Vou direto ao assunto: pensem sempre que podia ser pior, podiam ter perdido o vosso meio de sustento, ficado sem subsídio de desemprego e dependentes da boa vontade dos vossos amigos para terem onde dormir. Foi o que aconteceu a Vernon Subutex, uma das mais curiosas não-personagens literárias dos últimos anos.
Factos: Vernon Subutex é um dono de loja de discos que se torna vítima da digitalização. As pessoas deixam de comprar discos e ele fica sem trabalho. Está no lado errado dos quarentas e após uma vida dedicada ao rock’n’roll é, no que toca ao mercado de trabalho, praticamente um inapto. Com o tempo, Vernon habitua-se a não acordar de manhã e a sua nova vida de desempregado agrada-lhe: tem subsídio de desemprego e, se precisa de um extra, vende os seus vinis na net. Dá para os cigarros.
Que faz um preguiçoso cuja vida foi uma adolescência prolongada e que, de repente, dá por si desempregado mas com subsídio de desemprego? Passa o dia no Facebook, a ouvir música na net e, claro, a ver pornografia – o que, convenhamos, está perto de parecer a vida perfeita. Lentamente Vernon vai-se afastando da vida, do coração das coisas: deixa de seguir as notícias, e dos amigos só tem notícia quando vão morrendo – alguns em parte devido às drogas.
Depois o subsídio de desemprego acaba e, pior, entre as baixas próximas conta-se Alex Bleach, uma estrela rock de quem era amigo de juventude – e que lhe pagava a renda. Este é o momento em que Vernon dá por si nas ruas, sem um plano B mas também aparentemente sem desespero – Virginie Despentes (a autora) informa-nos que Vernon nunca pensou demasiado e isso sempre evitou que entrasse em depressão.
O plano B de Vernon é ir a bibliotecas públicas botar uns likes nas publicações no Facebook de antigos amigos, meter conversa com eles no Messenger e tentar encontrar onde dormir, até encontrar uma solução. Isto é truque de escritor, é o bottom line de Despantes: guiar Vernon – e e nós, leitores – por uma espécie de fresco da França atual, representada pelas várias personagens que recebem Vernon e ocupam toda a (chamemos assim) segunda parte do romance.
Bom, se calhar ainda não disse mas Vernon Subutex 1 é o primeiro de uma trilogia de romances de Virginie Despentes, em que a autora faz uma hagiografia dos nossos tempos, de forma crua, sem paninhos quentes – o que é notório quando a voz da narração se apessoa, por assim dizer, da voz das personagens.
Tudo em Vernon Subutex 1 deve ser lido dessa forma, e tudo deve ser lido à luz dos processos de rutura que a digitalização trouxe: os empregos que foram destruídos por esta, a forma como ela alterou a nossa perceção do mundo, fosse em termos de relação amorosa ou na criação de um universo separado, onde podemos dar vazão aos nossos piores instintos, ou na mediação das amizades.
E tudo deve ser lido à luz da idade – Despentes está com 49 anos e é essa a exata geração que ela retrata, uma geração que me interessa, que mais não seja porque é apenas meia dúzia de anos mais velha que eu. Mas também porque é a última geração que não cresceu com as redes sociais e porque é a geração que cresce no fim da Guerra Fria e uma geração que supostamente teve acesso a licenciaturas e a uma vida boa e que não era suposto que caísse em discursos reacionários.
É essa a função de uma personagem como a de Xavier, amigo – ou antigo amigo – de Vernon, que o acolhe por um fim-de-semana (ou o deixa ficar lá em casa durante um fim-de-semana, enquanto vai passear com a família): Xavier é um guionista de escasso êxito e muito rancor, casado com uma menina bem que já não o ama; Xavier existe para que Despentes possa explorar os seus monólogos interiores – invariavelmente manifestos de amargura e xenofobia que serão, a dado momento, comentados pela voz que narra da seguinte forma: Xavier sempre foi assim, sempre pensou estas coisas, sempre foi um facho, os tempos é que finalmente se alinharam pela bitola dele.
A existência de pessoas como Xavier não é uma surpresa – ao fim e ao cabo, alguém teve de votar em Trump. O que surpreende é a existência de um discurso assim numa pessoa claramente culta e a brutalidade do seu discurso – que é, aliás, uma marca de Virginie Despentes. A este propósito: é muito possível que a vida da própria Despentes seja a matriz para Vernon ou para o universo deste romance (o rock’n’roll, os submundos): na juventude, em Lyon, ela foi prostituta numa casa de massagens e em peep shows, isto antes de ser jornalista de rock e crítica de filmes pornográficos.
E se por acaso estiverem a pensar que este currículo não parece traçar o perfil de alguém delicado e dado a subtileza, antes de alguém com uma certa queda para o espalhafato (ou para o choque), então têm alguma razão – um bom exemplo é Baise-moi, o seu primeiro romance, um manifesto de violência feminista em que Manu, que foi brutalmente violada, se amiga com Nadine, uma niilista que passa a vida a ver pornografia, e as duas lançam-se num vórtice destrutivo, em que seduzem homens de modo a roubá-los e matá-los. Esta espécie de Thema & Louise extremado foi posteriormente transposto para cinema – tendo o filme sido banido.
[o trailer de “Vernon Subutex” na versão televisiva criada pelo Canal+ francês e protagonizada por Romain Duris:]
https://www.youtube.com/watch?v=sn4qp7AyVTc
Temos aqui motivos para acreditar que Despentes não é boa mãe de família, nem recatada, nem do lar – e sabe uma ou duas coisinhas acerca de espalha-brasismo. Isto é: quem quiser tem – pelo menos à superfície – matéria suficiente para defender a tese de que Vernon Subutex 1 é uma tentativa de causar escândalo explorando os maiores medos da nossa época (o desemprego, a imigração, as drogas, a desagregação provocada pelas redes sociais, o cinismo). Só que a tese não resiste à leitura – antes de mais pelo extraordinário espectro que a escrita de Despentes alcança, depois pelo cuidado com que ela trata a maior parte das suas personagens.
O espectro é isto: em Vernon Subutex 1 há uma ex-baixista que hoje tem um emprego convencional e vive numa casa comprada pelos pais; ex-estrelas porno (uma das quais está em transição para se tornar homem), que, já agora, é outra profissão que a internet matou; uma ex-groupie nascida rica e que nunca trabalhou na vida e que vive mal com o seu envelhecimento; um produtor de cinema mainstream que vive obcecado com vinganças e contrata a Hiena para fazer o trabalho sujo de inventar escândalos online contra os seus inimigos; a dita Hiena, ex-passadora que é hoje uma espécie de troll profissional; uma rapariga que adota a religião muçulmana, para horror do seu pai, professor universitário; neo-nazis; um rico (e amante do capitalismo extremo) que dá teto a um sem número de parasitas enquanto organiza orgias diárias e consome quantidades industriais de cocaína; uma transformista; neo-nazis; um tipo que bate na mulher.
E isto é suficientemente amplo para dar laivos de Balzac.
Estou a imaginar os vossos rostos a ficarem brancos ao lerem esta referência ao sagrado Balzac por entre este festim de degradação. A meu favor devo dizer que nem fui eu quem inventou a degradação – foi a vida – nem fui eu que o narrei sob a forma de romance. Eu limito-me a assinalar que Balzac também tinha este fôlego, estas ânsias de totalidade, de percorrer toda uma sociedade.
Na realidade, a referência mais óbvia e imediata para comparar Vernon Subutex 1 não é Balzac, mas outro romance cheio de rock’n’roll, A Visita do Brutamontes, de Jennifer Egan, que era (acima de tudo) um romance sobre a passagem do tempo (que é o brutamontes do título), em que se saltava de personagem em personagem, cada uma mais devastada que a outra, todas elas cheias de coisas trágicas para deitar cá para fora.
A mesma exata síntese aplica-se a cada uma das personagens que acolhe Vernon: Emilie, a ex-baixista, está gorda e acumulou rancor para com os homens da sua vida, incluindo Jean-No, amigo comum dela e de Vernon, que acabou de falecer e que foi seu amante, sem nunca ter assumido a relação; as ex-estrelas porno têm de refazer toda a sua vida porque a internet matou a pornografia clássica e comercial; etc.
E é nisto que entra, e passo a citar uma frase que escrevi acima, o “cuidado com que [Despentes] trata a maior parte das suas personagens”: compare-se o registo zangado do reacionário Xavier com a melancolia lúgubre de Sophia (mãe de Xavier, cujo irmão morreu de sobredose), eternamente a remoer na memória do filho mais velho – não poderia haver maior variedade de registos. É como se Despentes fosse uma espécie de anti-António Lobo Antunes: em vez de todas as personagens falarem e pensarem da mesma maneira (como acontece com ALA), todas as personagens pensam, agem e falam de maneira autónoma, radicalmente diferente.
Tudo isto resulta num estranho travelling pela sociedade francesa, especificamente a geração que está agora a chegar aos 50 anos – e não é por acaso que ela escolhe esta geração; é a que já tem idade suficiente para acumular mágoa mas também para ter memória; aquela que é demasiado velha para os outros cuidarem dela mas ainda não suficientemente velha para os outros terem pena. É, em suma, a faixa etária que está terminantemente entregue a si própria, afundada no seu fel.
Como já devem ter notado, não há muito Vernon – Vernon é um mcguffin, uma desculpa para o travelling por esta galeria de personagens, e os poucos dados que vamos acumulando sobre ele vão-nos sendo dados pelas pessoas que o acolhem: tem olhos bonitos, não está muito gasto (apesar da idade), gosta de mulheres mas não se vincula a uma relação, não fala muito mais continua a ter ótimo gosto musical – no fundo é um bacano, aquele tipo que foi escapando à amargura que normalmente advém com a idade.
Isso não impede que ele vá mesmo parar à rua, tendo atrás de si (sem saber) uma data de gente interessada numas cassetes que ele possui e que contêm uma entrevista que Alex Bleach fez a si mesmo antes de morrer e que podem ter informações calamitosas para uma série de pessoas (em particular um produtor de cinema). Esta parte – a trama – é o elo mais fraco do romance, serve apenas para continuar a corrida atrás de Vernon, é uma desculpa para Despentes poder observar mais e mais personagens.
Obviamente, Vernon Subutex 1 é uma tragédia – mas uma tragédia em que nos rimos nos piores momentos, mérito do humor negro de Despentes, que escreve depressa mas não obrigatoriamente bem; o que ela tem é um enorme olho de observação da sociedade e de “tipos” de pessoas e sabe como adaptar o seu registo (e mesmo o seu humor) a cada situação e sabe quando desferir um par de murros no leitor.
Não sei se Vernon Subutex 1 é um grande romance, mas é certamente um livro estupidamente cáustico, de uma ambição extraordinária e tão divertido quando assustador. E, provavelmente, um dos primeiros grandes livros da era das redes sociais.