Num local ermo da internet, outrora assiduamente visitado por aqueles que pretendiam inteirar-se das últimas novidades musicais, encontra-se uma listagem da média das pontuações dadas pela crítica aos discos que compõem a obra de Taylor Swift – as pontuações estão ordenadas da mais alta para a mais baixa e entre o nome do disco e a média existe uma coluna com a data de edição, o que nos permite chegar a uma simples mas curiosa conclusão: as notas que a crítica dá à mega-estrela pop têm vindo a subir desde o mediano (o álbum homónimo, de 2006) à regravação de Speak Now.
Há um pormenor que pode enviesar a leitura: por razões relativas a direitos de autor, Swift regravou uma data de discos, pelo que a lista, apesar de ir do disco mais recentemente editado para o primeiro a ser lançado, não reflete a ordem cronológica das edições originais — mas o facto de as notas irem subindo com o passar dos anos (e de os discos regravados terem melhores notas que os originais, apesar de serem praticamente iguais). Tal facto reflete o crescendo de respeito em redor da criadora de Folklore.
A música não é como a pintura: enquanto Picasso foi um menino-prodígio que cedo alcançou o estrelato e encheu a conta bancária enquanto despachava fase azul atrás de fase rosa e exibia toda a sua técnica, Cézanne passou décadas de obscuridade a refinar uma mesma ideia, que só foi reconhecida quando já ia em idade avançada; muitos outros não foram reconhecidos antes da morte.
Correção: a “música pop” não é como a pintura – devido ao seu carácter efémero, aproxima-se mais do desporto, em que um talento é identificado precocemente, chamado aos seniores ligeiramente mais cedo do que os comuns mortais e depois, com sorte, tem uma carreira de 15 anos, com um pico de duas a cinco temporadas. Quantas bandas duram mais de 15 anos ou estão no topo mais que dois ou três discos? A pop vive da nossa tendência para nos fartarmos de tudo em pouco tempo – os músicos andam anos a tentar arranhar uns acordes numa guitarra, ou a fazer um beat decente, sacam um êxito, com sorte um par de discos aclamados e respetivas digressões de verão, o dinheiro pinga, o nariz pinga e do nada a adulação acaba, os jornais viraram a página e na capa está outro rosto, vindo não se sabe bem de onde – e a história repete-se vez após vez.
Não com Taylor Swift: nascida em 1989, aos 14 já escrevia canções profissionalmente, aos 16 assinou o seu primeiro contrato como intérprete e aos 17 lançou o primeiro e homónimo disco. Para termos uma ideia, aos 17 já a carreira de atores-prodígio como Macaulay Culkin ou Shirley Temple tinha praticamente terminado – Swift está com 33 anos, o que significa 16 a ascender num meio que raramente oferece segundas oportunidades. Agora, esgota os concertos da The Eras Tour em menos de nada. Esta quarta-feira, 12 de julho, foram colocados à venda os bilhetes para os espectáculos no Estádio da Luz (a 24 e 25 de março de 2024). Os preços variavam entre os 62 e os 539 euros. O caos online na fila de espera (apelidada de “Great War”, à boleia de uma das cantigas da artista) foi algo considerado inevitável.
Antes de tudo isto, nos primeiros tempos ela fazia country music, ou a versão acetinada e profissional de country em que Nashville há muito se especializou – algo que já não é bem a country tal como Hank Williams a imaginou (a música dos pobres blue collar, que falava de pobreza, falta de esperança, álcool e divórcios), mas uma espécie de emulação dos arquétipos da dor de coração coberta por uma patine de açúcar.
Speak Now (de 2010) aproximou-a da fama e levou-a para lá da country, rumo a territórios mais pop – quando ela chegou a 1989 (de 2014) já havia mais elementos eletrónicos na sua música do que guitarras slide. A eletrónica começara a surgir em Red (de 2012), quando Swift chamou o produtor sueco Max Martin para produzir/compor parte das canções, assinalando a viragem rumo à pop descarada apontada ao topo das tabelas de vendas – o que teve excelentes resultados musicais em canções como “Style” (co-composta por Max Martin) ou “Shake it off” (co-composta por Max Martin), que a tornou uma estrela global, ao nível de uma Shakira ou de uma Beyoncé.
Aparentemente, estamos perante alguém consensual – ao ponto de alguns dos bilhetes que esta quarta-feira foram postos à venda (para o concerto de 24 de maio de 2024 no Estádio da Luz, em Lisboa) custarem tanto como algumas subidas dramáticas da prestação mensal alimentada pela Euribor. Mas não é bem assim: ao contrário do que acontece com a mencionada Beyoncé, Swift é polarizadora, amada por uns e odiada por outros. Não pelas mesmas razões que, digamos, Rosalía. Quem não gosta de Rosalía, não gosta porque a acha foleira, mas sabe que todo aquele excesso é sincero: Rosalía é aquelas unhas gigantes, as botas de plataforma, os casacos laranja, a nudez.
Mas quem não gosta de Swift, não gosta pelas razões opostas, pelo menos a avaliar por (e vamos ser sinceros quanto a isto) demasiadas horas passadas nas redes sociais a ler toda e qualquer porcaria que alguém um dia escreveu porque — e vamos ser sinceros também quanto a isto — a minha vida é tremendamente aborrecida: Swift é vista pelos detratores como um produto, uma espécie de diva demasiado cheia de si para tão pouco sal no pão, o tipo de moça que massacraria a cabeça ao namorado (ou namorada) por ele (ou ela) não lhe dizer 150 vezes ao dia – em suma, uma menina mimada.
Poderá haver nisto uma certa misoginia, tendo em conta que a implicação parece vir mais do lado masculino do que do feminino – se bem que há fações de anti-Swiftianos que fazem questão de admirar publicamente Beyoncé, mas não respeitam a autora de Folklore; também haverá traços geracionais no menor apreço (arriscaria que as pessoas acima dos 30 e tais, ali a roçar os 40, sucumbem menos aos encantos de Swift), uma desconfiança face à persona, que sendo menos teatral do que (por exemplo) um Bowie ou uma Lizzo, é acusada de fingir uma perfeição que esconde alguma mesquinhez.
O cerne da irritação com a menina Taylor será, contudo, de ordem ideológica: ao contrário da maior parte das estrelas pop, ela nasceu rica, com todas as regalias possíveis e imaginárias – os pais trabalhavam no mercado bolsista e em fundos e aos 13 anos já tinham contratado um agente com algum poder para tratar da carreira da filha. Quando esta fez 14, mudaram-se para Nashville, já que ela queria fazer o mesmo tipo de country pop que Shania Twain. Talvez quem não possa ver Swift à frente nem sequer esteja a par destes dados biográficos, mas a palavra entitlement é bastante usada pelos seus detratores.
É arriscado dizer este tipo de coisas, mas anos a fio a ler discursos de devoção a Taylor Swift levam-me a concluir que a maior parte da sua base de fãs são raparigas abaixo dos 35: os temas (ser mulher, ganhar, perder, reganhar, fazer o que se quer independentemente do que qualquer pessoa — sobretudo qualquer homem — pense) encaixam na perfeição nesta época em que as mulheres reclamam os mesmos direitos que os homens sempre tiveram. Para essas e esses fãs, Swift representa o empoderamento feminino: a mulher que faz o que quer, que não vira a cara à luta, que é competitiva, quer vencer e vence, enquanto lhes derrete o coração com os seus dilemas amorosos.
Estes, por sua vez, são espiolhados há anos pelos media, que encontraram nela um filão inesgotável. Há pouco tempo, um qualquer utente do Twitter, perante a notícia de mais um final ou início de relação de Taylor Swift, fez uma piada que, parafraseando, seria qualquer coisa como “A Taylor é o DiCaprio das mulheres”, referindo-se à assiduidade com que a autora troca de namorado. Foi inundado de acusações de machismo provenientes de dois grupos distintos: os fanáticos de Taylor Swift e os rapazes woke que apreciam exibir o seu feminismo para sacar garotas ingénuas.
Nada disto é incomum: as estrelas sempre polarizaram – recordo-me do meu pai falar dos Beatles, que para mim eram um dado adquirido e (por assim dizer) normais como se tivessem provocado uma revolução que dividiu a sociedade a meio. Só mais tarde, ao ler (uma atividade a que me vi obrigado devido ao facto de não ter vida social), descobri que o velhote tinha razão. (Os velhos têm muitas vezes razão, mas em garotos nunca os ouvimos porque o ser humano tem de bater com a cabeça na parede para descobrir que sim, a mãe estava a ser honesta quando avisou que bater com a cabeça na parede dói.)
Todo o frenesim mediático descrito acima repetiu-se quando, há uns meses, Damon Albarn disse numa entrevista que, como Taylor Swift não compunha as suas próprias canções, estava num campeonato diferente do dele e de outros compositores que cantam as suas próprias canções. O argumento é dúbio, mesmo que fosse verdadeiro: Diana Ross nunca escreveu uma canção na vida e no entanto a sua carreira, tanto com as Supremes como a solo, tem dezenas de momentos sublimes; o mesmo pode ser dito de Beyoncé e de centenas de estrelas pop, cujo trabalho reside mais em ter ideias e funcionar como curadores daquilo que é editado do que propriamente em sentarem-se ao piano e compor.
Diz muito do poder de Swift que Albarn, que é o líder de não uma mas de duas das bandas mais bem sucedidas de todos os tempos (os Blur e os Gorillaz), tenha sentido a necessidade de pedir desculpa publicamente pela sua frase, recorrendo ao velho bordão de as suas palavras terem sido tiradas do contexto. (Conselho para a vida: se alguma vez estiverem numa posição de poder, com exposição pública, e uma frase vossa for mal recebida, na dúvida culpem sempre o jornalista, que é pobre e não tem poder nem tem como se defender.)
Albarn pode não andar muito longe da realidade, contudo: quando estrelas pop listam gente como Max Martin como “produtores”, isto é uma forma eufemística de dizer “contratei este bacano para escrever canções para mim e o meu nome aparece como compositor porque senão não recebo direitos de autor”. A escolha de Martin não foi matéria de coração: ninguém acumulou tantos êxitos (e tanto guito) nas últimas décadas como Martin – Swift queria guinar na direção do estrelato absoluto e foi buscar o maior criador de êxitos a metro que o mundo viu nos últimos anos. (O próprio Martin não escreve as canções que supostamente escreve e produz, tem empregados que o fazem por ele.)
Nos últimos tempos, Max Martin foi trocado por figuras menos bem sucedidas, mas mais respeitáveis, como Aaron Dessner, o guitarrista dos The National, que colaborou na escrita de Folklore. Aparentemente, o disco foi bem recebido, mas hoje em dia todos os discos são bem recebidos – ainda não é certo que o rock tenha morrido, mas a crítica, pelo menos aquela que se orgulhava de ser uma forma de arte autónoma e independentemente do fluxo da caixa registadora, essa morreu de certeza.
Contudo, se por acaso não tiverem qualquer tipo de vida social, conseguem passar tempo suficiente para deparar com as primeiras críticas timidamente negativas na carreira de Swift desde o segundo ou terceiro disco. Nenhuma estrela aguenta uma década sem que a dada altura a imprensa, os curadores do gosto, se comecem a fartar dos padrões repetidos, que deixam de ser vistos como tiques autorais e passam a ser interpretados como sinal de cansaço criativo.
Como com todas as outras estrelas, chegará o momento em que Taylor Swift deixará de ser notícia a cada disco (ou namorado), abandonará as tabelas de vendas, cederá o seu lugar a alguém mais novo, com ideias que parecerão mais frescas – até que, 20 ou 30 anos depois chegará o revivalismo. Por enquanto, ela vive o seu momento de consensualidade, tão inusitada consensualidade que se dá ao luxo de pedir até três generosos dígitos por certos bilhetes para certos lugares nos seus concertos.
Ir ver um artista que se aprecia particularmente pode ser uma experiência transformadora. Fico honestamente feliz pelas pessoas que podem pagar os bilhetes mais caros por certos lugares no concerto de Swift e espero que tenham uma experiência transformadora – uma que as leve a ponderar se não seria melhor que toda a gente tivesse essa chance. E, com toda a humildade (pela qual sou universalmente reconhecido), é possível que isso faça alguma diferença.