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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Tó Trips: "Na altura do Johnny Guitar fiz uma jura: nunca iria ter filhos, casar ou sair de Lisboa. Aconteceu tudo"

Sozinho à guitarra, Tó Trips regressa aos discos com "Popular Jaguar" a 10 de março. Antes, fala-nos de como chegou a este disco, sobre os Dead Combo, a Lisboa rock'n'roll dos anos 80 e a família.

António Manuel Antunes, mais conhecido como Tó Trips, prepara-se para voltar aos discos. Depois de um ano fértil em concertos a solo e com Club Makumba, o músico de 58 anos edita um novo registo autobiográfico, intimista e com a mistura de sonoridades que o caracterizam, sob o título Popular Jaguar. A edição está marcada para o dia 10 de março.

É um disco de um homem e um guitarra, uma espécie de exorcismo pessoal sobre seis cordas, de notável bom gosto. Os temas divergem nos propósitos: ora mais melódicos, ora mais nervosos. Soam a inspiração passada diretamente da vontade para a ponta dos dedos, e esperam palcos que revelem as nuances e o carácter irrepetível de cada tema, quando for a hora de os apresentar ao vivo.

Em entrevista, Tó Trips fala sobre ao sucesso dos Dead Combo, o fim da banda e a morte do companheiro de estrada, Pedro Gonçalves; mas também nos conta histórias de infância, de como saltou o muro do Jardim Zoológico para ver o seu primeiro concerto, dos Xutos & Pontapés, do grande amigo Zé Pedro, que está agora a substituir durante a digressão do Circo de Feras. Dos infames anos 80, com a chegada da heroína, que devastou toda uma geração, passando pelas suas várias bandas – Santa Maria Gasolina em Teu Ventre, Lulu Blind, Ladrões do Tempo – até aos dias de hoje, o músico abre o livro em forma de caixeiro viajante.

Depois do lançamento de Popular Jaguar, o músico atua ao vivo em Espinho (Auditório, 12 de março), Lisboa (Culturgest, dias 16 e 17), Coimbra (Salão Brazil, 4 de maio) e Porto (Casa da Música, 7 de maio), para apresentar os novos temas em palco.

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[“Ginga” é a primeira amostra de “Popular Jaguar”, disco de Tó Trips que será editado no dia 10 de março:]

Quando começaste a pensar neste disco?
Nasceu do fio que sobrou com o fim dos Dead Combo. Já tinha começado a pensar em fazer um disco, mas esse fim de ciclo e a necessidade de recomeçar outra vez, mais a pandemia, fez-me pensar na minha vida. E foi aí que se começou a desenhar o disco. É um trabalho autobiográfico de um tipo que toca guitarra e que teve de começar de novo.

Popular Jaguar não é o título que mais imediatamente associamos a alguém que considera que está a “começar de novo”…
Tem a ver com a ideia de um gajo que anda sempre na sombra. Mais a silhueta do que propriamente a pessoa. Nunca se vê a minha cara, tem a ver com o meu negrume. Tenho essa faceta presente com a qual vivo em paz. Não é bem tristeza, sou um tipo feliz, mas carrego sempre um lado mais obscuro.

O livro tem pequenas histórias antigas e muitas fotografias a preto e branco. Porque és nostálgico?
O livro surgiu também na altura da pandemia. Não sou muito de olhar para trás, de pensar no que fiz, mas acabou por ser uma forma de arrumar a casa. É um livro de fotografias e de histórias de viagens. Eu tiro fotografias e gravo sons, no fundo é uma composição sonora dessas viagens.

As histórias do livro foram viagens feitas com Dead Combo?
Algumas foram com Dead Combo, outras com a minha mulher.

Há uma história sobre um concerto em Toronto onde estava o Neil Young…
Isso foi com Dead Combo. Em vez de termos ido ao South By Southwest, no Texas, onde toda a gente quer ir, optamos por ir a um festival no Canadá, em Toronto, com milhares de bandas de todo o lado. Na véspera tocámos num pequeno clube conhecido pelas famosas atuações de Neil Young. Mas aquilo correu muito mal. Chegámos ainda a tocar num salão da comunidade portuguesa e estava um ambiente fixe. Mas isso não pertencia ao festival, foi uma coisa à parte. E nesse barzinho pequeno com gajos da folk a tocar guitarra, mandaram-nos tocar nas traseiras. Só estava uma pessoa a assistir, curiosamente era português.

"Dediquei-lhe [ao Pedro Gonçalves, dos Dead Combo] a música 'Ínfimas Coisas'. Normalmente, as pequenas coisas são as mais importantes, que têm um bocado esse lado elástico da memória, dos lugares por onde passámos. Na minha vida estou cheio de fantasmas deste género, de passar por um sítio e lembrar-me das pessoas que pertenceram à minha vida."

A banda já tinha quase vinte anos, mas explodiu com a história do Anthony Bourdain. Sendo um projeto instrumental, ambicionavam chegar tão longe?
Não, nada disso. Fizemos a banda para continuar na música. Na altura, pensávamos tocar em sítios pequenos, uma coisa alternativa, para pequenas salas e espaços onde aquilo fizesse sentido, como a Galeria Zé dos Bois. Mas a projeção que alcançou foi surpreendente. Tanto que enchemos o Coliseu num concerto com banda completa.

A pandemia apanhou-vos numa fase estranha, porque tinham acabado de anunciar uma última digressão de Dead Combo.
Essa digressão acabou por não acontecer. Fizemos um ou dois concertos, depois veio a pandemia e a doença do Pedro. Ele queria fazer essa tour e acabar a banda. Respeitei a decisão dele. Para mim, quando as coisas terminam, acabam a sério.

Percebia-se que ele era uma pessoa acarinhada pelo público e pelos pares.
Sim, era mesmo. Nós éramos amigos, mas às vezes éramos também opostos. Numa banda de duas pessoas é mais fácil isso acontecer. O último disco já foi um pouco difícil de fazer. Isso tem a ver com as pessoas, não com a música. Quando ele morreu… Bom, já era uma coisa expectável. No início havia esperança, mas quando o fui ver ao hospital saí de lá a chorar. Perguntei-me como é que ele ia sair dali e senti que já não havia grande hipótese. Meti-me no carro, liguei a um amigo nosso e comecei a chorar. Isto foi já na fase final.

"Quando abre o Rock Rendez-vous, eu estudava ali perto, no Dom Pedro V. E a música começou a mudar, depois as roupas, os penteados. Era toda uma outra maneira de estar"

Estavas prestes a entrar em palco quando recebeste a notícia.
A mulher dele ligou-me às 16h e eu tinha um concerto a solo às 18h. Subir àquele palco, em Paredes de Coura, foi a melhor coisa que podia ter feito. Dediquei-lhe a música “Ínfimas Coisas”. Normalmente, as pequenas coisas são as mais importantes, que têm um bocado esse lado elástico da memória, dos lugares por onde passámos. Na minha vida estou cheio de fantasmas deste género, de passar por um sítio e lembrar-me das pessoas que pertenceram à minha vida.

Recebeste recentemente um convite para tocar com os Xutos & Pontapés na digressão do Circo de Feras. Tendo sido tão amigo do Zé Pedro, como é que encaraste esse convite?
Fiquei assim um pouco desconcertado e ainda demorei uns dias a responder. Receava que as pessoas pensassem “agora aparece aqui este gajo para o lugar do Zé”. Ao mesmo tempo pensei que seria uma falta de educação rejeitar. Era também uma forma de poder fazer a minha homenagem. Foi dos Xutos o primeiro concerto que vi na minha vida.

Onde foi esse concerto?
Foi no último “Febre de Sábado de Manhã”, programa do Júlio Isidro, ao vivo no Jardim Zoológico, no ringue de patinagem. Na altura éramos putos e tivemos que saltar o muro porque não tínhamos dinheiro para o bilhete. Pouco depois fugi às escondidas dos meus pais para ir ao Rock Rendez-vous vê-los novamente. Fiquei amigo do Zé Pedro, que acabou por produzir o primeiro disco da minha banda, os Lulu Blind.

"Aí por volta da 85 apareceu a heroína e lembro-me perfeitamente do pessoal querer comprar erva e não haver. Em vez disso, começou a vender-se heroína aos miúdos. No final do ano letivo de 85 e seguintes estava tudo agarrado ao cavalo. Foi a desgraça de uma geração inteira."

Para a digressão do Circo de Feras tiveste de aprender as canções? No teu livro escreves que nunca gostaste de tocar coisas dos outros, e que o Zé Pedro foi a única pessoa a ensinar-te uma série de canções do Lou Reed.
Tive de aprender as músicas todas. Quanto ao Lou Reed, o Zé tinha sido convidado pelo Luís Montez para lhe fazer uma homenagem, uma coisa tipo “Zé Pedro and Friends”. Nessa altura ele já tinha os Ladrões do Tempo, banda onde também toquei.

Tudo isto sempre por Lisboa, a cidade onde cresceste.
Totalmente. Nos anos 80 Lisboa era uma cidade muito diferente daquilo que é hoje. O meio musical era mais pequeno e toda a gente se encontrava no Rock Rendez-Vous e, mais tarde, no Johnny Guitar. Antes disso, a única coisa que havia para fazermos eram umas matinées, uma no Arco do Cego outra ao pé de Picoas que era bastante conhecida. Era onde iam os adolescentes. Quando abre o Rock Rendez-vous, eu estudava ali perto, no Dom Pedro V. E a música começou a mudar, depois as roupas, os penteados. Era toda uma outra maneira de estar.

Alvalade também foi um centro importante para uma onda punk que surgia nos anos 80. Também andavas por lá?
Não parava muito na pastelaria Vává [Avenida de Roma], onde praticamente nasceram os Xutos e onde paravam os punks nessa altura. Mas não andava longe, ia para os Coruchéus, que era ali ao lado, onde vivia o João Ribas e o pessoal dos Censurados, a malta dos Pop Dell’Art, dos Heróis do Mar. Foram anos intensos, nem sempre pelas melhores razões.

Quais eram as razões menos boas?
Aí por volta da 85 apareceu a heroína e lembro-me perfeitamente do pessoal querer comprar erva e não haver. Em vez disso, começou a vender-se heroína aos miúdos. No final do ano letivo de 85 e seguintes estava tudo agarrado ao cavalo. Foi a desgraça de uma geração inteira. Lembro-me daquele cartaz espalhado pela cidade que dizia “Droga, Loucura, Morte”. As drogas sempre tiveram um lado de ignorância e ainda hoje é um pouco assim. As pessoas não sabiam o que era a droga e esse cartaz mostrava muito bem a ignorância e o medo.

Tó Trips com os Lulu Blind na Voz do Operário (à esquerda) e no palco do Ritz Club, à direita

Antes de tudo isso, escreves que aprendeste a tocar na guitarra da tua mãe. Com que idade é que percebeste que querias ser músico? Havia discos em tua casa?
A minha mãe cantava no coro da igreja e tocava guitarra. Esse instrumento ainda toca, está aqui ao meu lado, tenho que a limpar, está um bocadinho suja. Tive uma primeira banda e depois formei os Santa Maria Gasolina em Teu Ventre, com a qual toquei no Rock Rendez-Vous.

No livro contas que ficavas fascinado com “o pessoal que parava no Rossio, os tipos mais coloridos e divertidos naquela praça, os punks, rastafaris, os hippies, deuses negros da esplanada do café Nicola, fumando canhões, engraxando as suas chelseas, vizinhos assíduos do homem elefante”. Era esse o teu sonho rock’n’roll?
Admirava-os porque eram pessoas diferentes, tinham mais cor. O resto era tudo a preto e branco, com calças de flanela e fatos cinzentos. Até a polícia usava farda cinzenta, por isso chamávamos-lhes os ratos. Para um miúdo pequeno que via esta malta toda colorida, a rirem-se, os hippies, tudo muito exótico e com pinta, aquilo fascinava-me. Nos anos 80, Lisboa era uma cidade super decadente. A exceção eram aquelas pessoas.

Não viajavam, em família?
Não. Os meus pais não tinham capacidade para andar a viajar, quanto muito dávamos umas voltas aqui em Portugal. O meu pai tinha um café na Praça de Espanha perto do Rock Rendez-Vous chamado Shalom.

"Estudei na Escola de Artes António Arroio e comecei a trabalhar em 1989, numa agência de publicidade, como designer. Na altura era mais simples, não é como hoje, que se explora um estagiário para depois ser mandado embora. Tive a sorte de desenhar, com o Rui Garrido, dezenas de discos portugueses."

E hoje, como é viver da música em Portugal?
É difícil. Sou freelancer desde o início dos anos 2000, quando larguei meu emprego em design de publicidade para me dedicar à música. Houve alturas que tinha que pedir à minha mulher dinheiro para o metro, para ir ensaiar com o Pedro. Neste ramo, nunca sabes o dia de amanhã, mas os meus pais nunca me obrigaram a fazer uma carreira que eu rejeitasse, como muitos pais queriam ver os filhos médicos, doutores ou engenheiros, que davam tudo para os filhos serem médicos, trabalhavam dia e noite para o filho ser doutor e engenheiro.

Mesmo havendo uma conotação dos músicos como aquela ideia do sexo, drogas e rock’n’roll?
Havia pais que diziam: “Queres ser artista plástico? És maluco? Vais morrer à fome”. Mas depois também se começou a perceber que o gajo que trabalhava no banco era um vendido, que havia corrupção, que os senhores engenheiros também podiam ser bandidos. Houve uma espécie de democratização do mal. Quando fiz a tropa, de uma companhia de 160 homens, poucos tinham mais do que o ciclo preparatório ou o 9.º ano. Hoje as coisas já não são a mesma coisa, mas é fácil ainda viver situações que te deixam a pensar.

Como assim?
Sei lá, perceber por que razão um tipo da câmara municipal se deixa corromper. Há dias fui com o meu pai às urgências do Santa Maria, aquilo estava um caos. E pergunto-me: o que é que foi feito do dinheiro, dos nossos impostos, da saúde?

És pouco materialista?
Sou, mas, por acaso, tenho uma casa muito fixe. Mas se tivesse que vender gelados na praia também seria um gajo feliz. Para estar bem estar bem não é preciso ter coisas.

"Neste ramo, nunca sabes o dia de amanhã, mas os meus pais nunca me obrigaram a fazer uma carreira que eu rejeitasse"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Tiraste curso superior?
Não. Estudei na Escola de Artes António Arroio e comecei a trabalhar em 1989, numa agência de publicidade, como designer. Na altura era mais simples, não é como hoje, que se explora um estagiário para depois ser mandado embora. Tive a sorte de desenhar, com o Rui Garrido, dezenas de discos portugueses. Antes disso, ainda pensei em ser artista plástico, mas as médias eram muito altas e eu nunca fui um gajo de marrar muito.

Porque é que saíste de Lisboa para Margem Sul?
Porque vendemos a nossa casa e não conseguimos comprar outra. Digo-te isto: na altura do Johnny Guitar fiz uma jura: nunca iria ter filhos, casar ou sair de Lisboa. Aconteceu tudo. Continuo a ir a Lisboa, mas vejo que a cidade se resume a lojas, restaurantes e hotéis. Já não existe aquela cena de ter uma livraria especializada, uma loja de discos diferente, uma loja de instrumentos. E acho que a malta nova devia e podia viver na cidade, são eles que fazem as coisas acontecer.

No livro houve uma foto que me chamou a atenção: tu e o Mark Lanegan [cantor dos Screaming Trees e Queens of the Stone Age que morreu em 2022 aos 57 anos]. Como é que o conheceste?
O Pedro convidou-o para meter uma voz num disco nosso. Ele já conhecia o Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa, e aceitou colaborar connosco. Essa foto foi de uma viagem entre Lisboa e Paredes de Coura. O Pedro já estava bastante doente e foi de carro com a mulher e os filhos. Durante a pandemia, chegámos a falar sobre ele vir viver para Portugal. Estava indeciso entre Lisboa e a Irlanda, queria saber como era o custo de vida em Portugal, quanto custavam as coisas no supermercado. Acabou por se mudar para a Irlanda, apesar de eu lhe ter dito que lá estava sempre a chover. Ele nunca foi um gajo de sair, estava sempre em casa. Foi um sobrevivente, era um gajo complicado com as suas adições. E quando tens quase 60 não podes fazer essas coisas todos os dias.

O Observador agradece ao Cinema São Jorge e à organização do Festival Play pela disponibilidade para as fotografias nesta entrevista

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