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Não lhe faltaram oportunidades para fugir. Podia ter aproveitado as idas ao café ou até mesmo um qualquer momento em que o portão de casa estivesse aberto. Aliás, José (nome fictício) várias vezes cruzou aquelas portas. Mas nunca se afastou para muito longe. O que o prendia àquela vida de abusos não eram correntes, nem grades, mas a dependência.
“Parece que não se foi embora, porque não quis. Mas não é isso. Não se foi embora porque não havia mais ninguém que quisesse ficar com ele“, explica ao Observador Manuel Santos, Coordenador de Investigação Criminal da Diretoria do Norte da Polícia Judiciária (PJ). “A vida dele era aquilo. Não tinha outra almofada que não aquela.”
Em miúdo, a almofada de José era outra. Vivia na casa dos pais, em Oliveira de Azeméis, no distrito de Aveiro. Quando fez 16 anos, os pais decidiram que estava na altura de começar a trabalhar. “Ele vinha de uma família de baixos níveis socio-económicos e os pais viram-se quase na necessidade de o colocar a trabalhar desde muito novo“, afirma o mesmo responsável.
José, que segundo a investigação sofre de um défice cognitivo, foi, então, entregue a um casal proprietário de uma exploração agropecuária e de uma empresa de comercialização de vinhos na freguesia, que lhe deu abrigo em troca de trabalho.
Durante quase três décadas, serviu o casal. Mas, quando os patrões morreram e o filho herdou os negócios dos pais — e o seu mais fiel funcionário —, houve uma viragem: começaram os abusos e as agressões.
“Foi a partir dessa altura que caiu uma maior pressão sobre ele“. Para a investigação foi nessa altura que “mudaram as condições, nomeadamente as agressões verbais e físicas”. “No fundo, mudou a forma como passou a ser tratado”, explica Manuel Santos.
A denúncia, a investigação e a detenção
No dia 14 de março, a PJ deslocou-se à casa do casal, de 69 e 67 anos, e deteve ambos “por fortes indícios da prática do crime de tráfico de pessoas”, explicou fonte oficial.
A investigação, que teve início numa denúncia feita ao Ministério Público, apurou que, durante cerca de dez anos, a alegada vítima, agora com 54 anos, tinha sido “sobrecarregada com trabalhos excessivos, na área de agricultura e pecuária, incluindo fins de semana e feriados“, sem nunca receber qualquer remuneração.
A isso somava-se as condições em que o homem, que também tinha problemas ligados à dependência do álcool, vivia em casa dos patrões, descrita pela PJ como “degradante”, “sem o mínimo de condições de habitabilidade, higiene, saúde física e psíquica, privacidade e alimentação”.
A polícia acredita ainda que a vítima foi ao longo de anos “privada de toda e qualquer liberdade física de movimentos, liberdade de decisão e de ação”. Mas como pode José ter sido “privado da liberdade de decisão” se a porta do anexo onde vivia tinha vista para o portão da rua? E se, segundo já afirmou publicamente a filha dos patrões, esse “estava sempre aberto” e o homem o cruzava diversas vezes, nomeadamente para ir ao café?
José nunca foi acorrentado. Mas a dependência manteve-o preso
“As pessoas com este tipo de deficiências e carências vão-se deixando estar”, aponta Manuel Santos. “Têm medo de dar o passo seguinte, receiam ficar sem aquilo que para elas é um pseudo conforto, e ir trabalhar para outro lado.”
Terão sido essas as correntes que mantiveram José preso à casa, aos novos patrões (o filho do casal que o acolheu e a mulher deste) e ao trabalho que o obrigavam a fazer. O homem terá, então, continuado a trabalhar na empresa dos suspeitos, onde alegadamente tinha de “lavar as cubas, garrafões e tudo o que andava à volta da comercialização de vinhos”, assim como nas áreas da agricultura e pecuária. “O casal tinha animais e ele também tratava deles”, revelou a investigação.
A troco do muito trabalho, acredita a investigação, não recebia nada — a não ser um anexo e a comida, por norma sobras dos suspeitos. E agressões físicas.
Alimentava-se de sobras e não podia usar o cartão bancário
O “anexo”, divisão onde dormia, fica encostado à habitação da família. Apesar de ter uma cama, os inspetores perceberam que o homem não dispunha das condições de que precisava, sobretudo tendo em conta as suas vulnerabilidades. Não tinha, por exemplo, uma casa de banho, tendo de se deslocar à casa dos patrões. “Não sei se ficava longe ou perto, mas sei que tinha de sair do anexo para ir à casa de banho”, aponta Manuel Santos ao Observador.
Sem ter autonomia financeira para se alimentar, José também não era convidado pela família para as refeições. “Nem sempre comia e quando o fazia não era com os patrões. Muitas vezes, comia o resto das refeições deles“, apuraram os inspetores, durante a investigação.
“Podia não acontecer sempre isto”, diz o responsável, sublinhando: “Não quer dizer que todos os dias comesse o resto da comida dos senhores, mas grande parte das vezes seria essa a alimentação que lhe era fornecida.”
E José não tinha autonomia para comprar alimentos, porque, apesar de todo o trabalho, não tinha rendimentos.
“Ele tinha um cartão bancário que tinha saldo. Mas quem movimentava a conta era a senhora [patroa], que era uma das titulares”, revela, acrescentando não ter conhecimento de qual seria o saldo bancário.
O mesmo coordenador da PJ explica ainda não saber quais as razões para a patroa do homem ser co-titular da conta bancária, mas admite que possa “dever-se ao défice cognitivo”. José não era seguido, no entanto, por um médico regularmente, nem frequentava qualquer tratamento para a dependência do álcool.
“É uma injustiça que está a ser levantada contra nós”. Filha de casal assegura que homem “era remunerado, comia e dormia”
Ana, como foi apresentada numa reportagem da TVI, no programa “Dois às 10”, mostrou-se revoltada nos últimos dias “com a injustiça que está a ser levantada contra” a sua família.
“Fico mesmo constrangida e triste com a situação”, confessou, recentemente, a filha do casal que foi detido — e que saiu depois em liberdade, após ter sido presente a um juiz no Tribunal de Santa Maria da Feira e ter pago um caução de cinco mil euros cada. “Estava junto de uma família que o acolheu. Tinha um teto, um telhado, uma casa de banho, sentava-se à mesa a comer connosco. Se tivéssemos de sair em família, saía connosco muitas vezes e participava em todas as cerimónias.”
Segundo a filha do casal, José tinha inclusivamente feito uma “avaliação psicológica na unidade de saúde do norte” e, em novembro de 2021, “foi fazer um tratamento do álcool”.
Ana assegurou ainda que o homem “era remunerado, comia e dormia” e que a “porta sempre esteve aberta”, podendo sair caso não estivesse bem.
Já em relação à conta bancária de que a mãe era alegadamente co-titular, a filha disse que José “tinha um bom valor de dinheiro no banco”, mas “entretanto alguém fez transferências para outra conta”. “Os meus pais foram confrontados com isso. O dinheiro era lá colocado. Se alguém o tirou, os responsáveis é que têm de dizer“, acrescentou.
A filha do casal está confiante de que foi a família de José a responsável pelo que diz ser uma “injustiça”, apesar de não saber os motivos para isso. “O rapaz, durante esses largos anos, fez várias visitas à mãe e ao pai. Inclusivamente quando estiveram hospitalizados”, assegurou.
“No Natal, ia a casa dos pais. Quando passávamos lá [junto à casa dos pais de José], perguntávamos se os queria ver. ‘Ah, não, fica para outro dia'”, terá respondido o homem, de acordo com a filha do casal.
“O trabalho diz que a vida que não é ralhada não é governada”
Ana foi ainda questionada sobre se José sofria algum tipo de agressão física. Não foi a primeira resposta, mas a filha do casal escolheu terminar a entrevista com uma frase: “O trabalho diz que vida que não é ralhada não é governada”.
Ao Observador, o coordenador da PJ afirmou que, o que “consta num dos autos”, é que José “era agredido” e, por vezes com recurso a uma vara. Admitiu, no entanto, não ter conhecimento dos motivos e da frequência com que estas agressões aconteciam, mas que terão ocorrido várias vezes durante os dez anos em que foi alegadamente explorado.
Manuel Santos confirmou ainda ao Observador que, após a detenção do casal, a alegada vítima “foi inicialmente colocada numa instituição”, de onde acabou por sair, não tendo conhecimento de onde está neste momento. No entanto, não descarta que possa estar no centro de dia da freguesia e aos cuidados da irmã, como Ana referiu na entrevista.