Café coado, água filtrada e o sol a romper pela divisão adentro. É uma cozinha brasileira em agosto, pleno inverno abaixo do equador. A carioca Ava Rocha, uma das compositoras mais influentes da sua geração, recebe o Observador na sua própria casa — agradeçam às videochamadas internacionais. Conversamos sobre a sua última criação, Néktar, um candidato a álbum brasileiro do ano. E esta cozinha foi o cenário para um episódio crucial de Néktar: Ava Rocha ouviu dois violões ao desafio, do companheiro Negro Leo e do colega Saulo Duarte.
“Cada um tinha um violão, e eu ficava escutando aquilo e eles não botavam letra, não botavam melodia, só ficavam ali com aqueles violões.”
Os músicos estavam há horas naquele ramerrame, até Ava Rocha, uma repentista natural, invadir a cena: “Entrei cantando: ‘Tanto faz se você disfarçoooou’. A canção “Disfarce” foi criada ali, entre a cozinha e a sala, uma síntese Néktar: Ava Rocha incorpora um narrador inebriado de desejo, que percorre alucinações dramáticas; e a flexibilidade da sua voz move-se entre a elegância, a gravidade e o grito indomável.
“Esse é o prisma do tempo
Agora eu me encontro em outro lugar sem sentido
Que afinal tu não estás
Se livrou de mim
Mas ninguém se livrou de si”
Este sujeito poético está profundamente fragmentado no corpo, tempo e espaço, não sabe ao certo quem é e onde está, mesmo que seja sempre Ava Rocha entre 2020 e 2022, na sua própria cozinha — a confusão temporal é generalizada, culpem a pandemia e demais desgraças. No início de 2020, Ava Rocha estava prestes a gravar um novo álbum e, pela primeira vez, iria subir a um palco português, o Teatro da Trindade em Lisboa. O resto da história já conhecemos: pandemia, concertos cancelados e açambarcamento de papel higiénico. A reação imediata desta artista multidisciplinar foi acelerar a produção criativa, realizou filmes, concertos online e escreveu poemas e cantigas. Entre os poemas, um momento eureca, compôs “Nasce uma Flor” e imaginou uma saída desta tragédia. “Uma flor pode nascer no meio de um asfalto”, resume a génese do poema. “O desejo pela vida é forte, é capaz de romper o asfalto e brotar no cimento.”
As canções de Ava Rocha, com a pandemia e o governo de Bolsonaro como pano de fundo, são as flores que rompem o asfalto. Esta urgência de vida foi traduzida numa nova palavra, Néktar, um rebuçado que se enrola doce, feminino e sensual. “Néktar é a força de transformação. Representa o desejo de gozar da vida. Uma pulsão de vida que a gente precisa ter, apesar de toda a dor.” Numa das suas canções mais introspetivas, “Asas de Aluguel”, ouve-se o escorrer do próprio desejo, representado pela água, pelo rio, pela maré, os líquidos que vertem sobre a felicidade ébria desta marinheira. “É como se houvesse uma personagem principal, em que, através desse percurso, ela está bebendo esse choro, ela está bebendo essas encruzilhadas da vida e ela está se transformando”, argumenta, resumindo o seu quarto álbum de originais: “Um disco molhado, um disco suado, um disco chorado, um disco gozado”.
O gozo de Ava Rocha é a transformação. E a luz desta fotossíntese são os produtores Thiago Nassif e Jonas Sá, músicos reconhecidos em nome próprio, que colaboram com a carioca a montar cenários elegantes, de arranjos de cordas sumptuosos, assim como paisagens sinistras, canções assombradas por melodias defeituosas, e não esquecemos a sensualidade, o balanço do baixo e percussão, as brincadeiras com groove. Segurem as ancas e ouçam “Lua Absurda”, uma dança elétrica entre dois amantes:
“São lâmpadas acesas sobre as nossas cabeças
São lágrimas de amantes de leve aspereza”.
“O amor é o centro de tudo. E não é só o amor romântico, é o amor pela vida, pela poesia, pela imaginação. É o amor que move. E é o amor também que nos salva, que nos resgata”, justifica a compositora. O amor é salvação em “Coração envenenado”, depois tantas voltas por aí, nada a fazer, o destino final é sempre o mesmo — beija-me e cala-te, diria Angel Olsen, ou na versão de Ava, “Me dá um beijo e some”.
“Quem vai ousar em me dizer
Quе não tenho meu valor
E não tenho sеu amor?
Hoje já não posso nem saber
O que eu faço com você
Me dá um beijo e some”
A distância é uma estratégia para assegurar o desejo, as canções de Néktar partem de uma separação e atiçam o apetite — “Longe de ti sou mais eu/ Longe de mim tu é ninguém”. “Longe Longe de Mim” é a música mais surpreendente do álbum, um samba com uma mulher a desfilar na avenida e outros que tais, um lugar-comum que julgávamos impensável em Ava Rocha, a compositora que, por exemplo, incorporou uma bruxa em “Joana Dark” que fuma “semana inteira” as “fumacinha do pecado”, ao som de, aparentemente, uma máquina de lavar louça a revirar instrumentos. E “Longe Longe de Mim” não é um exercício irónico como Jards Macalé, ou pós-irónico como Rodrigo Campos, é absolutamente genuíno – servem estas duas referências para alertar que estes músicos também são candidatos a álbum do ano, a saber, Coração Bifurcado e Pagode Novo.
“Eu tinha a intenção de me colocar de uma forma mais direta, de uma forma mais popular, de uma forma que fosse menos dificultosa para as pessoas, com simplicidade”, justifica. “Que eu pudesse mostrar minha essência também sem fazer mergulhos mais complexos. Sem desmerecer a inventividade, a autenticidade, quem eu sou, e sem desmerecer o público também. Eu não acho que você precise dar comida na boca do público. E também não acho que o público não tenha a capacidade de se envolver.”
O segundo samba é “Barco nos pés”, desta feita mais candomblé que avenida, em colaboração com Iara Rennó. O imediatismo destas melodias, que em Portugal poderiam perfeitamente ser transmitidas na Tropical FM, entre Alcione e Marisa Monte, recordam o primeiro momento de glória de Ava Rocha, em canções como “Você Não Vai Passar” e “Transeunte Coração”. O segundo álbum, Ava Patrya Yndia Yracema, foi uma epifania na música brasileira, um clássico imediato, que serviu como um reflexo para os desejos dos ouvintes: as canções melosas prometiam uma nova diva MPB; mas a antropofágica “Boca do Céu” anunciava um regresso à utopia tropicalista; por outro lado, “Auto das Bacantes” não deixava dúvidas, era uma herdeira da experimentação rítmica de Jards Macalé ou Itamar Assumpção, uma marginal da canção brasileira. E Ava Rocha não seria nenhuma destas coisas em particular, mas todas ao mesmo tempo.
A canção “Nektar”, em castelhano, é uma nova dimensão musical, não é propriamente um reggaeton, mas funde-se na batida mesclada de ritmos sul-americanos, dancehall e hip-hop. A batida permanece na faixa seguinte, “On/Off”, a mais jocosa do álbum — “Me coloco no on, eu tô reggaeton/ O mundo explodindo е tu se sentindo, sorrindo infeliz”. É a segunda vez que canta em castelhano, uma ligação direta à sua ascendência colombiana — Ava Rocha é filha da artista plástica e cineasta colombiana Paula Gaitán, e do célebre realizador brasileiro Glauber Rocha, mestre do Cinema Novo. Os dois conheceram-se em Bogotá, reencontraram-se no Rio de Janeiro, casaram e tiveram dois filhos. Contudo, os primeiros anos de vida de Ava Rocha e do irmão seriam na geografia menos tropical possível: a serra de Sintra.
“O meu pai fez um exílio voluntário em Sintra e infelizmente, o final da história culmina com o falecimento dele e, enfim, com o nosso retorno para o Brasil”. Os últimos anos do realizador em Portugal foram celebrados em filme, no “Diário de Sintra”, de Paula Gaitán. Um dos ensinamentos de Glauber Rocha é a entrega do corpo à arte, basta recordar o realizador no documentário “As Armas e o Povo”, em plena Revolução dos Cravos, a gravar e entrevistar pelo próprio punho. “O cinema do meu pai era um cinema do corpo. Ele carregava o movimento político no corpo, é um cinema inventivo, libertário, corajoso”, reflete, admitindo a influência profunda dos pais.
Entre Bogotá e Rio de Janeiro, Ava Rocha cresceu obcecada pelo escurinho do cinema, em nenhum momento ocorreu-lhe que a música seria uma carreira. “Muita gente falava para eu cantar e eu queria cantar, mas eu não sabia o que deveria cantar”, recorda. “Precisava compreender a minha linguagem, que imagens são estas que me povoam e que me levam ao cinema. Que música é essa? Era uma inquietação musical da qual eu não tinha resposta.” Um dos seus primeiros projetos como cineasta foi documentar uma versão dramatizada de “Os sertões” de Euclides da Cunha, encenada pelo recentemente falecido José Celso, fundador do Teatro Oficina, em São Paulo. Durante os ensaios, José Celso ouve Ava a cantar e lança o desafio: sobe ao palco e canta. “Naquele momento eu compreendi que eu podia fazer tudo o que eu quisesse.”
A última vez que entrevistámos Ava Rocha foi em 2018, lançava então o sucessor ao celebrado Ava Patrya Yndia Yracema, o álbum Trança, a confirmação de uma voz excêntrica sem concessões. Neste projeto colaborativo, convidou 38 músicos para abraçarem o universo particular da carioca, desde Tulipa Ruiz a Dinho dos Boogarins. “O Trança foi um disco muito mal compreendido, porque as pessoas não conseguem trançar, têm uma dificuldade enorme de se envolver com coisas que aparentemente são mais estranhas. Mas para mim não é estranho. Para mim nada é estranho.” Em certa dimensão, o Néktar apaga o fogo ateado pelo Trança. “Mas eu sempre trabalhei nessas duas forças. A gente não é uma coisa só. E é por isso que eu continuo fazendo discos. Até talvez conseguir me expressar por completo”.
A composição, gravação e interpretação de discos é também um ato de resistência. A criação em oposição à destruição, um mote que segue furiosamente desde a emergência do movimento político do bolsonarismo. “A questão do Bolsonaro é algo que cala fundo no peito, algo que dói, algo que mata, algo que corrói. E a minha arte e a minha resistência quotidiana é um fluxo para frente”, explica. A canção final de Néktar é um destes pontapés para a frente, “Beijando todos vocês”, um apelo à calma, à generosidade, à lua, Cuba e Lula, uma grande suruba antropofágica de beijocas, ao ritmo carnavalesco.
“Divagar
Não quero chegar
Porque não sei
Onde posso chegar
Então não sei
Não importa se sei
Não importa se cheguei
Eu vou devagar
Observando os planetas
Plantando cometas
Pra me alimentar”
A meio caminho de 2023, ainda há muita hesitação entre os brasileiros para onde vai chegar este ano, quais os resultados do regresso de Lula da Silva a Brasília, a sucessão de casos judiciais do anterior presidente, os resquícios da pandemia, ou o aumento da violência policial. As mortes de José Celso, Rita Lee e Gal Costa contribuem para a incerteza do futuro. Que país é este? “O Brasil está em movimento”, responde assertiva, novamente a trocar-nos as voltas e a responder à morte com vida. “A pulsão é de transformar. Você não vai se afogar nas suas deceções. Você tem que ir para frente”. O mote está entregue: a viagem é atribulada mas siga em frente, de preferência embalados pela exuberância otimista de Ava Rocha.