No segundo ano de iniciado, na passagem dos 14 para os 15 anos, Eric Dier, que nunca foi propriamente um rapaz baixinho, deu um salto de mais de dez centímetros. O “ruço inglês”, como também era carinhosamente tratado quando era mais novo, nunca passou ao lado de ninguém desde que chegou ao Sporting, sobretudo pela fisionomia de quem se percebia ter traços que não eram os típicos para os restantes portugueses da sua idade – e bastava ver o seu companheiro no centro da defesa, Tobias Figueiredo, que por acaso também joga hoje em Inglaterra (Notthingham Forest) para traçar a diferença. No entanto, não foi pela estatura, nem pela capacidade de impulsão ou nem pelos lances de cabeça que o inglês mais se destacou mas sim por outras qualidades que ou são forças intrínsecas ou de forma rápida se podem tornar fraquezas: capacidade de liderança, sentido de entreajuda, espírito combativo, correção, educação. Se Daniel Carriço, hoje com 30 anos no Sevilha, sempre foi um dos maiores exemplos de todos esses predicados para os mais novos que se seguiram na Academia, o britânico não ficou atrás.
Antes de sair para Inglaterra, onde jogou por empréstimo nos juniores do Everton entre 2010 e 2012, Dier esteve em plantéis com vários jogadores que ainda hoje estão no Quadro de Honra da Academia Sporting, por causa dos resultados obtidos nos testes físicos. Filipe Chaby, Iuri Medeiros e Cristian Ponde, todos companheiros nos iniciados e nos juvenis verde e brancos, são dos melhores de sempre no teste de resistência yo-yo. Rúben Semedo, central que na altura jogava às vezes no meio-campo defensivo e que esteve ao mesmo tempo que o inglês nos juvenis B, foi dos mais rápidos de sempre na velocidade curta a dez metros, ao passo que Carlos Mané, Iuri e Tiago Ilori brilharam na velocidade a 3o metros. Edgar Ié, outro ex-colega de equipa na formação leonina que passou pelo Barcelona antes de ir para França, destacou-se no teste de counter movement jump (CMJ). O agora defesa de Tottenham não está em nenhum desses parâmetros mas, este sábado, vai jogar a final da Champions. E também ele é descrito por antigos companheiros, treinadores e responsáveis como um Quadro de Honra, pelo exemplo que sempre deu.
“Com alguns jogadores mais novos, os treinadores têm de mimá-los, colocar o braço por cima do ombro deles para se sentirem mais confortáveis. Jogadores como o Eric, mesmo novo, não necessitam que se faça isso. Vive e respira futebol”, explicou um dia Jesualdo Ferreira, experiente treinador que apostou na dupla Eric Dier-Tiago Ilori numa das temporadas mais complicadas de sempre dos seniores do Sporting (2012/13). E essa é a melhor definição para o jogador dos spurs nascido em Cheltenham, com nacionalidade inglesa mas que se define como “meio português”, pelo que cresceu como futebolista e homem no nosso país.
Quando tinha apenas seis/sete anos, por causa do futebol mas não diretamente como responsável único, Eric Dier mudou-se para Portugal, vivendo numa primeira fase com a família (pais e cinco irmãos) na zona de Lagos, no Algarve. Podia haver a influência do avô, Ted Croker, que além de futebolista em clubes como Charlton, Dartford, Headington United ou Kidderminster Harriers, foi presidente do Cheltenham Town e secretário da Associação de Futebol de Inglaterra, entre 1973 e 1989 – e só não foi mais longe dentro das quatro linhas porque um acidente quando estava na Força Aérea Real (RAF) durante a Segunda Guerra Mundial deixou mazelas aos 18 anos. E também do tio-avô Peter Croker, que teve uma carreira mais longa nas quatro linhas ao serviço de Charlton, Brentford ou Watford, entre outros, sendo ainda treinador adjunto nos anos 60. Ou mesmo do pai, Jeremy, um tenista profissional sem grandes marcos na carreira mas que chegou a jogar o torneio de Wimbledon em pares. No entanto, foi por causa da mãe e da organização do Campeonato da Europa de 2004 que saiu de Inglaterra tão novo.
O Euro-2004, a deceção de Zidane na Luz e a ajuda aos companheiros de escola
A proposta para ficar responsável pela parte da hospitalidade no Euro-2004 acabou por convencer a mãe à mudança tão radical, mesmo com filhos tão novos. A adaptação ao Algarve e ao país, bem como o desafio profissional que encontrou pela frente, compensaram. Cerca de um ano e meio depois, a família mudou-se para Lisboa, ficando a residir na zona de Cascais, sempre com o já indispensável mar por perto. Eric estudava na Escola Preparatória Internacional, em Carcavelos (antes estivera na Vale Verde International School), e recebeu um convite por parte de um professor que tinha também sido olheiro do Sporting para realizar um treino de captação, sem compromissos. O inglês falou com os pais, aceitou e deslocou-se a Pina Manique, onde na altura eram feitas as sessões dos mais novos. Num par de treinos, convenceu os responsáveis leoninos e nem o calor que se fazia sentir por esses dias afetou o seu rendimento. Começava nessa fase, em 2003, uma nova vida para o jovem britânico.
“Quando tinha nove anos houve essa recomendação para fazer testes e, a partir daí, fui saltando de escalão em escalão, às vezes nos mais velhos. Mas só quando me ofereceram um contrato, tinha eu 14 anos, e fiquei na Academia é que comecei a perceber que podia ser uma coisa séria”, admitiu em entrevista. Por esses dias, jogava futebol de sete a rodar por várias posições mas mais até no meio, sem ser defesa, e foi com o pai a alguns jogos do Europeu, nomeadamente à estreia de Inglaterra, no estádio da Luz contra a França, que o deixou a chorar sentado nos degraus das escadas: Frank Lampard ainda inaugurou o marcador na primeira parte mas, com dois golos no período de descontos (um de penálti), Zidane conseguiu dar a volta ao resultado. Como “compensação”, tivera a oportunidade de conhecer antes um dos seus ídolos, David Beckham, com quem tirou uma fotografia.
Só quando passou para o futebol de 11, na antecâmara dos campeonatos nacionais, é que Eric Dier saltou para a posição pela qual é mais conhecido de defesa central. Entretanto, os pais acabaram por regressar a Inglaterra com os irmãos (hoje dois vivem nos Estados Unidos, onde Eric quer ajudar a construir uma escola/academia de futebol) mas o jogador ficou como interno na Academia, em Alcochete – e numa altura onde a mãe chegava quase a ficar preocupada pela forma como o filho falava tão bem ou melhor português do que inglês. Também aí, o internacional britânico foi um exemplo para aqueles que por lá andavam e para os que se seguiram. “Ele era o cara mais inteligente da formação do Sporting. Era o nerd da turma, o melhor aluno entre os mais novos. Todos os que estudavam com ele passavam de ano, ele ajudava muito nas provas de inglês”, recordou à ESPN Vítor Golas, guarda-redes brasileiro de 28 anos que esteve com o irmão Vinicius nos juniores verde e brancos mas que acabou por não ter a carreira que se esperava, andando hoje pelo Maringá após uma passagem pelo Kosovo.
“Como estava dois escalões acima não treinávamos na mesma equipa mas íamos para a escola todos os dias juntos. Tínhamos de acordar muito cedo para apanharmos o autocarro porque estudávamos na mesma turma. Ajudou-me mesmo muito nas aulas de inglês e só passei de ano por causa dele. Não sei se ele se lembra mas tivemos um teste que era para completar as frases em inglês. A professora colocou o CD no rádio, carregava no play, parava, nós ouvíamos o som e tínhamos de completar. Ele sentava-se atrás de mim e ao lado e ficava beliscando alguma coisa, a perguntar-lhe, mas como estava muito silêncio não dava. Bem, sempre havia maneira de dar uma olhadela… Era legal, em todas as aulas de inglês sentava-me perto dele para tirar uma casquinha nos testes e nos trabalhos de casa”, admitiu o também brasileiro Renato Neto, médio de 27 anos que se chegou a estrear pelos seniores do Sporting e que rumou depois para vários anos no Campeonato da Bélgica.
Em 2010, alguns meses antes de ir por empréstimo para os juniores do Everton terminar o período de formação, a rubrica Sky Sports Scout dedicava um espaço especial a Eric Dier, com a avaliação de 55 pontos em 80 possíveis – ou seja, uma análise final de “great prospect” (grande perspetiva). Recebeu cinco pontos no remate (de zero a dez), seis no passe, sete no tackling, no jogo de cabeça e no ritmo, seis na visão, sete na habilidade e dez, a nota máxima, no potencial. Pouco depois, chegou a ser sondado para se perceber a disponibilidade ou vontade de representar a Seleção Nacional, até por estar a viver há mais tempo em Portugal do que em Inglaterra. Mesmo sentindo-se “meio português”, optou pelo país de nascimento e fez o primeiro encontro com a camisola dos Três Leões na equipa Sub-18, em 2011, quando estava em Liverpool.
A estreia como lateral, as lágrimas por Jesualdo e a saída que não queria
“Adoro o treino, as pessoas em Portugal, a cultura portuguesa. Adoro tudo sobre este sítio”, destacou numa entrevista após o regresso à Academia. “Nunca senti necessidade de sair do Sporting para nenhum clube em Inglaterra ou qualquer outro país porque o Sporting tem uma grande história em formar jogadores para a primeira equipa que jogam e depois acabam nos maiores clubes da Europa”, acrescentou. Na cabeça de Eric Dier, tão ponderado em campo como fora dele, estava a ideia de ficar nos leões até aos 21/22 anos, mediante a sua afirmação na equipa principal. E estava um exemplo muito concreto que nunca lhe saiu da cabeça: Fábio Ferreira mudou-se em 2005 para os juvenis do Chelsea, nunca vingou, passou por Esmoriz e Sertanense e passou os últimos anos na Austrália; Ricardo Fernandes fez o mesmo trajeto mas voltou a Portugal para jogar em divisões secundárias quatro anos depois; Adrien Silva, que tinha esse convite, recusou ir para Londres e teve um reconhecido sucesso. Para o inglês ou qualquer jogador, esse exemplo ainda continua a servir na Academia. “O Sporting orgulha-se de formar pessoas educadas e corretas. Nunca se zangam contigo se falhares um passe mas isso acontece se faltares ao respeito a alguém”, contou.
Depois de ter começado bem a época de 2012/13 na equipa B, onde fez até dois golos nos primeiros sete jogos, uma onda de lesões no lado direito da defesa do Sporting abriu-lhe as portas à formação principal e logo como titular, num encontro onde jogou fora da sua posição habitual. Provavelmente, ainda não terá esquecido essa partida, com os leões a vencerem o Sp. Braga em Alvalade por 1-0 com golo de Ricky Wolfswinkel após assistência do próprio Dier. No jogo a seguir, mais história: com o conjunto então treinado por Franky Vercauteren a perder por 2-0 ao intervalo com o Moreirense (Pablo Olivera e Ghilas), Xandão reduziu aos 63′ e o inglês fez o empate dois minutos depois, naquele que ficaria como o único golo no conjunto principal. O treinador belga saiu, Jesualdo Ferreira assumiu o comando de uma equipa que fez muitas mexidas no mercado de janeiro e apostou na dupla Dier-Ilori em vários encontros até ao final daquela que viria a ser a pior temporada de sempre no Campeonato (sétimo lugar). “No dia da saída de Jesualdo, entrou num gabinete e começou a chorar porque tinha encontrado um treinador que o ajudara a desenvolver nos seniores como jogador e pessoa e não sabia o que se seguiria. Sempre se mostrou reconhecido a quem estava com ele e queria o seu melhor”, salienta uma das fontes contactadas, sobre a parte mais emocional do jogador.
Na época seguinte, já com Leonardo Jardim a assumir a equipa recuperando alguns jogadores que andavam emprestados (como William Carvalho, Wilson Eduardo ou Diogo Salomão) e dando um melhor rendimento a outros como Adrien Silva, o Sporting subiu para segundo classificado mas Eric Dier acabou por ter menos oportunidades, tapado pela dupla constituída no arranque da temporada, quando estava lesionado, por Maurício e Marcos Rojo. No verão de 2014, saiu – chegando algumas vezes a colocar-se a hipótese de não jogar mais por não querer renovar um contrato que tinha uma cláusula que lhe permitia sair por cinco milhões de euros caso surgisse essa proposta e o vencimento oferecido pelo clube interessado não fosse igualado pelos leões.
“Fui à Academia de Alcochete numa quinta-feira de manhã para ir buscar as minhas coisas e despedir-me de toda a gente. O presidente estava lá, cumprimentou-me e não disse nenhuma palavra. Seguiu em frente. Não me desejou boa sorte nem nada, o que é um pouco estranho. Estive no Sporting durante 12 anos e saio sem uma palavra do presidente? Para mim, é estranho. No último ano e meio fui muito maltratado. Nunca vou esconder isso. Para alguém que estava no clube desde os oito anos e que nunca tinha tido problemas com ninguém… Acho que fui maltratado e as pessoas dentro do Sporting sabem disso”, assumiu após o anúncio da venda para o Tottenham pelos tais cinco milhões. “O problema nunca foi o dinheiro, nunca ia tomar uma decisão apenas baseada no dinheiro. As cláusulas que o Sporting queria impor dificultaram as negociações, queriam colocar cláusulas impensáveis. Uma cláusula de 45 milhões de euros implica um ordenado ao mesmo nível. Além do mais, ficamos completamente presos ao clube. Sou um central e queriam pôr uma cláusula de 45 milhões com um salário que não justifica esse valor? Nem pensar. Para mim não faz sentido”, argumentou ainda a propósito dos motivos que o levaram a sair.
O capitão de seleção que se inspira nos All Blacks e discute Brexit ou Catalunha
Cinco anos depois dessa saída, Eric Dier fez o seu trajeto normal no Tottenham e na seleção inglesa, tornando-se imprescindível nos dois jogando como central ou médio mais posicional. Nunca ganhou nenhum título (pelo menos físico, porque na ótica dos proprietários do clube ir à Liga dos Campeões todos os anos tem esse mesmo efeito…) mas foi escrevendo a sua história como sempre pensou, como no dia em que envergou pela primeira vez a braçadeira de capitão do conjunto de Gareth Southgate, em novembro de 2017, tornando-se o quinto mais novo de sempre a fazê-lo. “Joga com maturidade e inteligência, percebe o jogo muito bem e é um grande modelo. Tem uma abordagem profissional a tudo e joga de forma altruísta. Acredito que pode ser ainda mais um líder mas já tem o respeito de todos e dá-se bem com o grupo”, disse o selecionador.
Trabalho e mentalidade à parte, a forma de ser de Eric Dier também contribuiu e muito para a sua afirmação. O melhor exemplo disso foi uma entrevista concedido ao The Times há dois anos, onde aborda vários temas até extra futebol. “Se falamos de música ou de carros no balneário? Não, nunca! Aquilo que falamos são os temas da atualidade, como o Brexit ou como quando aquele miúdo pousou para uma marca de roupa e entretanto nasceu uma grande polémica. Falamos muito de tecnologia, dos recursos naturais, dos veículos elétricos. Falamos do VAR, porque tivemos uma experiência difícil. Discutimos também o laço amarelo de Pep Guardiola porque o nosso treinador passou por Barcelona (Espanyol), a independência da Catalunha”, contou nessa conversa onde falou num livro que o tinha agradado particularmente e que representa o que é o Tottenham: “Os Segredos dos All Blacks: 15 lições de liderança” . “Nós também somos assim como a Nova Zelândia, sem dickheads na nossa equipa”.
Aos 25 anos, após ter contribuído de forma decisiva para um dos melhores Mundiais da Inglaterra nos últimos tempos (quarto lugar), Eric Dier – que teve de ser operado a uma apendicite e ficou várias semanas de fora das opções – prepara-se para cumprir a primeira final europeia de sempre frente ao Liverpool (sábado, 20h), quase 20 anos depois de ter trocado Inglaterra e Portugal e 16 em relação ao dia em que entrou no Complexo Desportivo de Pina Manique para fazer testes no Sporting. “Nunca ninguém duvidou de que chegaria a estes patamares. Aquilo que distinguia o Eric dos outros é a sua personalidade forte, o enorme carácter, uma vontade férrea de ganhar de realizar os seus objetivos. Ao mesmo tempo, sempre quis dar o exemplo aos outros, sendo um miúdo muito focado também na aprendizagem, fosse no futebol, fosse na escola”, destaca um antigo responsável da Academia verde e branca. Se Rafael Camacho, do Liverpool, será o único português nos plantéis dos dois finalistas da Liga dos Campeões, Dier representa o “meio português” que tentará ganhar pelo Tottenham.