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Nas letras de Smith não há a sofisticação irónica e o sentido de pose de um Morrissey. Há um coração que se abre para dizer, de forma bastante direta, de tristezas muitas e ocasionais alegrias
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Nas letras de Smith não há a sofisticação irónica e o sentido de pose de um Morrissey. Há um coração que se abre para dizer, de forma bastante direta, de tristezas muitas e ocasionais alegrias

Nas letras de Smith não há a sofisticação irónica e o sentido de pose de um Morrissey. Há um coração que se abre para dizer, de forma bastante direta, de tristezas muitas e ocasionais alegrias

The Cure: quantas vezes se pode escrever uma carta de despedida?

Tragam os lenços e a pele de galinha. Passados 16 anos de silêncio criativo, é lançado “Songs of a Lost World”, o novo álbum dos The Cure, um primoroso poema sobre a perda em oito canções.

Para quem, como eu, começou a ouvir os The Cure com devoção, há cerca de trinta e cinco anos, continua a ser admirável pensar como é que a banda conseguiu sobreviver tanto tempo e como é que Robert Smith se tem revelado uma das pessoas mais equilibradas do universo alternativo em que mergulhou e que elevou como poucos. Para quem trajou, com todos os trapos que tinha em casa, de negro e arriscou um penteado exótico para disfarçar a melancolia, é extraordinário topar que o profeta ainda está por aqui e edita em 2024, com a sua banda, um dos álbuns mais ansiados dos últimos anos.

Sabemos que a fragilidade existencial e a tristeza funda sempre foram constitutivas do grupo, mesmo que compensadas aqui e ali por umas mais do que coloridas investidas pop, espécie de antidepressivos sonoros para refrescar cada um dos seus elementos, em particular o timoneiro Roberto, porta-voz das suas sombras, e a tribo de fãs.

Tudo esteve para acabar com Pornography – com as brigas internas, em especial entre Smith e Simon Gallup, a condizer com o narcótico manifesto lírico-apocalíptico de cada uma das canções desse álbum. Mas não acabou, com os próprios a reconciliarem-se mais tarde, e uma série de extensões sonoras em que couberam músicas maiores e álbuns diversos. E, se formos fazer as contas, aquele de quem se dizia ser uma figura à beira do precipício emocional é das figuras vivas mais respeitadas do cânone indie. Mesmo matrimonialmente, se quisermos ir por aí. Está casado com a namorada por quem se apaixonou aos 14 anos.

[ouça aqui o novo álbum dos The Cure:]

Se há algo que se pode atribuir aos The Cure é a sensação de verdade e genuinidade que emerge das suas canções. Mesmo na farsa, que se encontra, de diferentes modos, em temas como Let’s Go to Bed, Hot Hot Hot ou Friday I’m In Love,  são autênticos. Nas letras de Smith não há a sofisticação irónica e o sentido de pose de um Morrissey. Há um coração que se abre para dizer, de forma bastante direta, de tristezas muitas e ocasionais alegrias.

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Se há alguém que se pode dizer que vive no seu mundo é Robert Smith. Inventou um camarim onde se pinta e despinta todos os dias e aí ficou até hoje, engordando e envelhecendo como toda a gente. E é assim que se apresenta no álbum que foi experimentado durante os últimos anos nas atuações in vivo e que agora sai em disco: como um performer da sua biografia. Como um ator de si mesmo que se olha, desmaquilhado, no espelho do camarim. Alguém que se vê com demora e percebe que ao seu lado já não está a família com a qual cresceu. As paredes do camarim, essas, estão cheias de televisores que transmitem o caos dos dias e da trágica História que um dia esses dias serão.

Sim, passados 16 anos de 4:13 Dream, os The Cure voltam para cobrir o mundo com um manto ainda mais negro do que aquele que já o cobre. A profecia de Robert Smith cumpre-se: Songs of a Lost World é um regresso, com uma camada sonora atualizada, à escura fundura de Disintegration. Smith perdeu o que não pode ser encontrado nos perdidos e achados. Pessoas. Pai, mãe, irmão. E resolveu compor sobre o assunto.

Se há alguém que se pode dizer que vive no seu mundo é Robert Smith. Inventou um camarim onde se pinta e despinta todos os dias e aí ficou até hoje, engordando e envelhecendo como toda a gente

Alone, a música que inaugura o negro festim, é uma marcha fúnebre capaz de convocar toda a beleza do universo. A escrita de Smith está, como sempre esteve, muito para lá dos góticos desabafos em que a tentam encerrar e atinge aqui, em diálogo com um feito poético de um dos mais dotados decadents, Ernest Dowson, um absoluto grau de depuração romântica. Há uma série de despedidas feitas com o mais nítido dos apegos e uma lucidez glacial. Adeus pessoas, adeus sonhos e pássaros e palavras e casas e lamentos. “This is the end of every song that we sing”.

A segunda, And Nothing is Forever, que começa com um piano e uma orquestração primaveris e caminha para um trilho (também) feito de guitarra, bateria e baixo, é um contraponto ao primeiro tema.  Um sonoro cortejo épico, que faz pensar nuns Sigur Rós, sobre uma sentença inelutável, completada por uma hipótese de consolo. Não é Pictures of You, mas também é um instante musical de uma comovente beleza maior. Tal como acontece no tema inaugural, é preciso esperar – no caso, 2 minutos e 48 segundos  – para ouvir as palavras daquele que está diante do espelho: “Promise you’ll be with me in the end”. Mais uma vez, revela-se o lado romanesco de Smith. Com uma mensagem próxima da que deixou, em 1989, numa canção como The Same Deep Water As You: “The very last thing before I go/ (…) I will kiss you/ And we shall be together”. Uma maneira de dizer “isto vai tudo acabar mas estamos juntos”.

[uma conversa de quase duas horas com Robert Smith:]

A Fragile Thing, que foi o segundo single de avanço, entra na categoria “ouve-se bem”. Nem extraordinária nem ordinária, é competentemente dramática – no som e nas palavras. Também fala de beijos, choro e de um coração de peças partidas que já não se podem unir. Se o espírito fica meio adormecido com a temperatura mediana de A Fragile Thing, acorda com as guitarras furiosas de Warsong, canção que, nesse aspeto, oscila entre The Kiss e Fight, ambas do cardápio de Kiss Me Kiss Me Kiss Me, contando também, no salpico das cordas, com um certo perfume a Lullaby, do álbum seguinte. O verbo só aparece tarde, mas vem cheio de vontade de recordar a incapacidade dos homens – os tais também capazes dos melhores sonhos – em entender-se. Faz sentido o alinhamento de Warsong para Drone:NoDrone – que transmite todo o sentido de desconexão entre uma pessoa, o lugar e o tempo onde existe. As guitarras surgem como hienas a chiar entre um registo wah wah e um heavy metal à Iron Maiden.

A lamentosa I Can Never Say Goodbye anuncia-se com um trovão e um piano minimalista e abre-se a uma peregrinação rockeira feita a partir do sentimento da perda de um irmão – um irmão de quem não nos pudemos despedir. All I Ever Am é uma canção sobre ideais, memórias, perdas, claro está, e, novamente, solidão. Sobretudo solidão — já não no camarim mas no palco. Antecipa Endsong, a última travessia que tem a duração de uma eternidade para um álbum pop-rock. Dez minutos que não custam a passar, tal é a força do embalo da bateria, sobre a qual planam os outros instrumentos. O adulto sessentão que está em palco sabe que é gesto impossível o de regressar ao tempo em que era um rapaz com sonhos. Restam os desgostos e os desgostos tornam inabitável o chão que pisa. O que já se temia é verbalizado. Smith, debaixo de uma lua vermelha, declara: “I don’t belong here anymore”. É a perfeita tirada final. Ou não. Em entrevista destes dias, ficámos a saber que o grupo já está a trabalhar num novo álbum. O que sugere uma pergunta: quantas vezes se pode escrever uma carta de despedida?

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