É o chamado dar um salto maior do que a perna, onde se misturam factos reais com fictícios para se chegar a uma conclusão esticada. O texto divulgado por várias páginas do Facebook — só a ‘Sou Vegan por amor aos animais’ têm 2,2 mil partilhas — tem, na maioria dos casos das páginas escritas em português, origem no site Veganos Brasil. Mas o conteúdo não é exclusivo da língua portuguesa e prolifera também em sites de língua inglesa ou francesa, entre outros.

A acusação é simples e direta: a Nutella é responsável pela desflorestação e pela morte de orangotangos, sendo exatamente esse o título do texto no site Veganos Brasil. E porquê? Porque a Nutella, o creme de chocolate e avelãs da italiana Ferrero, usa óleo de palma entre os seus ingredientes. E podem os dois factos estar ligados? Podem, o que não significa que a Nutella seja responsável por a espécie estar a caminhar para a extinção. Mas vamos por fases e analisar o texto que está a ser divulgado nas redes sociais e que foi publicado pela primeira vez em novembro de 2018.

“A produção do óleo de palma, matéria-prima da Nutella, desmata florestas da Indonésia e da Malásia e mata orangotangos.” Verdade ou mentira? Está bastante perto de ser verdade — excepto na referência à Nutella. O óleo de palma (ou de dende ou dendém, como é conhecido em alguns países de língua portuguesa) é um óleo vegetal extraído do fruto alaranjado de certas palmeiras, a Elaesis guineensis (o dendezeiro), com um custo de produção bastante mais baixo do que outros óleos.

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O dendezeiro, ou palmeira dendém, é originário da floresta húmida de África e, para crescer, precisa do clima típico dessas florestas: humidade do ar e temperaturas constantemente altas. Há vários países que começaram a plantar esta palmeira, mas são a Indonésia e a Malásia que, juntas, fornecem praticamente 85% da produção mundial de óleo de palma. O que tem acontecido nestes dois países do Sudeste Asiático é que vastas áreas de floresta tropical têm sido cortadas, dizimando-se a flora original, para plantar dendezeiros.

As matas virgens, com a sua biodiversidade, vão dando cada vez mais lugar a monoculturas industriais que têm como objetivo alimentar a necessidade mundial crescente do óleo de palma. A consequência direta da produção deste óleo vegetal — que, para ser rentável, obriga a criar grandes zonas de plantação — é a desflorestação das florestas da Indonésia e da Malásia. A consequência indireta é que, ao desaparecer o habitat natural de várias espécies que vivem nessas florestas, também os elefantes, tigres de Sumatra e, claro, os orangotangos que lá vivem estão a ver as suas populações cair a olhos vistos.

Assim, o mais correto seria afirmar que a produção do óleo de palma leva à desflorestação de matas virgens da Indonésia e da Malásia para criar plantações de dendezeiros e tem como consequência a morte de orangotangos e outras espécies, por verem o seu habitat natural desaparecer. Os animais não são mortos pela produção de óleo de palma, mas morrem em consequência disso. Não é um objetivo, mas é uma causa. E, por não fazerem nada para evitá-lo, há responsabilidade das produtoras de óleo de palma.

No entanto, a dizimação desta espécie está longe de se dever apenas à desflorestação, o que nos leva a outro facto que surge no mesmo texto. “Além da destruição ambiental, mais de 50 mil orangotangos foram mortos em 20 anos durante a queima de florestas, feita para dar lugar às plantações de palma. Os orangotangos perdem seu habitat, são espancados, mutilados e até queimados vivos. Não existem programas oficiais destinados à proteção da espécie.”

Aqui há vários factos que estão errados. Um deles tem a ver com os números de mortes dos animais e com os motivos que causaram os óbitos. Existem três espécies de orangotangos no mundo: os de Bornéu, os de Sumatra e os de Tapanuli (considerada espécie independente em 2017). Como os nomes indicam, os primeiros vivem na ilha de Bornéu, os segundos e terceiros na ilha de Sumatra. Bornéu é uma grande ilha dividida em três partes (Indonésia, Malásia e Brunei) e a ilha de Sumatra é território inteiramente indonésio.

Segundo a WWF, World Wild Life, é sempre muito complicado conseguir estimar com exatidão quantos orangotangos existem no mundo a cada momento e encontramos números muito diferentes para o número de animais vivos e mortos. Certo é que o orangotango de Bórneu está em perigo de extinção e o de Sumatra e o de Tapanuli estão em perigo crítico de extinção, segundo os critérios da lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), o inventário mais detalhado do mundo sobre o estado de conservação das espécies.

Dito isto, os valores apontados pela WWF no seu site indicam que há cem anos existiam cerca de 230 mil orangotangos no total. Hoje, serão pouco mais de 100 mil: 104.700 de Bornéu, 7.500 de Sumatra e 800 de Tapanuli. Já o Programa para a Conservação dos Orangotangos de Sumatra estima que existem na ilha 14 mil animais, segundo um balanço de 2016, um número superior ao da WWF.

Num artigo de fevereiro de 2018, o The Guardian citava uma investigação científica publicada na revista “Current Biology”: depois de 16 anos a estudar a população de animais no terreno, a estimativa da equipa de investigadores era de 150 mil orangotangos mortos na ilha de Bórneu no espaço de 16 anos.

Logo aqui se percebe a dificuldade que é apontar com certeza absoluta um número de animais mortos. O valor — 50 mil orangotangos — apontado pelo site Veganos Brasil cria, por isso, dúvidas sobre a sua credibilidade e não aponta qualquer fonte. Para além disso, atribui a responsabilidade dessas 50 mil mortes à queima de florestas para dar lugar às plantações de dendezeiros.

A segunda parte é real: para criar espaço para as plantações, muitas vezes recorre-se à queima da mata virgem, para mais depressa se limpar os terrenos, havendo registos de várias ilegais. Também há relatos de orangotangos que morrem queimados por serem apanhados pelos incêndios e não conseguirem fugir, ou por morrerem intoxicados pelos fumos. E há ainda notícias de populares que atacam os animais que se aproximam das suas zonas de habitação e cultivo quando fogem do seu habitat destruído. O que não existe, com base em fontes credíveis, é notícia de 50 mil orangotangos mortos durante a queima das florestas.

Voltando ao estudo publicado na revista “Current Biology”, um dos mais detalhados sobre os orangotangos de Bórneu, as quase 150 mil mortes são causadas por vários fatores. O mais importante é o desmatamento provocado para criar plantações de óleo de palma, mas a equipa percebeu que os animais também estão a desaparecer em zonas florestadas. Isso levou a concluir que estão a ser massacrados pela população local, apontou Maria Voigt, do Instituto Max Planck para a Antropologia Evolucionista, “uma ameaça até agora subestimada”.

“A caça continua a ser um grande problema. Quando os animais entram em conflito com as pessoas em plantações, são sempre eles que perdem. Matam-nos. Tivemos notícias de um orangotango que foi encontrado com 130 chumbos no corpo, depois de ter sido abatido em Bornéu. É chocante e desnecessário. Os orangotangos podem até comer os frutos dos agricultores, mas não são perigosos”, disse então Serge Wich, professor da Universidade John Moores de Liverpool, que também integrou a equipa de investigadores, citado pela BBC. Para o futuro, preveem um cenário negro: só o problema da desflorestação, estima a equipa, vai conduzir à morte de mais 45 mil orangotangos ao longo dos próximos 35 anos.

Outra das causas do desaparecimento destas três espécies é a crescente procura de orangotangos como animais de estimação. Uma cria pode valer cerca de 70 euros a um caçador local, acabando a ser vendida no mercado negro por preços que podem vir a ser 100 vezes superiores.

A última nota é para a falta de programas oficiais de proteção da espécie. Existem vários nos dois países — muitos deles passam por resgatar os animais feridos e mantê-los em centros de reabilitação com o objetivo de devolvê-los ao seu habitat — e os orangotangos são uma espécie protegida pela lei indonésia, não podendo ser caçados, enjaulados ou mantidos como animais de estimação. Em setembro de 2018, segundo o The New York Times, a Indonésia deixou de emitir licenças para novas plantações de óleo de palma, para travar a desflorestação.

Também na Malásia há um compromisso no sentido de manter protegidas as duas zonas do país onde ainda se encontram estas espécies. No entanto, o mesmo não é sinónimo de dizer que os esforços dos governos têm sido suficientes e mesmo o óleo de palma de produção sustentável não o é a 100%.

E onde fica a culpa da Nutella em toda esta história? “Por utilizar o óleo como matéria-prima, a Nutella é responsável pela devastação ambiental e pelas mortes dos orangotangos”, acusa o site Veganos Brasil. A Nutella usa, sem sombra de dúvida, óleo de palma nos seus ingredientes. Este é, aliás, o segundo ingrediente em maior quantidade na sua composição — o primeiro é o açúcar. E não é sequer o único produto da Ferrero Corporation que o usa: Tic Tacs, Kinder e Ferrero Rocher têm óleo de palma entre os seus ingredientes.

Fazer Nutella sem óleo de palma seria produzir um substituto de qualidade inferior”, afirmou o diretor de produção da Ferrero, Vincenzo Tapella, em 2017, citado pela Reuters, já que é aquele ingrediente que lhe dá a sua textura suave.

A Ferrero está longe de ser a única empresa a usar este ingrediente. Sem pensar sequer em produtos refinados, o óleo de palma é um ingrediente fundamental na cozinha africana e brasileira. Não é possível confecionar pratos como moamba de galinha, moquequa ou bobó de camarão sem este ingrediente. Para além disso, aparece em produtos como margarinas, pizza congelada, gelados, bolachas e chocolates, só para mencionar alguns, já que a indústria alimentar é o maior consumidor de óleo de palma. Também aparece em produtos químicos como detergentes de roupa, sabonetes e em muitos produtos cosméticos, como nos batôns.

E, claro, está no biodiesel: em 2017, mais de metade do óleo de palma (51%) usado na Europa foi consumido como combustível, segundo um estudo elaborado pela Oilworld, consultora de referência mundial da indústria e mercado de óleos vegetais.

Quanto a outras marcas, um relatório da Greenpeace de 2018 aponta o dedo a muitas multinacionais: a Mondelez (fabricante dos chocolates Cadburys, bolachas Oreos e Ritz) é apontada como o pior exemplo, já que o seu fornecimento de óleo de palma representou a desflorestação de 70 mil hectares desde 2016. Mas há outras marcas apontadas no relatório: Colgate-Palmolive, General Mills, Hershey, Kellogg’s, Kraft Heinz, L’Oreal, Mars, Nestlé, PepsiCo, Reckitt Benckiser e Unilever. A Ferrero não é mencionada.

A sua ausência não se deve a ter deixado de usar o óleo de palma, mas porque a relação que a Greenpeace faz no documento é entre os fornecedores que continuam a desflorestar matas virgens e a recorrer a más práticas e as empresas que lhes compram óleo de palma. No documento, apontam 25 fornecedores que destruíram 130 mil hectares de floresta virgem desde o final de 2015.

A Mendelez é a grande apontada, já que faz parte RSPO — Roundtable on Sustainable Palm Oil (Mesa Redonda de Óleo de Palma Sustentável), uma organização criada em 2004 com o objetivo de promover o uso sustentável do óleo de palma. No entanto, as críticas de organizações não governamentais, com a WWF à cabeça, têm sido muitas e acusam a RSPO de pouco fazer para manter a produção do óleo de palma realmente sustentável.

Desde 2005 que a Ferrero faz parte da RSPO e, em 2013, garantiu que todo o óleo de palma que usa pode ser rastreado até plantações e produções que não contribuem para a desflorestação. Os 100% vieram mais tarde a transformar-se em 99,5%, um número mais realista do que o primeiro.

Quando, em 2015, Ségolène Royal, ministra francesa do Ambiente, apelou aos consumidores que deixassem de comer Nutella por conter óleo de palma, numa entrevista televisiva, a Ferrero respondeu prontamente dizendo que o seu uso anual de óleo de palma representa apenas de 0,3% do uso global (170 mil toneladas contra 60 milhões).

Mas a melhor defesa da Ferrero veio da organização ambientalista mais inesperada. Foi a própria Greenpeace a sair em defesa da marca, dizendo que não era com um boicote que se resolvia o problema. Mais do que isso, em declarações à Quartz, lembrou que a Ferrero faz parte da Palm Oil Innovation Group, organização onde a Greenpeace e outras organizações não governamentais têm assento, bem como produtores de óleo de palma, e considerou que a Ferrero tem “uma política ambiciosa” para melhorar o seu fornecimento daquela matéria prima. “Por isso, consideramos que a Ferrero uma das empresas mais progressistas e viradas para o consumidor, no que diz respeito ao fornecimento de óleo de palma”, concluiu a Greenpeace.

Conclusão:

O texto mistura verdades com mentiras para tentar chegar a uma conclusão que é, no mínimo, enganadora. É verdade que a Nutella usa óleo de palma para fabricar o seu creme de chocolate e avelãs, e é verdade que a produção de óleo de palma tem sido a principal causa da desflorestação na Indonésia e Malásia. E essa desflorestação tem causado a morte de muitos orangotangos. Mas nem todos os fornecedores de óleo de palma recorrem a más práticas e é a própria Greenpeace que diz que a Ferrero, marca italiana que produz a Nutella, é uma das empresas mais progressistas e viradas para o consumidor no que diz respeito ao fornecimento de óleo de palma. Dizer que a Nutella é responsável pela desflorestação na Indonésia e na Malásia e culpá-la pela morte de orangotangos é enganador.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

Enganador

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

MISTO: as alegações do conteúdo são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou incompleta.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook e com base na proliferação de partilhas — associadas ao reporte de abusos de vários utilizadores — nos últimos dias.

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