Quase ninguém olha para cima. Concentrados na bebida que têm nas mãos, atentos às conversas que se multiplicam, ansiosos pela música que já se ouve, ainda meio em surdina, quase ninguém olha para cima. Mas ele está lá. É feio, grandalhão, já não se aguenta sem ajuda, não apetece estar ao pé. É tão feio, tão velho e tão mal apresentado que custa a crer que esteja ali, quase a sujar o cor-de-rosa da rua, uma nódoa neste Cais do Sodré que é, desde há uns anos, uma das zonas mais famosas e mais procuradas de Lisboa.
O prédio que faz esquina entre a Rua Nova do Carvalho (pintada de cor-de-rosa) e a Travessa dos Remolares é seguramente um dos que pior aspeto tem em todo o bairro e parece votado ao abandono, entregue aos muitos pombos que se veem a esvoaçar por entre as janelas partidas e escancaradas. Nas suas entranhas, contudo, vivem mais do que pombos. Há pessoas a morar em quase todas as casas de cada um dos cinco andares do edifício.
Para se chegar à casa de Estrela, chamemos-lhe assim, é preciso subir seis lanços de uma escada instável, de madeira com fendas e já mal pregada. Ao longo do caminho, o prédio vai revelando a debilidade: vidros partidos, grafittis nas paredes, estuques caídos, chão com remendos, tetos que deixam antever o piso seguinte, muito lixo. “Esteve muitos anos, bem à vontade 20 anos, sem porta lá em baixo, e tudo isto era droga escada abaixo, escada acima”, explica Estrela, que recebe o Observador à porta do apartamento em fato de treino.
Estrela aponta para uma pequena varanda que dá para o saguão e comenta, com simplicidade: “Tomo banho aqui.” Nada mais se vê do que uma cortina e um chão de betão.
Daqui para a frente, máquina fotográfica não entra. Estrela – relembramos: nome fictício – mora aqui há 30 anos e não tem contrato de arrendamento, nem nunca teve. Mas sempre pagou renda. “Fui hóspede de uma senhora que faleceu no lar em Campolide e alugaram-me um quarto e estava cá uma hóspede antiga”, diz. Ou seja, viviam ali três mulheres, e com a morte sucessiva das duas companheiras de casa, Estrela acabou por ocupar todo o apartamento.
O que é mais evidente quando se entra na casa de Estrela é que, ao contrário das áreas comuns do prédio, aqui não há grandes vestígios de degradação, pelo menos à primeira vista. “Gosto de coisas alegres, não gosto de preto nem de roupa escura”. O cor-de-rosa do fato de treino é disso prova, tal como o cor-de-rosa, misturado com azul-bebé, verde e papel com bonecos que decoram as paredes. São estratégias para disfarçar os problemas da casa, que Estrela vai elencando à medida que faz a visita guiada. “Não tenho instalação para ligar nem máquina de lavar, casa de banho também não tenho”, diz na colorida cozinha. A chaminé está tapada com cimento. A roupa é lavada num tanque de pedra. A louça é lavada num alguidar. Estrela aponta para uma pequena varanda que dá para o saguão e comenta, com simplicidade: “Tomo banho aqui.” Nada mais se vê do que uma cortina e um chão de betão.
Antes de a rua ser cor-de-rosa, este prédio, estas pessoas, este bairro, este Cais do Sodré já existiam. A vida aqui era muito diferente do que é hoje, as pessoas também. Desse tempo sobra pouco mais do que a memória daqueles que testemunharam a evolução da zona. Estrela é uma dessas pessoas, é um pedaço da história do bairro, não só porque aqui vive há três décadas, mas também por ter passado por alguns bares da Rua Nova do Carvalho. “Estive desempregada quando vim para aqui, ao fim de três anos arranjei trabalho nos bares, no Niagara, Roterdão e Escandinávia.” Dos três, só há vestígios do Roterdão, atualmente fechado mas prestes a ter uma nova vida. Para identificar os outros é preciso o olho experimentado de Estrela, que, à janela, ao lado da gaiola onde pousa um rosicolor, aponta as antigas encarnações dos estabelecimentos da rua: Shangri-La, Niagara, Escandinávia, Arizona, Dom Frade, Texas.
“Era um ambiente diferente… mais gente, marinheiros e prostituição. Viam-se muitos marinheiros, mil e tal e dois mil e tal. Muitos mesmo.” Os barcos deixaram de ser os principais fornecedores de clientela à vida noturna do Cais. No seu lugar está agora uma população jovem e urbana que só descobriu que havia vida na zona quando alguém teve a ideia de pintar a Rua Nova do Carvalho de cor-de-rosa. E a animação trouxe confusão, barulho e lixo, o que tira o sono a muitos moradores das redondezas. Não a Estrela, que diz dormir tranquilamente. “E porque não? Há tantos anos aqui, já estou habituada ao ruído. Tanto que, quando eu deixei de trabalhar [nos bares], comprei uma telefonia e deixava-me dormir com os auscultadores nos ouvidos. Sentia falta do ruído da música”.
Estrela não faz parte do futuro do edifício, por não ter contrato de arrendamento. “Disse-me na escada: veja se arranja casa porque tem de se ir embora. Assim neste tom. Com arrogância.”
Ainda hoje, a televisão que tem na sala está quase sempre aos altos berros, “para fazer companhia.” Esta é uma das duas divisões da casa que dá diretamente para a rua cor-de-rosa, onde todos os fins de semana se concentram milhares de pessoas. Barulho é coisa que não falta, portanto. Na divisão ao lado fica um dos três quartos, onde está o “maior tesouro” da casa: os azulejos do século XVIII, ali preservados como em mais nenhuma parte do prédio, onde já tudo desapareceu. Mas todo o apartamento está repleto de pormenores que despertam a atenção. Num ambiente um tanto kitsch, património pombalino convive com bonecas penduradas das paredes, prateleiras repletas de pratos, fotografias e flores espalhadas por todo o lado, mobiliário antigo, imagens de santos e, logo à entrada, um enorme quadro do Menino da Lágrima.
O cenário já foi muito pior. Quando a última hóspede morreu, “andei três semanas a pôr lixo lá em baixo. Essa senhora deixou fogões, frigoríficos… três frigoríficos, três fogões… Gastei dinheiro, muito dinheiro, a levar o lixo lá para baixo. Fui-me abaixo um bocado porque emagreci muito e é assim: ficou-me no corpo”. O esforço parece ter sido em vão. No fim de 2014, quando começaram a chover pedras na rua e o prédio recebeu a estrutura metálica de proteção que hoje o enfeita, a senhoria decidiu que era altura de fazer obras, previstas para o próximo verão. Só que Estrela não faz parte do futuro do edifício, por não ter contrato de arrendamento. “Disse-me na escada: veja se arranja casa porque tem de se ir embora. Assim neste tom. Com arrogância.”
Estrela, 70 anos, 251 euros de reforma, divorciada e com duas filhas com quem pouco contacta, nada mais tem do que os recibos da renda que deposita mensalmente na Caixa Geral de Depósitos para defendê-la. “Não sei o que ela quer fazer a meu respeito”, diz sobre a senhoria, numa voz já algo embargada e onde se notam resquícios de amargura pelo muito que já viveu. “Sou uma pessoa só”. E consegue rir-se. O mesmo riso vem-lhe aos lábios pouco depois, quando fala dos sonhos que já não alimenta. “Que Deus me dê o dia-a-dia com muita saúde, muita sorte, muita paz para mim e todos os meus”, resume, simplesmente.
La salsa de Leiria
Com cinco anos fugiu da guerra. Literalmente: correu e misturou-se na vegetação dos matos angolanos até chegar à fronteira da República Democrática do Congo. Quando o estômago grunhia, como os homens que lutavam por pedaços de terra, recorria às frutas penduradas nas árvores. “Fugimos.”
Se alguém em Hollywood conhecesse a história de Pedro Menga, de 58 anos, era capaz de fazer uma brincadeira. A sério. Vai um teaser? Este homem nasceu em Angola, fugiu do peso do chumbo e do cheiro da pólvora, e aterrou no Congo. Por lá ficou qualquer coisa como 30 anos. Foi eletricista e bailarino, mas sonhava ser baterista e imitar aquele que batucava na banda de Bob Marley (“Inventávamos tudo para criar uma bateria para ver quem era o grande baterista do bairro”). Viajou pelo mundo e ficou apaixonado por Cuba. E por salsa. Veio para Portugal em 1998, e a primeira coisa que lhe aqueceu o sangue foi o União de Leiria. Convencidos?…
“Antes gostava de viver aqui”, desabafa. “Desde que cá estou sempre vivi no Cais do Sodré, a zona é boa. Há transportes para todo o lado. Há cinco anos era muito melhor, mas desde que fecharam a rua [ao trânsito], criaram este ambiente.
Hoje vive numa das ruas mais famosas de Lisboa: Nova do Carvalho (rua cor-de-rosa). “Quando chegámos em 98, ficámos numa pensão, na [Avenida] 24 de Julho, em frente ao mercado. Depois arranjámos este sitio. Viviam drogados aqui no prédio. Tínhamos de negociar para ver se eles saíam. Não tinha condições. Não tinha casa de banho, estava suja, havia pombos…”, conta. À porta, e um pouco espalhadas por toda a casa, há caixas cheias com pertences, que faziam adivinhar um abandono para breve.
“Estamos a arranjar um sítio porque a situação é muito complicada. Viver aqui é chato. Ao fim de semana é barulho, barulho, barulho. Não se dorme. Há luta na rua, a polícia vem aqui a toda a hora. Estamos a procurar casa. Temos de sair daqui, até porque temos alguns quartos onde chove lá dentro, e na cozinha também”. A casa já tem casa de banho, água, luz e está num estado aceitável, pelo menos para os olhos que não a conhecem. Há alguma ferrugem aqui e ali, há paredes a escamar, há coisas por arranjar, mudar. Há sinais de que esta não é uma casa para usar o verbo ficar.
“Antes gostava de viver aqui”, desabafa. “Desde que cá estou sempre vivi no Cais do Sodré, a zona é boa. Há transportes para todo o lado. Há cinco anos era muito melhor, mas desde que fecharam a rua [ao trânsito], criaram este ambiente. O Bairro Alto fecha às 2h e eles vêm todos para aqui. Isto aqui está mal, muito mal”, queixa-se, coincidindo os timings com a transformação da vida noturna na Rua Nova do Carvalho. “Se a lei vai obrigar os bares a fecharem mais cedo vai ser melhor, porque nós passamos mal aqui.”
Pedro Menga vive longe dos quatro filhos, com idades entre os 10 e 25, e garante que não é fácil. Mas é melhor. “A mentalidade é complicada. Aqui há muitas crianças que entram no mundo da droga. Lá estão a estudar, está tudo bem.” Não vai a Angola há 15 anos, mas ele e a mulher, Elisabete, que trabalha como auxiliar de limpeza, conseguem enviar 200, 300 euros por mês. “O salário mínimo lá é 150 euros.”
Pedro Menga vive longe dos quatro filhos, com idades entre os 10 e 25, e garante que não é fácil. Mas é melhor. “A mentalidade é complicada. Aqui há muitas crianças que entram no mundo da droga. Lá estão a estudar, está tudo bem.”
Entalado, entre a língua e os dentes, está um mar de críticas ao seu país. “Se as pessoas querem tomar banho, não há água na torneira. Fica-se dois, três dias sem energia e dá-se em maluco. Há geradores em todos as casas dos prédios. Há engarrafamentos de horas. Há lixo em todos os cantos, não há saneamento”, diz, imparável. Foi esta a forma que arranjou para puxar Lisboa para cima e porventura esvaziar as saudades da sua terra, de onde fugiu com apenas cinco anos. “Não se pode andar com uma sacola porque a polícia está logo aí e temos de mostrar o que temos lá dentro. Há pouca liberdade. Em Lisboa é mais calmo, desde que uma pessoa não se meta em situações. Se está em linha, ninguém vai chatear. Quando é para beber um copo compro e bebo com amigos aqui ou em casa deles. A certa hora já sei que tenho de voltar porque não posso andar aí na rua [cor-de-rosa] a partir da meia-noite. Há sempre malucos por aí. Os que bebem vão sempre chatear.”
O desemprego bateu à porta há uns anos, mas vai fazendo “uns biscates” como eletricista. Quando era miúdo apanhava baterias e pilhas nas lixeiras “para criar”. O seu quarto era o único que estava iluminado em casa, o que deixava o tio intrigado. “Mas aqui não temos energia! Esse rapaz tem energia no quarto como?!”, lembra a altura em que tinha 14 anos. No computador, na secretária da sala, virada para uma zona mais sossegada, estava aberto o e-mail à espera de boas notícias. “Estou a candidatar-me para uma empresa do Porto que vai levar um eletricista para Angola.”
O sorriso volta a reivindicar um espaço no seu rosto quando tropeçamos nas histórias de Cuba e no amor pela dança. “Trabalhei no ministério da Cultura de Angola a meio da década de 80 e viajámos muito. Era uma delegação da juventude que fazia parte do ballet nacional angolano. Fui bailarino. Estive em Coimbra, Porto e Algarve. Mas também fomos à Rússia, França, África e Cuba… Em Cuba, onde fomos para um seminário de dança, ficámos mais de seis meses. Gostei muito. É uma terra maravilhosa. O povo é acolhedor. Podemos bater às portas e pedir tudo. Dançava todos os fins de semana, em todo o lado, em todas as praças há salsa. Bebíamos rum e a cerveja local. Fomos a Guantánamo e tudo.”
Salsa e kizomba são a sua praia. Reggae já o foi, outrora. Não percebe a barulheira do rock e das músicas das discotecas (“pam pam pam!!!”). A história de os miúdos irem até ao Rock in Rio idem. “Vão lá para saltar… vão lá para fazer ginástica! Eles não dançam. Dançar tem de apresentar sentimento no gesto organizado. Agora pular…”, diz, com o tom mais sereno e meloso de toda a conversa.
Depois dessas aventuras todas atuou na Expo 98, que serviria para piscar o olho à capital portuguesa. Por cá ficaria. Nas habituais missões de quem muda de vida, lá foi comprar uma televisão em segunda mão. Depois de inventar uma antena e sintonizar os quatro canais, carregou no botão para a ligar. Estava a dar futebol. “Era o [União de ] Leiria!”, conta, com um senhor entusiasmo. Luis Vouzela, Dinda, Bakero e Duah davam nas vistas, mas os nomes que invadem a mente deste angolano são outros. “O ninja (Derlei!), Silas, o Mourinho… Demos cabo de Sporting, Porto e tal”. O treinador português esteve em Leiria em 2001/2002, deixando o clube no quarto lugar antes de se mudar para o FC Porto a meio da época. Menga não brincava em serviço e até foi à Cidade do Lis conhecer a direção e o estádio. A recompensa foi um cachecol do clube que hoje anda longe do convívio dos grandes.
Menga mora no quinto esquerdo, o único habitável do andar. Não paga renda porque a senhoria defendeu que a casa não tinha condições mínimas e que “era emprestada”. A porta da casa ao lado está tapada por uma camada de cimento. Era o refúgio de um homem que pernoita agora entre o quarto e o quinto andares, entre os lanços das escadas, que tapa a cabeça enquanto os passos de desconhecidos o cercam. Tem roupa pendurada na parede esburacada que ameaça ruir sem aviso. Uma toalha do desenho animado Pikachu, um ou outro casaco e vários pares de ténis completam o seu “roupeiro”.
“O rapaz estava no quinto direito, mas fecharam aquilo, não tinha condições”, conta Pedro Menga. “Era chuva que caía, havia pombos lá dentro, estava tudo sujo. A proteção civil é que fechou aquilo. Aqui temos sempre vistorias. Ele é um bom rapaz. Sai para arrumar os carros e uma senhora do terceiro andar leva-o para fazer limpeza nuns barcos… mas infelizmente está aí. Deve ter uns 30 e tal anos…”
Texto: João Pedro Pincha e Hugo Tavares da Silva
Fotografias: André Correia