A morte está também presente em Paraíso. É uma tema recorrente?
A morte é um tema recorrente da literatura de forma geral. Escrever é uma tentativa de lidar com a tragicidade da vida de que estamos todos caminhando para a morte. É uma das questões principais da literatura, a ideia de que você tem de lidar com o fim. Mas a morte que sempre me preocupou mais não foi a minha mas a dos outros. Os livros têm sempre a questão do luto. É a morte vivida por quem fica. Tento trabalhar como recuperar dessa morte e como dialogar com o morto. Vivemos em tempos em que tudo tem que ser muito rápido, fácil, feliz. A gente já não tem mais a experiência da morte como antes. Morreu, enterrou, acabou, já tem que estar postando fotografias bonitas no dia seguinte. A literatura é, para mim, uma forma de mostrar e trabalhar essa experiência do luto. Uma experiência demorada. A gente está sempre conversando com os nossos fantasmas. A epígrafe do livro fala disso, de que os mortos nunca morreram, nós estamos sempre dialogando com aqueles que vieram antes. Tanto de forma pessoal quanto numa forma maior, mais histórica. A morte aparece como a possibilidade de diálogo com os fantasmas.
No livro diz que é importante, ao escrever, responder à pergunta: por que está a fazê-lo? Porque escreveu Paraíso?
É a questão da violência contra a mulher, foi a minha necessidade de falar disso: como escritora, como mulher, como brasileira. E depois aconteceu a coincidência do movimento das mulheres falando sobre isso. Gostei de fazer parte desse coro, dessas vozes de mulheres que de repente precisaram falar da violência acumulada em seus corpos. Porquê esse livro? Para falar da violência contra a mulher. Isso é o que distingue esse livro dos outros. Depois há questões fundamentais e que estão sempre presentes: a memória, o amor, a morte. Falar dessas questões é uma resposta eterna à pergunta.
Essa então é a resposta à pergunta mais lata: porquê escrever?
É. Quando comecei a escrever tinha a ideia de resolver alguma coisa, de resolver os medos, de me livrar de obsessões. Hoje tenho consciência de que não escrevo para isso. Ao contrário: escrever me gera mais obsessões, mais fantasmas. Em vez de me aliviar me perturba mais. Mas eu gosto de ser perturbada. Então eu escrevo para isso: para ser perturbada. Sou uma pessoa que não lida bem com a quietude. Escrevo para ser perturbada, para lidar com a memória, pessoal e histórica, por um amor à linguagem, por querer expandir os meus limites. Tem sempre esse desafio linguístico: é importante sentir que a cada livro estou escrevendo melhor que no anterior, estou dominando melhor a linguagem.
Nasceu em Portugal, foi viver para o Rio e agora é casada com um português e vive cá. Qual a relação com Portugal?
Nasci aqui, no exílio dos meus pais. Com nove meses fui para o Brasil. Sou portuguesa de papéis por ter nascido aqui. Fui criando uma relação afetiva com Portugal desde cedo. Vim aqui quando tinha 12 anos, minha mãe queria que eu conhecesse o lugar onde tinha nascido, vim com ela e a minha irmã, passámos um mês aqui, com os amigos dela, os filhos deles. Me senti um pouco mais portuguesa. Depois só voltei aos 26 anos. E daí até agora, que tenho 37, fiquei vindo sempre. Até vir morar morar para aqui, tem três anos.
E está ligada a Portugal pela família.
É. A minha família é de judeus sefarditas que eram de Portugal e foram expulsos durante a Inquisição, indo para a Turquia. Da Turquia foram para o Brasil. E durante esses séculos todos sempre falaram o ladino, uma espécie de português com espanhol, da época da Inquisição. Mantiveram a língua. Uma coisa muito louca: manter a língua do país que te expulsou. E durante tanto tempo. Até hoje na Turquia tem gente na família que fala ladino. Os meus avós falavam ladino. Agora saiu uma lei em Portugal que dá direito à nacionalidade portuguesa a quem provar que era judeu e foi expulso daqui. O meu pai já virou português. Ele nem quer vir morar para aqui, tem 75 anos, é uma questão simbólica. É uma reparação, séculos depois.
E agora, a sua casa é cá?
Agora estou aqui, há três anos. E não estou indo morar para o Brasil este ano. Mas está nos planos, com o meu marido, ir morar no Brasil. Quero que o meu filho tenha as duas culturas. Não quero que a mãe seja brasileira. Quero que ele também seja brasileiro.
Como está a ser ver o que está a acontecer no Brasil à distância? Viu a votação para o impeachment da Dilma?
O mundo virtual encurta a distância. Eu e a minha irmã acompanhámos ao vivo pela Internet o circo de horrores que aquilo foi. É tudo muito deprimente. É deprimente o discurso daqueles deputados todos que chegam lá e falam: “Pela minha mãe, pela minha filha…” Uma questão pessoal quando tinha de ser política. “Em primeiro lugar eu queria mandar um beijo para minha mulher”. Nossa, não é possível. Esses são os nossos deputados, os que nos representam. Fico pensando se as pessoas se lembram em quem votaram. E se essa pessoa os representa. Porque você vota num deputado para te representar num momento como esse. É escandaloso isso. Depois o nível de português é absurdo. Tem um esvaziamento da linguagem. Nada foi dito ali. Depois teve coisas escandalosas como o Bolsonaro, o deputado mais votado do Rio de Janeiro, que faz apologia da tortura, da ditadura militar. Fez uma homenagem a um dos torturadores da Dilma. Só um país com muito pouco memória, muito pouca escrita da sua própria história, se permite isso, entendeu? Uma pessoa que fala isso tem de ser caçada imediatamente. Não pode continuar deputado. Você não pode homenagear um torturador. Você não pode homenagear o torturador da Presidente.
Votou na Dilma?
Eu não votei na Dilma. Bom, na verdade não votei em ninguém porque estava viajando, mas eu não teria votado na Dilma. Não gosto da Dilma mas sou completamente contra esse processo de impeachment. É um golpe na democracia. O PMDB sempre teve ali, com o Governo, os anos do Lula, os anos da Dilma. E de repente sai falando que não tem nada a ver com isso, que é a salvação. É um escândalo. Você vê os mais corruptos falando pelo fim da corrupção. Tem uma descrença total na política no Brasil no momento, que é o mais triste de tudo. Você olha para todos os lados e tem corrupção. E essa bancada corrupta, suja, oligarca, antiga, resolve sair do Governo para tomar o poder. Tanto que quase ninguém, sobretudo as pessoas que falaram “sim” ao impeachment, ninguém falou das pedaladas fiscais. Porque ninguém está preocupado com as pedaladas fiscais. As pessoas querem que a Dilma saia para eles ocuparem o seu lugar. O que está a em jogo não é se você é ou não a favor da Dilma. É você entender que numa república presidencialista você não pode tirar o presidente porque acha que ele é ruim e está governando mal. Tem que esperar o mandato acabar e fazer novas eleições.
Ganhou vários prémios literários no Brasil, foi nomeada pela Granta como uma das novas vozes brasileiras a ter em conta, ganhou o PEN. É muita pressão, afeta a escrita?
No segundo romance senti uma certa pressão. Mas depois tem um amadurecimento, você entende que não escreve para os prémios, eles são consequência.
Essas são as suas expectativas. Como lida com as expectativas dos outros?
Acho que os outros têm mais do que fazer do que esperar alguma coisa de mim. Tenho uns leitores que me leem sempre. É bom. Gosto dessa sensação de que tem um grupo de pessoas que quando eu publicar um livro eles vão me ler. Todo o escritor quer ser lido, se não quisesse não publicava. Tem um primeiro movimento que é o de estar sozinho escrevendo, criando alguma coisa, mas depois tem um segundo movimento que é o dar a cara à tapa, você publicar o livro e querer que as pessoas leiam. E claro que você quer que as pessoas gostem. Mas a pressão se vai diluindo quanto mais você publica. Você vai entendendo que tem um que vai gostar de um e não vai gostar do outro, tem pessoas que vão gostar de todos e outras que não vão gostar de nenhum. Tem livros de que eu gosto e tem outros que eu não gosto e outras pessoas gostam. Não tem nada mais subjetivo que o gosto. Se você não consegue lidar com isso, não escreve.
A literatura brasileira teve um grande boom há uns anos, com a Granta, com o Brasil ter sido o país convidado da Feira de Frankfurt… Ainda se sentem esses efeitos?
Esse boom foi mediático e de traduções, teve também a Copa do Mundo, a Feira de Londres, o Salão do Livro de Paris… Montes de eventos. Mas em termos de leitores a verdade é que esse boom nunca aconteceu. Fomos todos traduzidos, muito legal, mas vender? Não, isso não aconteceu. Fomos traduzidos, viajávamos muito, ganhámos algum dinheiro para poder escrever outros livros. Mas na Alemanha ou na França continuamos na prateleira da literatura brasileira ou de literatura em língua portuguesa. A verdade é essa. Na época do Salão do Livro estávamos em todas as livrarias, depois acabou. E nas livrarias que têm alguma prateleira dedicada à língua portuguesa você vai encontrar lá tudo misturado, português, brasileiro, africano, todo o mundo junto. E você é sempre identificado, nunca é só um escritor, você é um escritor brasileiro.