A liberdade pode existir. Pena que tenha prazo de validade
Talvez para quem esteja de regresso à vida quotidiana, depois de uma temporada de férias, este não seja propriamente o texto que estejam com vontade de ler. Eu própria, que estou de regresso, escrevi-o com uma pontada no peito. Mas é o que tenho para vos dar, por hoje: um relato de férias em sossego e em família, por esta ordem. Feito o aviso aos mais sensíveis (eu sou das que costuma chorar quando as férias acabam, e vale a pena ler este artigo da Forbes, que nos mostra que a depressão pós-férias é bem real), cá vai. |
Este foi, sem sombra de dúvida, o ano em que tive mais férias, desde que me vi mergulhada na idade adulta e constatei que o tempo feliz de 3 meses de descanso que conhecia até então, tinha, desgraçadamente, chegado ao fim. |
Considero que estive de férias mesmo contando com algumas semanas em que fiz alguns trabalhos, mas que foram de tão pouca monta que não chegam – segundo os meus parâmetros um bocado tresloucados – para contabilizar propriamente como trabalho. E, em bom rigor, foram férias não isentas de guerras de nervos com o empreiteiro que estava a fazer-nos as obras no monte (que comprámos em Janeiro), e que decidiu desaparecer durante mais de dois meses, sem responder a mensagens ou atender o telefone, fazendo com que acordasse todos os dias às 7h da manhã, a ouvir o carro dele chegar, ainda que nunca tivesse chegado (o nosso cérebro consegue ser um trafulha do pior). A partir de uma pesquisa rápida na net, deu para perceber que a falha nos timings combinados para uma obra não é apenas uma calamidade portuguesa. |
Ainda assim, foi um tempo talvez só repetível aquando da reforma (se lá chegar e, lá chegando, o conceito de reforma ainda existir – o que parece cada vez mais improvável). |
Como sou freelancer, e posso trabalhar literalmente de onde quiser, decidi que este ano iria viver 5 semanas para a nossa recém-comprada casa no Alentejo. E se bem decidi, melhor o fiz. Os meus filhos tinham programas vários, desde estadias em casa de amigos, a campos de férias, a combinações várias com estes e aqueles, e eu peguei no mais novo e rumei para Montemor-o-Novo, com o objetivo de acompanhar de perto as obras, de fazer eu própria algumas remodelações mais simples, de fazer alguns trabalhos à distância, e de, pelo caminho, ir aproveitando a casa nova e passar tempo de qualidade com o filho mais novo. Na altura certa, reuniríamos as tropas e rumaríamos ao Algarve, para as desejadas férias a 6 (na verdade, a 8, contando com os nossos 2 cães). |
A única falha neste bonito projeto foi o acompanhamento das obras – uma vez que, em 5 semanas, os homens apareceram apenas uma vez, para fazer pouco mais que nada. Esse facto poderia ter dado cabo de todo o plano, deixando-me à beira de um ataque de nervos, mas, felizmente, uma médica compreendeu que a queda acentuada do estrogénio no meu corpo, aliada a uma anemia severa, e a esse flagelo chamado obras em casa merecia uma medicação adequada para regular o meu (terrífico) humor. Palavras dela: “Pelo mau feitio que me confessa ter, vou-lhe sugerir tomar isto durante um tempo, só mesmo para evitar que os seus filhos venham, mais tarde, a colocá-la num daqueles lares onde não mudam as fraldas aos velhos.” Sem querer fazer a apologia dos químicos, garanto-vos que sem eles talvez já tivesse mandado o pessoal da construção civil todo para lugares obscuros há muito mais tempo, não sem antes insultar as suas respetivas mães que, possivelmente, nem têm culpa de nada. |
O que dizer, então, destas 5 semanas que passei no Alentejo, antes de rumar mais duas até ao Algarve (o que perfez – odeiem-me, eu compreendo – 7 semanas de uma vida de sonho)? Posso dizer, sem correr grandes riscos de estar a exagerar ou a esquecer memórias de infância idílicas (que não possuo propriamente, para ser cruamente franca), que foram as 5 semanas em que me senti mais livre em toda a minha vida. Ninguém é totalmente livre, todos sabemos disso. A maioria de nós tem de trabalhar para viver, temos filhos que dependem de nós, habituamo-nos a estilos de vida que nos obrigam a abdicar ainda mais da liberdade que garantimos ser o que mais desejamos alcançar… enfim, todas essas verdades de La Palisse. Mas, nestas 5 semanas que passei num monte na aldeia de São Cristóvão, eu senti-me livre como nunca me havia sentido. |
É certo que tinha um menor a cargo, que havia refeições para fazer, atenção para lhe dispensar, uma casa para limpar, mas… falo de uma liberdade que é mais funda do que isso. Durante 5 semanas, acordei quando quis (tirando aquele triste despertador cerebral que me fazia abrir a pestana às 7h, acreditando ouvir chegar os homens das obras, mas ainda assim, por vezes, consegui continuar o sono depois de constatar que se tratava de mais uma partida da minha massa cinzenta), usei um fato-de-banho como única indumentária diária (ou, no máximo, um vestido fresco para não estar tão desnudada à mesa, ou uma sweatshirt velha quando arrefecia à noite), comi e bebi rigorosamente tudo o que me deu na gana (sem pensar em calorias, sem pensar em engordar, sem pensar em culpas, sem pensar em absolutamente mais nada que não o meu prazer de comer e beber), não fiz exercício físico (dar umas escassas braçadas na piscina não conta propriamente como exercício físico), não me chateei com coisa nenhuma, não tive horários, não aturei chatos, não fiz fretes. |
Brinquei com o meu filho, dançámos, tive tempo para balançar numa rede, contemplar as estrelas, levá-lo aos vizinhos do lado para alimentar as ovelhas, apanhar fruta das árvores e comer, passar o dia a escutar os pássaros e os badalos dos animais das quintas contíguas. Tive tempo para sonhar, para pensar na vida, para agradecer. Houve um lado espiritual nisto, e olhem que eu sou muito pouco espiritual (e não o digo com qualquer tipo de orgulho, é apenas o que é, um facto da minha personalidade). |
Uma das maiores liberdades foi, sem dúvida, a do olhar dos outros. Ali, longe do olhar dos outros, pude ser absolutamente quem eu sou: sem deglutir pouco mais do que alface com medo de ficar um pote, sem vestir aquela roupa mais fashion por ter um evento qualquer (e há sempre quem nos compare uns com os outros e, sobretudo, umas com as outras), sem ser o que não sou para agradar a quem quer que fosse. E de repente, só ser, para quem vive numa sociedade que valoriza tanto o parecer, foi absurdamente libertador. Quão doentio pode ser isto? Subitamente, estar naquela bolha só com os meus, fez-me perceber o esforço que deposito todos os dias em ser várias “personas” que não são apenas eu. Assim mesmo. Eu, quase selvagem. É que só me faltou andar nua e comer com as mãos, palavra de honra. Não é que não o soubesse já, mas foi preciso chegar quase aos 50 anos para o percecionar de uma forma tão absolutamente profunda. |
E, claro, todo este tempo posta em sossego (mais o tempo que se seguiu de puro prazer de férias em família, mas já sem essa sensação de liberdade por já estar rodeada de gente por todo o lado, e praia, e jantares, e afazeres, e automóveis, e discotecas e eu sei lá que mais) levou-me a pensar aquilo em que tantos pensamos, o que o torna um absoluto lugar-comum (mas os lugares-comuns levaram muito tempo até serem considerados suficientemente universais para serem comuns, pelo que lhes devemos esse respeito): a vida está um bocado virada do avesso. Passamos o ano a fingir, por vezes a vida inteira a fazer de conta, e depois, numas férias genuínas, percebemos o bizarro disto tudo. |
E agora voltar? Olhem, é aceitar, que dói menos. Voltar a fechar esta boca com tendência para o excesso, mexer todo um corpo carregado de migas e carne de alguidar, e trabalhar o bastante para ver se, para o ano, consigo o supremo luxo de voltar apenas a ser eu, sem maquilhagens, filtros, vestidos, ou fretes, durante o tempo que for possível. |
Vale a Pena… |
… Ver, no cinema, o filme “Pôr do sol: o mistério do colar de São Cajó”. Ainda não fui ver pelo facto de, como escrevi acima, ter estado mais ou menos numa bolha em que até as notícias foram vistas em doses muito paliativas, mas conto ir já esta segunda-feira. Achei a série genial, ri-me como há muito não ria com as tiradas geniais de todas as personagens, numa sátira perfeita às novelas portuguesas (com todo o respeito por anos de um crescente trabalho feito nessa área). Além disso, é cinema português e merece ser incentivado (já é o filme português mais visto do ano, com mais de 40 mil espetadores). |
… Ler o livro Lições de Química, de Bonnie Garmus. O livro foi publicado há um ano mas só o li este verão. Gostei muito de acompanhar a história de Elizabeth Zott, uma mulher muito pouco comum, por ser uma química nos anos 60, e por ter naturalmente de lutar contra todos os preconceitos de ser uma mulher cientista, muito à frente no seu tempo, com uma filha nascida fora do casamento. Um livro sobre a afirmação da inteligência, sobre a luta desigual das mulheres, e sobre o amor: de uma mulher e de um homem, de mãe e uma filha, de um cão pelos seus donos (nos anos 60 ainda era legítimo dizer-se “donos”) e vice-versa. Com um humor muito ácido, algures entre Ricky Gervais e Phoebe Waller-Bridge. |
… Ir à Feira da Luz, em Montemor-o-Novo. Sabem como é: uma pessoa começa a ser de um lugar quando começa a ganhar raízes nele, e diz que a Feira da Luz é imperdível. Conto ir lá hoje mesmo, à noite, mas a feira continua até 4 de Setembro. Há música (já aturaram: Nena, Blaya, Pedro Mafama, e hoje, sábado, é noite de Tito Paris, domingo Ana Bacalhau e segunda Polo Norte & Miguel Gameiro). Mas há muito mais: exposições, atividades desportivas, atividades recreativas, workshops, diversões… é ir, que Montemor é, além do mais, uma terra linda. |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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