Recuperar a “radicalidade” e a “prática anti-sistema”. Garantir a “alternativa ao poder instalado”. Largar a “obsessão por cargos, lugares e empregos”, que se resumem a “objetivos egoístas e pequeno-burgueses”. E obrigar a direção a deixar de ser “surda” às vontades das bases, acabando com o clima de “asfixia” e “monolitismo castrador”. A lista de críticas é muito mais extensa, mas esta será uma primeira amostra do caderno de encargos que os grupos críticos (e minoritários) da direção do Bloco de Esquerda vão levar à convenção do partido, marcada para 22 e 23 de maio.
São cinco moções (a contar com a que já foi apresentada pela direção), algumas diferenças de substância mas sobretudo muitos recados sobre dois pontos. Primeiro: a relação com o PS, em que os grupos mais críticos apontam uma subserviência do Bloco – mesmo quanto ao voto contra no último Orçamento do Estado, que valeu ao BE acusações de “deserção” por parte dos socialistas, há críticas à forma como a decisão foi transmitida e explicada às bases, tornando-a mais difícil de compreender e digerir. Segundo: a democracia interna do partido, que os críticos garantem escassear, apontando o dedo a uma direção que não ouve as vontades das bases, concentra o poder e divide lugares e empregos pelas principais tendências do partido.
E das moções ainda sobra uma série de recados… para as moções vizinhas. Se na última convenção apenas três grupos (incluindo a direção) se tinham organizado para apresentar documentos estratégicos na reunião magna do partido, desta vez, e depois de uma decisão difícil no último Orçamento e um resultado muito fraco nas eleições presidenciais de janeiro, encontram-se mais divisões no partido. Os grupos que se apresentam agora a votos na convenção têm dimensões reduzidas, mas o conjunto de críticos mais significativo – uma ala que se apresenta como “Convergência” – apresenta uma moção, coisa que não fez na última convenção, pelo que se poderá perceber melhor quanto vale em termos de votos.
Os ex-deputados que não esperam “nada do PS”
O grupo da “Convergência”, que em encontros pelo país chegou a reunir algumas centenas de pessoas, é conhecido por integrar os ex-deputados Pedro Soares e Carlos Matias e defende, desde a segunda metade da legislatura passada – correspondente à era da geringonça – que o Bloco de Esquerda deveria ter sido muito mais exigente com o PS.
Por isso, os subscritores dedicam boa parte da sua atenção a explicar que apesar da geringonça o Governo acabou por manter “uma política de bloco central”. “O PS tinha de ser confrontado com um novo caderno de encargos, em vez do minimalista acordo inicial”; em vez disso, o Bloco “secundarizou o seu próprio programa eleitoral”, cedendo à “chantagem da demissão do Governo” e perdendo uma oportunidade para ganhar “radicalidade e demarcação”.
Mesmo a decisão de votar contra o último OE não satisfez estes críticos: a decisão, defendem, foi “arrastada até ao limite” e sem preparar a opinião pública e o próprio partido, disseminando a surpresa e até alguma incompreensão entre alguns militantes que, na véspera, continuavam a defender com vigor a sua viabilização por abstenção”.
O grupo pega, aliás, nas estratégias definidas pela própria direção – que na convenção anterior assumia a vontade de se tornar “força do Governo” – para garantir que a estratégia falhou e que o BE se resume agora a um “parceiro menor” do PS.
A nível interno, mais críticas: é preciso “valorizar as estruturas de base”, envolver o partido todo nas decisões, acabar com uma suposta “lógica de exclusão, de asfixia da democracia interna” e de “monolitismo castrador e reacionário”. “A disputa pela hegemonia e controlo do aparelho perverte e empobrece a vida democrática da organização, condiciona as escolhas nas listas para os cargos eletivos, internos ou externos, e abafa a pluralidade, as vozes críticas e a diferença de opiniões. A democracia interna (…) deve ser urgentemente restabelecida”, sentenciam os subscritores.
Os reparos a uma direção “surda” e “jacobina”
A plataforma “Novo Curso” resulta, na prática, de uma divisão da “Convergência”. Por isso, o argumentário que apresenta na sua moção, subscrita por 59 pessoas, é parecido: o PS devia ter sido “desafiado” para uma renovação de votos para os dois últimos anos de geringonça. Além disso, o BE teria ganhado em apostar numa “proposta de convergência à esquerda” para uma segunda volta nas presidenciais (“poderia não ter dado em nada, mas nem se tentou”).
O que falta à direção? “Capacidade de escuta ativa – é surda em relação àquilo que as bases murmuram ou gritam”; deixar de se “isolar numa postura jacobina” e de criar “um monstro de redes clientelares internas que se autoalimenta”, com “amigos e familiares a pulular nos cargos remunerados”. E lançar novo desafio ao PS: “Ou aceita um acordo (escrito e assinado) com uma clarificação das linhas vermelhas e com uma aposta decisiva no desenvolvimento; ou haverá crise política”.
Voltar a ser radical e anti-sistema
Na última convenção, ficaram conhecidos como a ala mais radical do Bloco, depois de terem apresentado um rol de críticas à direção e de terem assumido que no partido lhes chamam “os radicais românticos”. Agora, a antiga moção R volta batizada de moção Q e carrega nos recados dirigidos às cúpulas do Bloco: só com “radicalidade”, por oposição a uma “estratégia de massas”, o BE moderá ser mobilizador e transformador. E isso não pode passar por “apoiar Governos do sistema”: “O BE não é o garante da estabilidade do poder instalado. Tem de ser a alternativa a ele”. E, para isso, deve “recuperar a sua imagem e prática anti-sistema” – até porque, sem ela, se abre espaço para as “forças demagogas da extrema-direita”.
Entre propostas como sair da NATO, referendar o tratado orçamental, acabar com as PPP, as propinas e as taxas moderadoras na saúde, os subscritores insistem: o BE chegou à política portuguesa para mudar a política – e a forma como se faz política – e, vinte e dois anos depois da fundação, resume-se apenas a um “partido tradicional”.
Com uma direção supostamente “fechada em si mesma” e focada em “perpetuar-se”, também há propostas concretas para a organização interna do partido, da limitação de mandatos na direção à realização de referendos internos sobre “decisões fundamentais”, passando ainda por criar um portal de transparência com informação sobre as contas e as declarações de rendimentos de pessoas eleitas e dirigentes e criar um salário único para os funcionários.
A crítica às agendas internas
Na convenção passada, um grupo da concelhia de Paredes, liderado por Américo Campos, conseguiu eleger dez membros para a Mesa Nacional e dois para a Comissão Política. Agora voltam com a moção C, em que até se dizem de acordo com a linha política seguida pela direção mas criticam, sobretudo, as agendas internas das várias tendências do partido. A começar por uma crítica à “Convergência”, descrita como uma “dissidência estalinista da UDP“ sem um “projeto político coerente” e com falta de “coragem política”, por não ter apresentado uma moção na convenção passada para se afirmar como alternativa. “Fizeram tudo ao contrário (…) Estão a fazer oposição ao Bloco”, sentenciam os subscritores.
Além disso, a moção defende que as tendências principais – representadas pela coordenadora, Catarina Martins, e o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares – estão “preocupadas na institucionalização do Bloco e consequente obsessão por cargos, lugares e empregos”. “Ou seja, a energia que deveria ser usada para desmontar o sistema e acumular forças é desperdiçada em objetivos egoístas e pequeno-burgueses”. Além disso, deteta-se um “espírito de capela”: “Os membros das tendências perdem autonomia de pensamento e de ação e ficam automaticamente subordinados aos ditames dos seus chefes. Os mais jovens bajulam os líderes, para poderem fazer carreira”.
Quanto à política propriamente dita, um desejo: que o BE não fique “acantonado”. “Por um lado, o PCP não quer nada connosco. Por outro, nós não queremos nada com o PS. Temos de modular a nossa tática e estratégia para evitar sermos vítimas de uma espécie de cerca sanitária, que nos isola dos partidos mais próximos de nós”. E recusa à partida de coligações nas autárquicas pode ser sinal de “sectarismo”.
A versão da direção
Como já tinha sido noticiado, a moção da direção do Bloco, subscrita pelos representantes dos principais setores do partido (Catarina Martins, Pedro Filipe Soares e Marisa Matias), avisa o PS contra a “via centrista” e assegura estar disponível para conversar e formar maiorias de esquerda, sobretudo “contra a agenda do medo”, ou seja, tendo em vista um bloco de direita que poderá incluir o Chega.
No documento, o Bloco lança farpas a PCP e PAN por terem aberto o caminho ao Governo de António Costa e viabilizado o último OE, mas deixa o convite: o BE saiu votou contra o Orçamento, mas não fechou a porta a entendimentos no futuro.