[Esta reportagem foi publicada a 15 de janeiro de 2018 e recuperada a 19 de dezembro de 2018, a propósito da morte de Manuel Nascimento, com quem o Observador tinha conversado três meses depois dos fogos de outubro de 2017.]
Sozinho, sentado a apanhar sol numa cadeira de metal, ao lado de troncos cortados para lenha, com vista para os terrenos queimados e para a casa onde vive com a mulher, que milagrosamente ficou intacta depois daquele 15 de outubro, o pior dia de incêndios do país. Foi ali que encontrámos Manuel Nascimento, o homem que há precisamente três meses foi fotografado a ser confortado por Marcelo Rebelo de Sousa dentro do carro, quando chorava copiosamente por ter perdido grande parte do que tinha. “Foi ali, naquele carro. Eu do lado do condutor e o Sr. Presidente ao meu lado”, lembra Manuel, a apontar para o veículo. A fotografia acabou por se tornar uma das imagens mais marcantes da segunda tragédia dos fogos em Portugal.
Manuel lembra-se bem de tudo o que Marcelo Rebelo de Sousa lhe disse naquele dia. “Disse-me para arranjar coragem, para avançar com a vida”. Mas volta a chorar. “O mal é eu lembrar-me de tudo, se não me lembrasse não me dava este aperto”, explica ao Observador. “Oh homem… deixa lá. Estamos vivos, não é?! Já foi, pronto”, diz a mulher, pousando a mão sobre o ombro do marido. Mas Manuel Nascimento não se conforma. “Trabalhei toda a minha vida para quê? Para agora morrer sem nada”. Recebe pouco mais de 260 euros de pensão e há cerca de um ano que paga, pelos dois, 280 euros para uma associação lhes prestar apoio domiciliário e levar comida. “Não chega para nada”, diz.
Alambique, no concelho de Tondela, foi umas das povoações mais afetadas pelos incêndios de outubro. Um manto negro abateu-se sobre a povoação, deixando para trás um rasto de destruição que ainda se vê hoje. Várias foram as habitações e terrenos privados consumidos pelas chamas do dia 15.
Quatro dias depois, quando Marcelo visitava as zonas afetadas, passou por Alambique e, passando por dentro daquele quintal, deparou-se com Manuel Francisco Nascimento. Sentado ao volante de um microcarro, o homem de 82 anos não chegou a levantar-se. Não conseguia. Foi o Presidente da República que abriu a porta do pendura e se sentou ao lado dele, que começou a chorar copiosamente. “Não tenho palavras, senhor professor!”. Com a voz engasgada pelas lágrimas, contou que perdeu terrenos, “oliveiras carregadas de azeite” e várias máquinas agrícolas. “Foi tudo à vida!”, disse, para se entregar de novo a um choro violento. “82 anos… é uma vida! E é uma vida a trabalhar para nada!”.
As lágrimas desse dia mantêm-se iguais às de hoje. Porque cada vez que descreve o que lhe aconteceu, não as consegue evitar. A mulher, Laurinda, queixa-se de que tem “um problema na cabeça”: esquece-se das coisas. Manuel está mais lúcido, o que não é necessariamente bom. “O meu problema é ter a cabeça tão bem, assim lembro-me das coisas”, desabafa ao Observador.
Mais ajudados por desconhecidos do que por amigos
A verdade é que Manuel Nascimento nunca teve uma vida fácil. Era pedreiro, trabalhou na Alemanha e em França, voltou para Portugal e teve de se reformar cedo por invalidez. “Tive um acidente de mota há mais de 40 anos que me partiu a perna em dois sítios”, conta. Há 15 anos, novo azar: um AVC que o deixou imobilizado nos membros do lado esquerdo. “Este homem nunca teve sorte nenhuma na vida”, comenta a mulher, que entretanto se sentou num tronco de lenha ali ao lado.
Não reconstruiram nada do que perderam naquele dia 15. O trator que ardeu mantém-se no mesmo sítio, junto ao barracão onde guardavam as batatas, e à capoeira que também ficou toda queimada, apesar de as galinhas terem sobrevivido. Hoje, são o entretém de Laurinda, que admite gastar dinheiro a mais para tratar delas. Já o dinheiro necessário para arranjar o trator era o equivalente a um novo, por isso Manuel não quis. Ao Observador, explica que, tal como as outras vítimas, teve de se deslocar a Adiça, em Tondela, para preencher um formulário com os bens perdidos. “Disse tudo mas não disse que perdi o trator, senão tinha de devolver 25%” do valor que ia receber, explica. Acabaria por receber dois cheques, no total de 2.300 euros. Não sabe precisar de quem, de que entidade ou organismo, só que lhe chegaram na caixa do correio.
Mas há outra ajuda de que Manuel e Laurinda não se esquecem. Veio de pessoas que admitem que não conhecem, nem nunca, infelizmente, terão oportunidade de conhecer. Uma ajuda que veio do outro lado do Atlântico, de imigrantes portugueses em Toronto, no Canadá, que tinham pedido ao presidente da junta de freguesia o contacto de pessoas que precisassem de ajuda. “O presidente da junta veio-nos procurar e pediu-nos o número da nossa conta, foi assim”, conta Laurinda, agradecida pelo apoio que veio mais de desconhecidos do que das pessoas mais próximas. “Custa-me dizer isto, mas nós tivemos mais ajudas de pessoas que não conhecemos do que daquelas que nos deviam tantos ‘obrigados’. Passavam aqui e não diziam nada. E nós só queríamos conversar”.
As ajudas viriam a servir, não para reconstruir os estragos, mas apenas para a sobrevivência diária. “Usei para orientar a minha vidinha”, diz Manuel, gesticulando com a mão na direção da boca. A lenha que tinha conseguido juntar, e que durava para três ou quatro invernos, foi “toda à vida” no dia dos incêndios. Agora, tem-lhes valido um amigo, que lhes leva lenha com um trator emprestado. As oliveiras, que estavam “carregadinhas de azeite”, também arderam — sobraram três. Laurinda aponta para o terreno nas traseiras de casa, que já começa a ficar revestido de um manto verde rasteiro que substitui o negro da passagem do fogo. Mas é só erva daninha, a horta de antigamente deixou de ser prioridade. “Agora já não consigo”, diz Manuel.
As imagens das chamas a cercarem a casa não lhes sai da memória. Manuel e Laurinda recordam que o fogo já estava ali, “mesmo à portinha”, quando o filho os foi buscar, ao colo, e os levou ao hospital. Laurinda só teve tempo de soltar o cão, o “Turco”, que não fugiu e ainda hoje estava novamente no quintal, junto ao portão. “Soltei a coleira e quando voltei ele andava por aqui, coitadinho. Nunca foge, é mansinho”.
Três meses depois do fogo lhes ter levado quase tudo, Manuel e Laurinda estão sozinhos. Quando está sol, Manuel Nascimento passa boa parte do dia sentado na cadeira do quintal. Laurinda, ou está em casa ou distrai-se a tratar das galinhas. Um par de canadianas serve para os dois, um com uma, outro com outra. Admitem que pouco falam um com o outro. A alegria é quando vem gente de fora para conversar, o que raramente acontece.
Quando o Observador chegou ao portão de casa, Laurinda admitiu que pensava que eram as “meninas do voluntariado”, que depois dos incêndios apareceram por lá e lhes deram aquilo que mais queriam: conversa. Na altura prometeram que voltavam. “Passamos o dia todo aqui sozinhos, quase nem falamos um com o outro — falar de quê? Obrigado por terem vindo”, despede-se Manuel.