As criptomoedas precisam de uma boa notícia este ano, depois da queda da Terra/Luna e da plataforma Celsius. Ela chegou logo pela manhã. Por volta das 7h40 (em Lisboa) o panda apareceu no vídeo que acompanhava a emissão em direto da revolução que acontecia na segunda maior criptomoeda. A rede ethereum passou de uma mineração assente na prova de trabalho (proof of work), em que são mineradas novas moedas através da ação de computação, para uma validação assente em prova de participação (proof of stake), em que são os detentores de maior número de ether que validam as operações.
A migração está a ser preparada há cerca de dois anos e esta manhã aconteceu o momento zero, apelidado como “The Merge”. É que esta migração de conceito acontece por via da fusão da rede principal ethereum com a Beacon chain, cujo lançamento em 2020 já foi o primeiro passo para a operação. As duas redes foram correndo paralelamente até esta quinta-feira, 15 de setembro, em que se tornaram uma só.
“Aconteceu o esperado. A transição correu como planeada”, comenta ao Observador o analista de criptomoedas Tiago Emanuel Pratas, que, no entanto, chama a atenção para o facto de o processo continuar a correr. “Um pequeno passo de um grande processo”. Um pequeno passo de dois anos que, no entanto, foi seguido por milhares de pessoas nas redes sociais e na emissão no Youtube que aconteceu em direto.
“A transformação é o acontecimento mais marcante dos últimos sete anos para a ethereum”, realça a XTB numa nota sobre o processo, falando também do que ainda vem aí.
Para já, a fusão aconteceu sem que houvesse sobressaltos ou perda de tokens ou de transações, salienta Pedro Borges, da Criptoloja, salientando que o processo foi “muito bem feito”, ainda que assuma, a título pessoal, que é adepto das moedas que resultam de prova de trabalho, como é o caso da bitcoin.
O que aconteceu?
Por volta das 7h40 foi feita a fusão que permitiu essa troca de modelo de proof of work (PoW) para proof of stake (PoS). Quando tal se concretizou os novos blocos adicionados já foram pela via da prova de participação, desconsiderando-se os blocos propostos pelos mineradores na rede ethereum que utiliza proof of work. “Pandas!”, gritaram os entusiastas que acompanharam em direto a emissão – o panda acabou por ficar o símbolo desta operação.
Houve fusão de duas redes, para se passar para a prova de participação, mas nem todos aceitaram esta migração, tendo, por isso, ficado alguns na anterior rede de prova de trabalho – todas as decisões são tomadas por consenso entre programadores, detentores de moeda e pessoas que construíram aplicações em cima da blockchain Ethereum. Foram principalmente os mineradores – que vão agora ficar “desempregados” – que se opuseram à mudança. Investiram valores estimados em 5 mil milhões de dólares para correr o mecanismo de prova de trabalho e agora deixam de precisar do hardware pelo menos para esta moeda. Deixa de ter vantagem quem tem poderosas máquinas, ficando em melhor posição quem tem mais ethers.
O que significa que vai haver nova ethereum baseada no PoW. A ethereum que protagonizou agora a fusão mantém o “tiker” ETH. Aliás, esta já tinha resultado de uma cisão anterior (que na linguagem das criptomoedas se designa por ‘fork’), que acontece quando os programadores querem fazer alguma alteração mas nem todos estão de acordo. É por isso que ainda negoceia uma moeda designada ethereum classic. Mas a ethereum é que ganhou mercado até se tornar a segunda maior criptomoeda, a seguir à bitcoin.
Ainda que tenham permanecido alguns na anterior moeda, a migração que aconteceu esta quinta-feira foi quase total tecnicamente e ao nível da comunidade.
Nesta migração, os mineradores de ETH foram substituídos por validadores que têm a função de validar as transações na rede. Vão ser estes que recebem as comissões pelas validações.
Um dos seus fundadores, Vitalik Buterin, nascido na Rússia que emigrou aos seis anos para o Canadá, foi esta quinta-feira uma das estrelas da “fusão”. No Twitter, escreveu a mensagem: “Concluímos. Feliz fusão para todos. Este é um grande momento para o ecossistema ethereum”.
And we finalized!
Happy merge all. This is a big moment for the Ethereum ecosystem. Everyone who helped make the merge happen should feel very proud today.
— vitalik.eth (@VitalikButerin) September 15, 2022
Momentos antes, na transmissão em direto, falava de um sonho.
Uma reinvenção, com uma consequência que salientou: economia de energia. É que como este modelo não tem tantas exigências de computação, o gasto de eletricidade é menor. Segundo a Ethereum Foundation a mudança de software resultará num consumo de menos 99,95% de energia. A Economist escrevia que o efeito nas emissões é como se se desligasse um país, neste caso apontava-se para o Chile.
Também realça que uma das consequências é que os preços das unidades de processamento acabem por baixar, depois do impulso que tiveram com o aumento da procura por parte dos mineradores.
A quantidade de energia necessária para minerar moedas virtuais tem sido um tema muito debatido. Aliás, o Parlamento Europeu chegou a admitir proibir as moedas que resultassem da prova de trabalho, o que acabou por cair (em março o Parlamento acabou por votar contra esta limitação), mas a questão ficou sempre no limbo.
A ethereum, agora, vem responder a este desafio, piscando o olho a investidores institucionais preocupados com os princípios do ESG (ambientais, sociais e governação).
Este foi um passo muito importante neste ecossistema da ethereum, mas não está concluído. Prova, ainda assim, que atualizações podem ser bem sucedidas. A ambição dos seus fundadores era muito mais do que ter uma moeda nativa (ether). É tornar a ethereum num ecossistema de finanças descentralizadas. Mas Pedro Borges deixa a questão: se se passa para uma lógica de acionista (participação), pode acontecer mais concentração em alguns grupos ou pessoas, o que pode fazer perigar o conceito da descentralização.
O que vai acontecer ao preço? Os analistas vão avançando com várias previsões. Por outro lado, ao longo destes dois anos houve o chamado depósito de ether, moedas que ficaram congelados e que só depois da fusão vão ser libertadas. Há regras para este “descongelamento”, mas Pedro Borges vê nesse momento uma possibilidade de pressão sobre o preço da ether, já que a oferta vai aumentar. Mas para já, realça Tiago Emanuel Pratas, “a ether passou a ser uma ativo com inflação negativa, ou seja, a cada transação vai ser queimada ether existentes”, limitando essa mesma oferta neste momento.
Ainda assim o dia está a ser de quedas para as criptomoedas. O que, no entanto, é atribuído a uma retirada de ativos mais arriscados. A ethereum antes da fusão teve uma alta maior que o mercado das criptomoedas (nos meses de junho e julho), o que deixa antecipar que a fusão já estava assumida pelos investidores. A ether pesa cerca de um quinto do mercado de criptomoedas avaliado em 1 bilião de dólares. Ou seja, a revolução aconteceu numa moeda com uma capitalização de 200 mil milhões de dólares.