894kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

"Vernon Subutex". Os maiores medos do nosso tempo estão na trilogia de Virgine Despentes

Está publicado em português o primeiro de três de romances de Virginie Despentes, tragédia contemporânea em que nos rimos nos piores momentos. "Cáustico, divertido, ambicioso", escreve João Bonifácio.

Vou direto ao assunto: pensem sempre que podia ser pior, podiam ter perdido o vosso meio de sustento, ficado sem subsídio de desemprego e dependentes da boa vontade dos vossos amigos para terem onde dormir. Foi o que aconteceu a Vernon Subutex, uma das mais curiosas não-personagens literárias dos últimos anos.

Factos: Vernon Subutex é um dono de loja de discos que se torna vítima da digitalização. As pessoas deixam de comprar discos e ele fica sem trabalho. Está no lado errado dos quarentas e após uma vida dedicada ao rock’n’roll é, no que toca ao mercado de trabalho, praticamente um inapto. Com o tempo, Vernon habitua-se a não acordar de manhã e a sua nova vida de desempregado agrada-lhe: tem subsídio de desemprego e, se precisa de um extra, vende os seus vinis na net. Dá para os cigarros.

Que faz um preguiçoso cuja vida foi uma adolescência prolongada e que, de repente, dá por si desempregado mas com subsídio de desemprego? Passa o dia no Facebook, a ouvir música na net e, claro, a ver pornografia – o que, convenhamos, está perto de parecer a vida perfeita. Lentamente Vernon vai-se afastando da vida, do coração das coisas: deixa de seguir as notícias, e dos amigos só tem notícia quando vão morrendo – alguns em parte devido às drogas.

Depois o subsídio de desemprego acaba e, pior, entre as baixas próximas conta-se Alex Bleach, uma estrela rock de quem era amigo de juventude – e que lhe pagava a renda. Este é o momento em que Vernon dá por si nas ruas, sem um plano B mas também aparentemente sem desespero – Virginie Despentes (a autora) informa-nos que Vernon nunca pensou demasiado e isso sempre evitou que entrasse em depressão.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A capa da edição portuguesa de “Vernon Subutex 1”, de Virginie Despentes (Elsinore)

O plano B de Vernon é ir a bibliotecas públicas botar uns likes nas publicações no Facebook de antigos amigos, meter conversa com eles no Messenger e tentar encontrar onde dormir, até encontrar uma solução. Isto é truque de escritor, é o bottom line de Despantes: guiar Vernon – e e nós, leitores – por uma espécie de fresco da França atual, representada pelas várias personagens que recebem Vernon e ocupam toda a (chamemos assim) segunda parte do romance.

Bom, se calhar ainda não disse mas Vernon Subutex 1 é o primeiro de uma trilogia de romances de Virginie Despentes, em que a autora faz uma hagiografia dos nossos tempos, de forma crua, sem paninhos quentes – o que é notório quando a voz da narração se apessoa, por assim dizer, da voz das personagens.

Tudo em Vernon Subutex 1 deve ser lido dessa forma, e tudo deve ser lido à luz dos processos de rutura que a digitalização trouxe: os empregos que foram destruídos por esta, a forma como ela alterou a nossa perceção do mundo, fosse em termos de relação amorosa ou na criação de um universo separado, onde podemos dar vazão aos nossos piores instintos, ou na mediação das amizades.

E tudo deve ser lido à luz da idade – Despentes está com 49 anos e é essa a exata geração que ela retrata, uma geração que me interessa, que mais não seja porque é apenas meia dúzia de anos mais velha que eu. Mas também porque é a última geração que não cresceu com as redes sociais e porque é a geração que cresce no fim da Guerra Fria e uma geração que supostamente teve acesso a licenciaturas e a uma vida boa e que não era suposto que caísse em discursos reacionários.

É muito possível que a vida da própria Despentes seja a matriz para Vernon ou para o universo deste romance (o rock’n’roll, os submundos): na juventude, em Lyon, ela foi prostituta numa casa de massagens e em peep shows, isto antes de ser jornalista de rock e crítica de filmes pornográficos.

É essa a função de uma personagem como a de Xavier, amigo – ou antigo amigo – de Vernon, que o acolhe por um fim-de-semana (ou o deixa ficar lá em casa durante um fim-de-semana, enquanto vai passear com a família): Xavier é um guionista de escasso êxito e muito rancor, casado com uma menina bem que já não o ama; Xavier existe para que Despentes possa explorar os seus monólogos interiores – invariavelmente manifestos de amargura e xenofobia que serão, a dado momento, comentados pela voz que narra da seguinte forma: Xavier sempre foi assim, sempre pensou estas coisas, sempre foi um facho, os tempos é que finalmente se alinharam pela bitola dele.

A existência de pessoas como Xavier não é uma surpresa – ao fim e ao cabo, alguém teve de votar em Trump. O que surpreende é a existência de um discurso assim numa pessoa claramente culta e a brutalidade do seu discurso – que é, aliás, uma marca de Virginie Despentes. A este propósito: é muito possível que a vida da própria Despentes seja a matriz para Vernon ou para o universo deste romance (o rock’n’roll, os submundos): na juventude, em Lyon, ela foi prostituta numa casa de massagens e em peep shows, isto antes de ser jornalista de rock e crítica de filmes pornográficos.

E se por acaso estiverem a pensar que este currículo não parece traçar o perfil de alguém delicado e dado a subtileza, antes de alguém com uma certa queda para o espalhafato (ou para o choque), então têm alguma razão – um bom exemplo é Baise-moi, o seu primeiro romance, um manifesto de violência feminista em que Manu, que foi brutalmente violada, se amiga com Nadine, uma niilista que passa a vida a ver pornografia, e as duas lançam-se num vórtice destrutivo, em que seduzem homens de modo a roubá-los e matá-los. Esta espécie de Thema & Louise extremado foi posteriormente transposto para cinema – tendo o filme sido banido.

[o trailer de “Vernon Subutex” na versão televisiva criada pelo Canal+ francês e protagonizada por Romain Duris:]

https://www.youtube.com/watch?v=sn4qp7AyVTc

Temos aqui motivos para acreditar que Despentes não é boa mãe de família, nem recatada, nem do lar – e sabe uma ou duas coisinhas acerca de espalha-brasismo. Isto é: quem quiser tem – pelo menos à superfície – matéria suficiente para defender a tese de que Vernon Subutex 1 é uma tentativa de causar escândalo explorando os maiores medos da nossa época (o desemprego, a imigração, as drogas, a desagregação provocada pelas redes sociais, o cinismo). Só que a tese não resiste à leitura – antes de mais pelo extraordinário espectro que a escrita de Despentes alcança, depois pelo cuidado com que ela trata a maior parte das suas personagens.

O espectro é isto: em Vernon Subutex 1 há uma ex-baixista que hoje tem um emprego convencional e vive numa casa comprada pelos pais; ex-estrelas porno (uma das quais está em transição para se tornar homem), que, já agora, é outra profissão que a internet matou; uma ex-groupie nascida rica e que nunca trabalhou na vida e que vive mal com o seu envelhecimento; um produtor de cinema mainstream que vive obcecado com vinganças e contrata a Hiena para fazer o trabalho sujo de inventar escândalos online contra os seus inimigos; a dita Hiena, ex-passadora que é hoje uma espécie de troll profissional; uma rapariga que adota a religião muçulmana, para horror do seu pai, professor universitário; neo-nazis; um rico (e amante do capitalismo extremo) que dá teto a um sem número de parasitas enquanto organiza orgias diárias e consome quantidades industriais de cocaína; uma transformista; neo-nazis; um tipo que bate na mulher.

E isto é suficientemente amplo para dar laivos de Balzac.

Estou a imaginar os vossos rostos a ficarem brancos ao lerem esta referência ao sagrado Balzac por entre este festim de degradação. A meu favor devo dizer que nem fui eu quem inventou a degradação – foi a vida – nem fui eu que o narrei sob a forma de romance. Eu limito-me a assinalar que Balzac também tinha este fôlego, estas ânsias de totalidade, de percorrer toda uma sociedade.

Tudo isto resulta num estranho travelling pela sociedade francesa, especificamente a geração que está agora a chegar aos 50 anos, a que já tem idade suficiente para acumular mágoa mas também para ter memória; aquela que é demasiado velha para os outros cuidarem dela mas ainda não suficientemente velha para os outros terem pena.

Na realidade, a referência mais óbvia e imediata para comparar Vernon Subutex 1 não é Balzac, mas outro romance cheio de rock’n’roll, A Visita do Brutamontes, de Jennifer Egan, que era (acima de tudo) um romance sobre a passagem do tempo (que é o brutamontes do título), em que se saltava de personagem em personagem, cada uma mais devastada que a outra, todas elas cheias de coisas trágicas para deitar cá para fora.

A mesma exata síntese aplica-se a cada uma das personagens que acolhe Vernon: Emilie, a ex-baixista, está gorda e acumulou rancor para com os homens da sua vida, incluindo Jean-No, amigo comum dela e de Vernon, que acabou de falecer e que foi seu amante, sem nunca ter assumido a relação; as ex-estrelas porno têm de refazer toda a sua vida porque a internet matou a pornografia clássica e comercial; etc.

E é nisto que entra, e passo a citar uma frase que escrevi acima, o “cuidado com que [Despentes] trata a maior parte das suas personagens”: compare-se o registo zangado do reacionário Xavier com a melancolia lúgubre de Sophia (mãe de Xavier, cujo irmão morreu de sobredose), eternamente a remoer na memória do filho mais velho – não poderia haver maior variedade de registos. É como se Despentes fosse uma espécie de anti-António Lobo Antunes: em vez de todas as personagens falarem e pensarem da mesma maneira (como acontece com ALA), todas as personagens pensam, agem e falam de maneira autónoma, radicalmente diferente.

Tudo isto resulta num estranho travelling pela sociedade francesa, especificamente a geração que está agora a chegar aos 50 anos – e não é por acaso que ela escolhe esta geração; é a que já tem idade suficiente para acumular mágoa mas também para ter memória; aquela que é demasiado velha para os outros cuidarem dela mas ainda não suficientemente velha para os outros terem pena. É, em suma, a faixa etária que está terminantemente entregue a si própria, afundada no seu fel.

“Baise-Moi”, livro de Virginie Despentes de 1993

Como já devem ter notado, não há muito Vernon – Vernon é um mcguffin, uma desculpa para o travelling por esta galeria de personagens, e os poucos dados que vamos acumulando sobre ele vão-nos sendo dados pelas pessoas que o acolhem: tem olhos bonitos, não está muito gasto (apesar da idade), gosta de mulheres mas não se vincula a uma relação, não fala muito mais continua a ter ótimo gosto musical – no fundo é um bacano, aquele tipo que foi escapando à amargura que normalmente advém com a idade.

Isso não impede que ele vá mesmo parar à rua, tendo atrás de si (sem saber) uma data de gente interessada numas cassetes que ele possui e que contêm uma entrevista que Alex Bleach fez a si mesmo antes de morrer e que podem ter informações calamitosas para uma série de pessoas (em particular um produtor de cinema). Esta parte – a trama – é o elo mais fraco do romance, serve apenas para continuar a corrida atrás de Vernon, é uma desculpa para Despentes poder observar mais e mais personagens.

Obviamente, Vernon Subutex 1 é uma tragédia – mas uma tragédia em que nos rimos nos piores momentos, mérito do humor negro de Despentes, que escreve depressa mas não obrigatoriamente bem; o que ela tem é um enorme olho de observação da sociedade e de “tipos” de pessoas e sabe como adaptar o seu registo (e mesmo o seu humor) a cada situação e sabe quando desferir um par de murros no leitor.

Não sei se Vernon Subutex 1 é um grande romance, mas é certamente um livro estupidamente cáustico, de uma ambição extraordinária e tão divertido quando assustador. E, provavelmente, um dos primeiros grandes livros da era das redes sociais.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.