Não, querida, isso não é amor
Quando uma amiga me contou, fiquei fisicamente indisposta. E arrepiada. Mesmo, não é força de expressão. Tinha pele de galinha e apetecia-me vomitar. A cada relato seu, despejado também ele como um vómito, em torrente, sem paragens para respirar, eu ficava mais paralisada, incrédula e, claro, apavorada. |
Sim, eu sabia que os casos de violência no namoro parecem estar a aumentar a cada ano que passa ou, então, há hoje muito mais estudos do que havia antes e, por isso, sabemos aquilo que antes simplesmente desconhecíamos. Já tinha lido os artigos, já tinha ouvido nas notícias, já tinha ficado perplexa com os resultados de dados partilhados por entidades diversas. Por exemplo, a edição de 2023 do estudo nacional sobre violência no namoro , da responsabilidade da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, demonstrou que “67,5% não perceciona como violência no namoro, pelo menos, um dos seguintes comportamentos: controlo, violência psicológica, violência sexual, perseguição, violência através das redes sociais e violência física.” Neste estudo nacional participaram mais de seis mil jovens do 7º ao 12º ano de escolaridade. |
Ainda assim, uma coisa é saber que existe, algures, uma determinada situação (e senti-la como medonha), outra coisa totalmente distinta é ouvi-la da boca de uma amiga, que nos descreve o cenário de terror vivido nos últimos tempos, por conta de um namoro tóxico da filha de 16 anos. De repente, foi como se alguém me tivesse despertado de um entorpecimento qualquer: espera lá, isto acontece mesmo, acontece a pessoas como nós, a famílias como a nossa, a filhas como as que vivem nas nossas casas e amamos e queremos proteger. |
Naquele namoro, nada era normal. As restrições que ele lhe impunha eram cada vez mais apertadas: primeiro interferiu nas suas amizades, forçou-a a eliminar os amigos rapazes, questionou as roupas que ela usava, controlava os seus passos, os seus movimentos, até a relação com a família. Esta crónica é antiga mas espelha bem o que se passa numa relação com essas características — e algumas estavam naquele namoro . |
A filha da minha amiga estava a ser engolida, estava a ser perder a identidade, a personalidade, o viço, a graça, a vida, e teve a imensa sorte de ter uns pais atentos, que perceberam que algo de errado se passava ali, e pediram prontamente ajuda especializada, além de terem conversado abertamente sobre o assunto, não se coibindo de dar a sua opinião, tentando esclarecer que este tipo de relação não é amor, não tem nada de amor, é apenas de uma toxicidade venenosa e da qual é urgente sair para não voltar a entrar. |
Vale a pena ler este artigo da NBC sobre as consequências que uma relação deste tipo pode ter na vida de quem é a vítima, e que podem ser para sempre. Claro que aproveitei aquela informação nauseante para conversar com a minha filha sobre um tema que, curiosamente, nunca havia abordado. E digo “curiosamente” porque — lá está — apesar dos números que os estudos apresentam, apesar das notícias, era como se fosse algo tão distante como a Patagónia. E, afinal, pode acontecer debaixo dos nossos narizes. |
Algumas mulheres (jovens e adultas) tendem a acreditar que serão capazes de mudar o outro, quase numa atitude paternalista: “Ele tem um problema, não nasceu numa boa família, tem inseguranças, mas eu, com o meu amor e a minha paciência, vou ser capaz de o mudar”. Falo no feminino, porque a maioria das vítimas deste tipo de violência são mulheres, mas podia também fazer a frase no masculino, porque por vezes também lhes toca este tipo de relacionamento doente. |
A verdade pode ser dura, mas é preciso que seja dita: ninguém cura ninguém, a menos que seja especialista em saúde mental. E mesmo esses lutam, por vezes vidas inteiras, para atenuar este tipo de comportamentos nos seus pacientes. Esqueçam: se têm alguém que quer controlar os vossos movimentos, que vos quer prender numa gaiola em vez de vos ver voar, então estão no sítio errado à hora errada, e está na hora de dar o assunto por encerrado. |
Como já disse algumas vezes nestas newsletters, tendo a ser muito liberal na educação dos meus filhos. Aplico a muito batida “liberdade com responsabilidade” que, para mim, é a metodologia que melhor funciona. O “sim” é a palavra que mais gosto de lhes responder quando me pedem para sair com amigos, por exemplo, mas também gosto que saibam que uma traição na minha confiança (e falo na primeira pessoa, mas estamos, enquanto casal, absolutamente alinhados nisto) e o “não” passa a vigorar, por muito que me custe (e custa). Mas a minha noção da liberdade deles passa também por saber que há muito que eu jamais saberei. Há um mundo de coisas que os nossos filhos vivem e que nós podemos bem nunca vir a saber, ou talvez só mais tarde, quando eles as contarem já em adultos, e nós, já velhos, a pensar na sorte que tiveram por não lhes ter acontecido nada de mal. |
Há pais que controlam os filhos na ilusão de que, assim, eles não vão escorregar em qualquer uma das cascas de banana da adolescência: álcool, drogas, relações sexuais sem proteção, acidentes de viação, violações, raptos, violência no namoro, entre outras. A minha mãe era essa mãe que prendia, na ilusão de, assim, fazer controlo de danos. Já o disse, mas não me canso de repetir: fui uma adolescente que fez tudo e mais um par de botas, nas barbas dela, apesar (e talvez por causa de) todas as restrições, porque um adolescente saudável quer tão sofregamente viver, ser livre e devorar o mundo, que faz de tudo para fintar os obstáculos que lhe surjam pela frente. É um pouco como um dependente: eles mentem, eles fazem teatro, eles convencem, eles enganam quem quer que seja. Os adolescentes estão dependentes dessa sede de viver e, por isso, não há como os deter. O melhor mesmo (para mim, que sou só uma mãe e não uma psicóloga, psiquiatra, especialista neuro-comportamental) é deixá-los voar, estando de olho, tanto quanto o nosso olho conseguir alcançar. |
Neste caso em concreto, dos meus amigos, foi o que eles fizeram: deixaram voar, permitiram que a filha trilhasse o seu caminho, mas, quando perceberam que ela havia escorregado numa das tais cascas de banana típicas da adolescência, puseram-se em campo. É um jogo duro, o da parentalidade. Julgo que também já o referi aqui (já vamos num ano de newsletters sobre família, nem sempre consigo não me repetir): o meu psicoterapeuta definiu-me um dia, na perfeição, este jogo da corda que os pais têm com os filhos adolescentes: a corda tem de estar em tensão. Se puxamos muito, ela pode partir. Se largamos a corda, os nossos filhos podem cair desamparados. Na adolescência, a corda tem de estar tensa, firme, forte. Cansa para caraças. Mas ninguém disse que isto ia ser fácil. |
Só para terminar, relembro o melhor amigo do meu pai, recentemente falecido, e que sofreu uma dor brutal por culpa de uma relação tóxica. E conto a história (que, aviso já, não tem um final feliz) para que se perceba que estes relacionamentos raramente acabam bem. A filha teve, também, um namoro assim. Doentio, claustrofóbico, violento. O pai, que era advogado e foi (ironicamente) diretor prisional durante muitos anos, tentou de tudo para lhe abrir os olhos. Mas ela casou. E teve três filhos. E um dia morreu com (creio) 47 facadas, desferidas por aquele que supostamente a “amava”. O pai dos seus filhos. Tudo boas famílias, para que não se pense que estas coisas só acontecem “ aos outros”. Não. Estas coisas podem estar a acontecer, neste momento, aos nossos filhos. É por isso que é tão importante falar com eles, estar atento aos detalhes, sentir-lhes o pulso, a irritabilidade, olhar nos seus olhos e descobrir laivos de raiva ou tristeza ou desalento. Nem sempre se consegue. Mas nunca é demais estar atento. |
Vale a Pena… |
… Ler o livro Não é Amor, é uma Relação Tóxica, de Diana Cruz
Está em pré-lançamento mas aposto que vale a pena (vai para as livrarias dia 20). Na sinopse podemos ler: “O amor não deve doer. Não deve fazê-la sentir-se esgotada, em constante estado de alerta, ofuscada nas suas vitórias e definida pelas suas derrotas. Não deve pensar que é tudo culpa sua, que é imperfeita, que está estragada ao ponto de nunca mais voltar a ser feliz. Isso não é amor — é uma relação tóxica.”
A psicóloga clínica criou uma espécie de guia para identificar e eliminar a toxicidade da vida das vítimas e mostra como todos podemos cair em relações deste tipo, mesmo sem nos apercebermos.
(Ed. Manuscrito) |
… Ler o livro Gosto de Mim, Gosto de Ti, de Maria Esclapez
Com conversas de WhatsApp baseadas em testemunhos reais, a psicóloga María Esclapez traz um guia fundamental para desenvolver relações saudáveis e evitar as tóxicas. Influencer com mais de 430 mil seguidores, a autora baseia o livro em dezenas de casos, incluindo os seus próprios relacionamentos tóxicos e problemáticos.
(Ed. Nascente)
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… Aproveitar Setembro (apesar de o tempo não estar muito certo) para conhecer algumas praias fluviais do país
Um dos meus filhos está há uma semana na serra da Lousã e as fotos e vídeos que envia sobre os locais onde está a mergulhar e a nadar são verdadeiramente de cortar a respiração. Com uma gigante vantagem sobre agosto: não está lá absolutamente mais ninguém. Aproveitar o fim-de-semana e fazer umas escapadinhas a estes paraísos do país pode ser uma boa maneira de não entrar a pés juntos no regresso ao trabalho.
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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