Xixi na cama: até quando?
Ter uma criança já na primária e que ainda dorme de fralda pode ser um drama na vida de uma família, sobretudo se essa família só tiver esse filho, do qual se espera que ande depressa, fale depressa, faça todas as gracinhas e mais algumas no tempo certo (ou, de preferência, mais cedo), e seja igualmente lesta a largar as fraldas. |
Aqui em casa tivemos de tudo: dos que largaram no tempo certo, dos que largaram bem antes do estimado, e uma das crianças que se viu grega para passar uma noite em seco. Mas, como geralmente tendemos a não desesperar com quase nada, fomos deixando o tempo passar. Achámos sempre que uns são mais rápidos numas coisas, mais lentos noutras, que a vida é mesmo assim, e o corpo nem sempre amadurece na altura em que nos dava jeito que amadurecesse. |
Houve alguns verões em que tentámos tirar a fralda, porque no verão a roupa seca com maior facilidade, e púnhamos o despertador para uma ou duas vezes por noite, para levar a criatura à casa-de-banho. Lemos e informámo-nos e percebemos que era importante que a criança acordasse sempre que a levávamos à sanita, para que, desse modo, o cérebro tomasse consciência de que o xixi não era para fazer a dormir, mas sim em plena consciência. Então, ensinaram-nos um truque: teríamos de conversar com a criança, e dizer-lhe, por exemplo, o nome de um animal, para que no dia seguinte ela nos conseguisse reproduzir de que animal tínhamos falado durante a noite. |
De todas as vezes em que fiz isto, tive a clara sensação de estar a falar com um zombie. Aquele ser era arrancado da cama de olhos vítreos, como se fosse uma alma penada, praticamente sem conseguir pôr um pé atrás do outro (processo básico a partir do momento em que alguém aprende a caminhar), e toda a tentativa de manter uma conversa era um ato falhado. |
Não era preciso saber de neurologia ou de psicologia ou do que quer que fosse para entender que tudo o que lhe estávamos a dizer não estava a ser absorvido por um cérebro desperto, mas antes a passar ao lado de um cérebro em sono profundo. “Olha, a mãe vai dizer um animal, e vais decorar, ok? O animal de hoje é a zebra! Ok? Zebra! É a Ze-bra. Amanhã, quando a mãe perguntar qual o animal de que falámos esta noite, só tens de te lembrar que foi a… (olhos revirados, não de desdém mas de quem está absolutamente entregue ao Morfeu)… Zebra!” |
No dia seguinte, ao acordar, perguntava-lhe: “Então, de que animal é que nós falámos esta noite?” E a criatura, a olhar para mim com espanto e até algum receio, respondia: “Animal? Que animal?” |
Ficava então a saber que, de todas as vezes em que tinha posto o despertador para levar aquela bexiga inquieta à sanita, de todas as vezes em que tinha falado de um animal (zebra, tigre, foca, cão, lontra, leão, elefante, macaco), nada tinha ficado registado. Nada. Zero. Como se não tivesse acontecido. “Lembras-te, sequer, de teres ido à casa-de-banho?” Não, não lembrava. |
Deixámos então o tempo passar, até acharmos que, por um lado, já começava a ser vexante para a criança em questão dormir com aquele trambolho no traseiro e, por outro, a nossa pegada ecológica já começava a ser um verdadeiro transtorno para o planeta, só à conta de uma única bexiga hiperativa. |
E, quando os convites para dormir em casa de outras pessoas começaram a chegar, a questão tornou-se, por fim, uma questão. Um primo, um amigo, alguém que desafiava a criança a passar a noite, e o tema “fralda” passava a ser um obstáculo que trazia suspiros, unhas roídas, e muita ansiedade. Ensinei estratégias: “Quando for para vestir o pijama, pedes para ir à casa de banho, levas a fralda, ninguém tem de ver. De manhã, quando for para vestir a roupa, vais à casa de banho, levas a tua mochila, pões a fralda suja dentro de um saco, lavas-te, vestes-te, e ninguém tem de saber.” |
A estratégia estava bem montada, descomplicada, sem dramas, mas do outro lado só sentíamos tensão e medo de julgamentos. Caramba, tão tenra idade e já tanto medo de julgamentos. Mesmo quando, em casa, tentámos sempre desvalorizar a questão e não descurar a sua autoconfiança, que é o que se deve fazer, como se pode ler neste artigo do Washington Post. |
Foi então que sentimos que era chegada a altura de consultar um médico. Falámos com o pediatra, que recomendou a nefrologista pediátrica Margarida Faleiro. Para começo de conversa, ela é um amor. E fala com os miúdos. E escuta-os, interpela-os, tem paciência e pedagogia. E, melhor do que isso, sabe muito sobre o assunto, age com vagar, não quer respostas e soluções mágicas, dá tempo ao tempo. |
Primeiro, mandou trabalho para casa. Era preciso medir toda a água bebida e medir todo o xixi feito, ao longo do dia e da noite (para medir o da noite, era necessário pesar a fralda de manhã) e registar tudo. Ficámos um tempo nisto, a apontar todos os líquidos ingeridos e todos os líquidos expelidos (uma valente seca, bem posso garantir), e a seguir levar os resultados à consulta. |
Foi então que se concluiu que estávamos perante uma bexiga pouco funcional. Com pouca capacidade de armazenamento. Mas… sem sucesso. Umas noites secas davam algum alento, mas as molhadas continuavam a ser em maior número. Então, passámos para o segundo passo: um comprimido ao pequeno-almoço e outro ao jantar, para aumentar a capacidade da bexiga e diminuir a frequência das contrações espontâneas. Às vezes é importante perceber que o corpo também se engana e que é preciso dar-lhe uma ajudinha extra, sobretudo quando, o seu erro começa a trazer malefícios à auto-estima e ao quotidiano. |
A coisa melhorou muito com o comprimido. Tínhamos de pintar sóis ou nuvens chuvosas, consoante amanhecia seco ou molhado. Começaram a aparecer muitos sóis. Poucas chuvas. Mas, ainda assim, mais chuvas do que o desejado. |
Na terceira consulta, foi sugerido o fim da fralda e um alarme. O alarme tem uma extremidade que se prende à cueca (com um sensor altamente sensível), e depois está ligado a um aparelho que se coloca no braço. Mal o sensor sente uma singular gota de xixi, larga num berreiro que pode bem acordar toda a casa, o prédio, e até o bairro. Não comprei logo, por ter encontrado alguma resistência (creio que achava que aquilo dava choque, por muitas vezes que tenha repetido que não), e os sóis começaram a aparecer em maior número. Só que, quando o tema alarme deixou de ser falado e parecia já esquecido, regressaram as chuvas. E foi então que mandei vir o alarme. |
O som de alerta para xixi só me fazia lembrar um quartel de bombeiros a descer pelo poste deslizável em dia de incêndio. Uma chinfrineira que acordou toda a gente. Menos quem o usava. Juro. Dormia profundamente, com o fim do mundo encostado ao ouvido. Pensei que aquilo não iria resultar, pois se nem assim acordava… Só que aquilo interfere com o inconsciente. A verdade é que, mesmo sem despertar, o som do alarme retraía imediatamente a bexiga. Na cueca, apenas uma gota. Era só encaminhar até à sanita e deixar o resto sair. O alarme terá tocado umas cinco vezes, no máximo. E pronto. Nunca mais fez. Foi assim uma espécie de milagre repartido entre medicação e tecnologia. |
No processo, e como falo muito abertamente sobre as coisas, descobri imensa gente com o mesmo problema, que sussurrava um “Ah, o meu também!”. A médica mostrou as lombadas grossas de dossiers carregados de casos de crianças das mesmas idades e bem mais velhas. Um dia, na praia, a desabafar com uns amigos, soube que tinham um sobrinho que teve este problema até aos 16 anos. |
Foi por isso que decidi escrever esta newsletter. É impressionante como esta pode ser uma luta em tantas casas, mas, não só para não humilhar os miúdos, como porque ninguém gosta de trazer à luz as “imperfeições” dos seus rebentos. É algo de que não se fala. É tabu (há um estudo que revela é muito raro os pais falarem uns com os outros sobre este tema). E, como tudo aquilo de que não se fala, torna-se um problema que parece ser exclusivo daquela criança, daquela família, seguramente com uma culpa qualquer por detrás, porque a culpa persegue-nos sempre, e temos a tendência para achar que de certeza fomos nós a fazer alguma coisa errada. |
Errado é gritar, humilhar, comparar irmãos, castigar. Errado é tentar apressar um corpo que não amadureceu ainda ou tem um erro de formação (muitas destas situações são puramente genéticas – geralmente há um pai ou uma mãe que também sofreram de enurese noturna até tarde). Errado é tirar as fraldas cedo demais e sujeitar a criança a lamentos dos pais enquanto levam mais um carregamento de lençóis e edredões para a máquina da roupa. Errado é fazer a criança sentir-se errada. O resto está tudo certo. Há uns que conseguem umas coisas mais cedo, outros que as conseguem mais tarde. Com tempo, paciência e a ajuda da medicina quando é caso disso, a coisa há-de ir ao lugar… |
Vale a Pena… |
… Ir à Festa do Outono, em Serralves
Artes e ofícios, cinema, circo contemporâneo, feira de design urbano, exposições, jogos, leituras, mercado, música, teatro, workshops… tudo isto e mais ainda vai estar disponível, entre hoje e amanhã, gratuitamente, na Fundação de Serralves. Um fim-de-semana inteirinho para visitar e vivenciar, com a família e os amigos, o Parque de Serralves, no ano em que se assinala o seu centenário.
Sábado, 23 e domingo, 24, das 10h00 às 19h00. Entrada gratuita. |
… Deixar-se contagiar pela magia nos “Encontros Mágicos“, em Coimbra
É o maior e mais antigo festival de magia que se realiza em Portugal, exclusivamente dedicado ao público em geral, contando este ano com 12 artistas de nove países. Começou a 19 de setembro e termina este domingo, e tem ilusionistas de Portugal, Espanha, Reino Unido, Áustria, Japão, Argentina, Cuba, Rússia e Perú, que realizam espetáculos que acontecem diariamente em vários locais da cidade de Coimbra.
Há a Magia de Rua (no centro da cidade), a Escola de Magia e as Galas Internacionais de Magia, que decorrem no Grande Auditório do Convento de São Francisco (a última é hoje). As aulas de magia (também no Convento de São Francisco), são gratuitas, mas necessitam de reserva/inscrição. |
… Ler o livro Um Dia Bom, de Marta Oliveira da Silva e Carolina Branco
Um livro delicioso sobre tudo o que pode fazer de um dia, um dia bom. Quando, à noite, uma menina diz à mãe que não tem por que agradecer aquele dia porque ele não foi bom, a mãe começa a elencar todas as pequenas coisas maravilhosas pelas quais devemos estar gratos. É lindo e é uma lição, não só para miúdos mas também para nós, graúdos, que muitas vezes esquecemos que são os pequenos “nadas” que nos fazem felizes.
(Ed. Livros Horizonte) |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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