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Fotografia: Estelle Valente / São Luiz

Fotografia: Estelle Valente / São Luiz

Zia Soares e o Teatro GRIOT: "Temos lutado bastante para conseguir os nossos lugares"

“Uma Dança das Florestas” é a nova peça da companhia e estreia-se no São Luiz esta sexta-feira. Em entrevista, a encenadora apresenta-a e recorda dez anos de um trabalho "impossível de não ser feito".

O primeiro palco que pisou foi o do Teatro São Luiz, em Lisboa. Tinha 11 anos. A história poderia ser mais romântica se nesse momento se tivesse dado uma epifania e Zia Soares tivesse percebido logo ali que a sua vida só poderia passar pela representação. Porém, isso não aconteceu e a encenadora — que fez parte da criação do Teatro Praga e é diretora artística do Teatro GRIOT — consegue imaginar-se a fazer muitas outras coisas, tão distintas como dar aulas ou ser agricultora.

A mudança de rumo não teve de acontecer e Zia Soares diz que se vai deixando levar enquanto for feliz e tiver oportunidades. A próxima materializa-se partir desta sexta-feira, 14 de janeiro, com a estreia de “Uma Dança das Florestas”, precisamente no São Luiz. Desta vez não estará a representar, mas cabe-lhe a encenação do texto de Wole Soyinka. Do elenco desta coprodução entre o Teatro GRIOT e o Teatro São Luiz fazem parte Ana Valentim, Cláudio da Silva, Gio Lourenço, Júlio Mesquita, Matamba Joaquim, Miguel Sermão, Rita Cruz e Vera Cruz.

Resumida pela própria Zia Soares, esta é a história de “um acontecimento e de uma grande comemoração que engloba uma outra festa a acontecer nas florestas que circundam uma cidade”. “Nessa floresta habitam seres fantasiosos, como deuses, semi-divindades, mortos, espíritos e há um ritual em que se invocam os mortos para estarem presentes. Esse acontecimento é um rastilho para acontecimentos que se seguem. Estes mortos têm uma história anterior e há um deus que os traz à vida para de alguma maneira resolverem a forma como foram mortos”, explica ao Observador.

O tema não é de digestão fácil e a encenadora admite que não teria o mesmo impacto antes da pandemia. Agora, a perspetiva sobre a morte e a perda é diferente, tanto para atores, como para espectadores. Antes das sessões, que acontecem até 23 de janeiro, Zia Soares falou sobre esta peça, sobre a falta de oportunidades para as crianças negras e recordou a criação do GRIOT, que nasceu por acaso quando um grupo de amigos se juntava para representar.

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“Uma Dança das Florestas” parte de um texto do prémio Nobel da Literatura Wole Soyinka e aborda a forma como no relacionamos com a morte, a perda e a justiça que é feita em vida

Mónica de Miranda

Porquê encenar esta peça? Foi uma vontade que ficou depois de “A Raça Forte” [que esteve em cena em 2013 e é do mesmo autor, Wole Soyinka]?
Sim, exatamente. Na altura em que trabalhámos “A Raça Forte” estivemos a investigar e a conhecer mais a fundo a obra do autor e este era um dos textos que estava em cima da mesa. Achámos que não tínhamos condições orçamentais de colocar este espetáculo em cena, mas a vontade ficou. Passados estes anos surgiu a oportunidade.

Juntou textos seus a “Uma Dança das Florestas”. Porquê?
Não pensei muito nisso. Nesta dramaturgia, neste olhar meu sobre o texto, achei que haveria momentos em que faria sentido acrescentar texto.

Foi algo que lhe foi surgindo naturalmente quando estava a trabalhar o texto?
Pensamentos que faziam sentido, sim, exatamente. São coisas muito pontuais, longe de mim conspurcar o texto de um Nobel da Literatura. O senhor escreve belissimamente, pouco haveria a colocar ali. Só que realmente, no decorrer do processo, houve essa oportunidade e achei que poderia ser importante.

A peça não era para ter sido encenada pela Zia Soares, é verdade?
Este espetáculo foi escolhido por mim como diretora artística da companhia para ser encenado pelo Rogério de Carvalho. O Rogério fez uma operação há uns meses que lhe limita a locomoção e depois, tendo em conta o contexto pandémico, acabámos por decidir juntos que seria melhor ele não encenar porque implicava deslocações diárias, estar com uma equipa que ainda é grande e o Rogério tem 80 e alguns anos. Estaríamos sempre todos com muito receio.

"Há uma atmosfera e uma energia que nos acompanham que mudou brutalmente. Tudo o que faço, de há uns meses a esta parte, é ir de casa para os ensaios e dos ensaios para casa. Justamente porque, quando estamos a trabalhar num espetáculo, temos a responsabilidade de zelarmos pela saúde uns dos outros e pelo próprio projeto."

A Zia colocou a hipótese de fazer parte do elenco?
Antes fazia parte do elenco, quando a encenação estava a cargo do Rogério de Carvalho.

Mas decidiu não acumular funções. Porquê?
Na maioria das minhas encenações também fiz os espetáculos. Neste caso queria estar mesmo do lado de fora e perceber outras coisas, convidar outras atrizes com quem tinha muita vontade de trabalhar.

O impacto da pandemia na cultura foi brutal. A nível individual, o que mudou no seu dia a dia e o que foi mais difícil de gerir?
Há uma atmosfera e uma energia que nos acompanham que mudou brutalmente. Tudo o que faço, de há uns meses a esta parte, é ir de casa para os ensaios e dos ensaios para casa. Justamente porque, quando estamos a trabalhar num espetáculo, temos a responsabilidade de zelarmos pela saúde uns dos outros e pelo próprio projeto. Se um de nós fica positivo [com Covid-19], isso implica muita coisa na vida de mais 20 pessoas. Essa gestão não é fácil. Por outro lado, o peso que trazemos desta mudança, o medo de estarmos rodeados de doença, de morte, regras restritivas, isso também nos coloca num lugar diferente daquele em que estávamos anteriormente e tem inevitavelmente influência na criação artística. Este ambiente de incertezas, de muita doença e morte à nossa volta. Este espetáculo em particular fala de morte. E falar de morte no contexto que estamos a viver torna-se mais pesado, profundo e difícil.

A perspetiva é outra?
A mudança de perspetiva, sim. Como é que falamos disto? Se calhar se o fizéssemos há três anos não teria o mesmo peso que tem agora, porque não teríamos todos passado por isto, não teríamos ouvido, visto coisas terríveis muito próximas. Pessoas que morreram, ficar sem ver um familiar durante não sei quanto tempo, a mãe e o pai terem de ficar com os filhos 24/24h e gerir tudo isso, etc.

O medo e a incerteza tocou toda a gente e isso altera tudo?
Tudo, sem dúvida.

"Ninguém questiona as outras companhias de teatro, como já aconteceu connosco quando nos perguntaram: “então mas porque é que são só atores negros no palco”? Acho que nenhuma companhia só com atores brancos já ouviu: “só têm atores brancos em palco”? Portanto, há aqui uma necessidade e um escrutínio que me parece às vezes só cansativo. Vem de lugares de ignorância, insegurança."

O Teatro GRIOT é constituído por artistas negros. Alguma vez sentiu ou sente que isso vos coloca mais dificuldades do que aquelas que existem noutras companhias?
As oportunidadades para quem é artista em Portugal já são muito difíceis, independentemente de ser branco, negro ou amarelo. São condições precárias, é um setor desprezado pelos governos, é um setor que luta com muitas dificuldades. Somando a isso o facto de as pessoas serem negras, há uma dificuldade acrescida, claro que sim. Se olharmos para a educação, todo o percurso académico de uma criança negra ainda é muito diferente do percurso de uma criança branca. Não tem só a ver com a condição social ou económica, tem a ver também com outra condição, que ainda existe, que é a da raça. Obviamente que estão todas interligadas, não se pode falar de uma sem falar da outra. Ainda vai sendo verdade que a partir de determinado momento na escola secundária há uma conversa de um ou outro professor que encaminha uma criança negra para os cursos ditos profissionais. Portanto, que horizontes é que pode ter uma criança negra em relação às artes?

Em 2022 continua a acontecer?
Pode acontecer à boca pequena, já disse isto muitas vezes, que me desculpem os professores. Eu própria já dei aulas em escolas secundárias a alunos de percurso curricular alternativo e sei que muitas vezes isto acontece. Agora há um pudor maior, naturalmente, porque estamos a viver outros tempos.

É mais dissimulado?
Sim, as pessoas agora já não se inibem de denunciar, mas continua a haver esta sedução.

Como é que se resolve isso?
Quem me dera saber, mas há coisas mais ou menos simples de entender. Se fizermos a recolha estatística, vamos deparar-nos com números concretos e seremos obrigados a criar políticas que alterem esses números. Enquanto não estiver concretizado em números, talvez seja tudo mais difícil porque estamos a falar de uma coisa abstrata. Sabemos que muitas mudanças em vários setores foram feitas a partir de contas, fazendo quotas, acho que isso é uma possibilidade para começarmos a alterar coisas. Por outro lado, do meu ponto de vista e do ponto de vista da companhia, o nosso contributo também é muito válido. O facto de existirem cada vez mais atores, atrizes, encenadores, cenógrafos, compositores negros contribui para que haja uma alteração naquilo que estava estabelecido como sendo normativo. Temos lutado bastante para conseguir os nossos lugares. Não é um lugar único, são vários lugares que vamos ocupando. Ao longo do tempo tem sido um percurso em crescendo. Mas, ainda assim, acho que muito poucas estruturas artísticas estão confortáveis no nosso panorama e nós não somos exceção. Depois há aquelas coisas ridículas como perguntarem-nos se fazemos teatro africano ou às vezes haver pequenas insinuações porque, como somos todos angolanos, certamente temos dinheiro de Angola para montar os nossos espetáculos.

"As oportunidadades para quem é artista em Portugal já são muito difíceis. Somando a isso o facto de as pessoas serem negras, há uma dificuldade acrescida, claro que sim."

Mónica de Miranda

São ideias preconcebidas, mas de polos muito opostos, não?
Sim, porque ao mesmo tempo parece que há a necessidade de encaixar a companhia e o seu trabalho num determinado lugar. Ninguém questiona as outras companhias de teatro, como já aconteceu connosco quando nos perguntaram: “então mas porque é que são só atores negros no palco”? Acho que nenhuma companhia só com atores brancos já ouviu: “só têm atores brancos em palco”? Portanto, há aqui uma necessidade e um escrutínio que me parece às vezes só cansativo. Vem de lugares de ignorância, insegurança, medo, de não se saber lidar com isto sem ser de forma a que fique encaixado num determinado sítio.

Criar um projeto de raiz é sempre um risco, nunca é garantido à partida que vá ser um sucesso. O Teatro GRIOT está prestes a assinalar dez anos desde o primeiro espetáculo [“Faz Escuro nos Olhos” estreou-se em abril de 2012]. Quais têm sido os maiores obstáculos e as maiores conquistas?
Há muitos obstáculos e todos se prendem em larga medida ao financiamento, ou à ausência de financiamento ou escasso financiamento. Se tivermos uma linha programática, não estamos à vontade, vontadinha para pensarmos sobre isso. Temos de pensar orçamentalmente o que podemos fazer e isso é constrangedor e limita as nossas opções.

E a criatividade?
Exatamente, o corte na criatividade é uma consequência. Temos tentando contrariar isso, às vezes até sacrificando, com muitas aspas, os elementos da própria companhia, porque trabalhamos sempre com muitos artistas externos e fazemos questão disso, que haja artistas de fora que venham e tragam as suas visões, que partilhemos coisas para que a companhia se mantenha sempre como um laboratório, um lugar de experimentação. Já aconteceu que os elementos da companhia se sacrifiquem nos seus honorários em prol das pessoas que vêm trabalhar connosco. Por outro lado, o facto de termos uma programação regular há tantos anos também nos coloca num lugar interessante, até em termos de relações com programadores, com outras companhias, com os próprios artistas. Ninguém consegue ficar tanto tempo se não houver muito trabalho. E, por isso, muitas pessoas querem colaborar e é incentivador nos momentos mais difíceis podermos recorrer a essa motivação. Não nos sentamos para fazer o balanço do que correu bem ou mal, vamos indo. Acho que tem sido um percurso difícil com muitos impedimentos, mas também com muita coragem e gente à volta que nos obriga a não desistir. Juntando tudo têm sido uns bons dez anos.

"Comecei no São Luiz, tinha 11 anos. O meu pai é timorense e fazia parte de um grupo amador. As coisas foram-se desenrolando por aí e solidificaram-se quando criámos o Teatro Praga (eu, o Pedro Penim e outras pessoas que já não fazem parte dos Praga), as coisas foram ficando cada vez mais impossíveis de não fazer."

Diz que as coisas vão indo, mas quando criaram a companhia tinham objetivos, pelo menos a curto prazo.
Sim, a muito curto prazo. Quando nos juntámos foi porque percebemos que éramos todos atores, alguns eram amigos — normalmente as pessoas até se associam por isso, têm as mesmas profissões e são amigas. A companhia nasce justamente por isso e só depois começámos a pensar: “e agora, o que vamos fazer”? Começámos a pensar no primeiro texto, que nos colocou logo imensos problemas. Que texto é que iríamos fazer? Foi uma grande luta até chegarmos ao “Faz Escuro nos Olhos” que basicamente tem textos de alguns autores e também muitos textos nossos.

Foi uma luta porquê?
Porque tínhamos dúvidas sobre tudo. Mas vamos fazer o quê? Agarrar na biblioteca ocidental? Não, vamos fazer autores africanos. Mas quais autores africanos? Estávamos neste limbo sem perceber muito bem o que íamos fazer e começámos o “Faz Escuro nos Olhos” a partir de uma pequeníssima cena do Sergi Belbel. A partir daí fomos construindo o espetáculo ao longo de muitos meses e sem o compromisso de ter um espetáculo. Tínhamos apenas o compromisso de estarmos uns com os outros e, no caso, com o Rogério de Carvalho. De repente, chamámos duas, três pessoas para assistir e elas perguntavam quando era a estreia. E, pronto, nessa altura pensámos: olha, se calhar vamos pôr isto em cena.

Tudo começou então como um mero encontro de amigos que, em vez de se juntarem para jantar ou conversar, se reuniam para fazer teatro?
Sim, exatamente.

Quando era criança já se imaginava nesta área?
Era como todas as crianças, queria ser tudo. As pessoas diziam “tem uma voz tão bonita” e na escola era sempre escolhida para declamar os poemas, na catequese a mesma coisa. Acho que, de alguma forma, tinha sempre esta incumbência de estar a performar mas nunca de forma consciente.

"Gosto muito de dar aulas, podia trabalhar no campo, poderia ser uma boa vendedora de coisas de que gostasse. Não sei, acho que tenho muitas possibilidades, não sou daquelas artistas que acha que este é o meu grande destino e que, se não fizer isto, não consigo fazer mais nada."

Qual foi o primeiro palco que pisou?
Foi exatamente o São Luiz, tinha 11 anos. O meu pai é timorense e fazia parte de um grupo amador. Havia danças e canto e depois houve um encenador que quis fazer uma peça sobre como nasceu o país, a partir da “Lenda do Crocodilo”, e eu entrava nesse espetáculo. Dava um grito e caía, dava outro grito e caía, era isso para aí umas dez vezes. Era esse o meu papel. As coisas foram-se desenrolando por aí e solidificaram-se quando criámos o Teatro Praga (eu, o Pedro Penim e outras pessoas que já não fazem parte dos Praga), as coisas foram ficando cada vez mais impossíveis de não fazer. É impossível não fazer o que fazemos aqui.

Deixou-se levar então, não teve aquele momento de fascínio e epifania em que decidiu ser atriz.
Não, não, e não tenho ainda. Acho que ainda tenho a possibilidade de enveredar por outros caminhos. Embora ache que esteja completamente amarrada, pelo menos gosto de pensar que, se um dia isto não fizer sentido, as minhas possibilidades não se esgotam aqui. Não morreria se não fosse atriz e encenadora.

O que faria?
Gosto muito de dar aulas, podia trabalhar no campo, poderia ser uma boa vendedora de coisas de que gostasse. Não sei, acho que tenho muitas possibilidades, não sou daquelas artistas que acha que este é o meu grande destino e que, se não fizer isto, não consigo fazer mais nada.

“Uma Dança das Florestas” estará em cena na Sala Luís Miguel Cintra do Teatro São Luiz entre 14 e 23 de janeiro (exceto dia 17). As sessões acontecem às 20 horas (de terça-feira a sábado) e às 17h30 (no domingo). Os bilhetes custam entre 12€ e 15€. Estão disponíveis nas bilheteiras online ou no local.

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