“Old soldiers never die”. A frase, celebrizada pelo general Douglas McArthur no seu discurso de despedida, em 1951, vem de uma velha canção de guerra inglesa.

“Old soldiers never die”. É bonito mas não é verdade. Os velhos soldados morrem, como toda a gente. E, como quase toda a gente, morrem também na memória de quase todos. Sobretudo nesta nossa “ditosa pátria”. Cada vez somos menos os que teimamos em proclamar, todos os anos, no memorial dos Combatentes, a memória dos nossos amigos e camaradas que morreram. E muitos depois do fim das últimas guerras do Império.

O Guilherme, o Jaime, o Alfredo, o Zé, o Miguel, o Victor, entre tantos outros. Eles e os milhares que não chegaram a “velhos soldados” têm ali o nome gravado na pedra. Lembramo-los todos os anos. E vamos voltar a lembrá-los este ano, a 10 de Junho, primeiro na missa nos Jerónimos, às 10h30, e depois ali mesmo, no memorial. Seremos menos, em cumprimento das restrições pandémicas, mas vamos lá estar.

As nações são feitas disto mesmo – de glórias e derrotas e da memória dos sacrifícios que os seus filhos por elas fizeram, em guerras ganhas ou perdidas. A que então travámos, creio poder dizê-lo em nome da maioria dos que por lá passámos, foi uma guerra sem ódio. Digo-o pela amizade que fui encontrando em alguns dos que então combatemos. Os nossos mortos lutaram e morreram pela nação; os mortos dos que então nos combateram morreram por nações que queriam ver nascer.

Globalismo e subordinação

E a nação, realidade que alguns se esforçam por cancelar ou proibir, continua a ser importante. E agora talvez mais que nunca. Até porque parece ser, afinal, a nação, o único corpo intermédio capaz de defender os povos das tutelas globais. E se não é a pertença a uma comunidade na História o que nos une, irmana e congrega numa humanidade comum, o que propõem então que seja? O sermos todos inodoros, incolores, insalubres, neutros, fluidos e inclusivos? Ou pior, o sermos só nós, do alto da nossa hipócrita e soberba “perfeição ocidental”, os únicos chamados à irrealidade da contrição perpétua, do cancelamento cultural e da suprema glória do desenraizamento e do angelismo transcultural?

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A crer na comunicação social e no silêncio cúmplice ou no aplauso tímido de uma direita temerosa, só os burros, os ignorantes, os retrógrados, os fascistas, os populistas, os xenófobos, os de extrema-direita imaginam inexistentes tutelas globais ou censórias derivas mundialistas de oligarquias iluminadas. Veja-se, por exemplo, Georgia Meloni, dos Fratelli d’Italia, que recentemente voltou a chamar a atenção para o globalismo de subordinação que pretende substituir a soberania nacional e popular pelas tutelas subtis e doces de Bruxelas, de Frankfurt e de Davos, falando da nação como defesa dos povos da Europa contra os mandatos transnacionais. Pura desinformação.

E no entanto, torna-se cada vez mais evidente a estranha aliança táctica e objectiva (e às vezes subjectiva) que está em curso. A aliança de um mega capitalismo internacionalista de “fundos piratas” e senhores da Big Tech com um radicalismo pós-marxista acolhido, endossado e divulgado pela opinião média. É que por mais que alguns queiram perpetuar a imagem do “grande capitalista”, de fato às riscas, charuto e relógio de bolso, ligado às forças conservadoras e “fascistas”, não há como não ver que a ideologia que hoje serve o “mega-capitalista”, de ténis, t-shirt e causas e casas ecológicas e alternativas, está longe de ser o conservadorismo, o populismo, o extrema-direitismo, o fascismo, os nacionalismos que, ao contrário, o ameaçam.

E como as nações, o nacionalismo e os valores identitários são o símbolo por excelência de tudo o que “impede a marcha do progresso”, são o alvo a abater… As nações e os valores identitários do Ocidente euroamericano, bem entendido, porque noutras latitudes já pode haver valores identitários nações e nacionalismos, como o da República Popular da China, um nacionalismo autoritário de partido único e de capitalismo de direcção central, mas que talvez seja melhor não desafiar.

De acordo com as regras destes zelosos pastores do puritanismo multicultural, os asiáticos e os africanos, coitados, podem ser nacionalistas; mas nós, europeus, nós, ocidentais, mais misericordiosos, justos, perfeitos, humanitários e civilizados que os outros, não podemos nem devemos descer tão baixo. Nações, raízes e identidades são primitivas minudências que se compreendem perfeitamente nos outros, que se acolhem, que se aclamam até, mas que a nós, ocidentais, chamados a coisas maiores, não nos ficam bem. Cancelar raízes, pertenças, passados e culturas para atingir a suprema neutralidade e inclusividade é o mínimo a que podemos aspirar.

Daí talvez o luso esforço das campanhas de desnacionalização (veja-se por exemplo, o Programa de História A, 10º, 11º, e 12º anos do Curso Científico-Humanístico de Línguas e Humanidades), que, à luz de ideais “científico-humanitários”, combatem a “desinformação histórica”, apelando à condenação e à contrição perante uma História-pátria e uma identidade que, depois de rigoroso fact check, se revelam, afinal, negras.

O regresso da nação

Entretanto, resistindo a este delirante cancelamento cultural, a valorização da História e da Nação parece estar de volta. De Budapeste a Paris, de Varsóvia a Roma e a Madrid, sob diferentes regimes e em diferentes situações de poder ou oposição, ganham espaço político, pelo voto popular, movimentos e partidos que defendem a identidade e a soberania nacionais, a liberdade de expressão, a prática religiosa, uma visão meta-política da política e um conceito tradicional e realista de família e de comunidade. E esta valorização aparece com força porque os valores que se reafirmam estão em risco por acção de uma minoria com hegemonia gramsciana no Estado e na Sociedade.

Por isso, é preciso que alguns – de direita, de esquerda, do que for – os afirmem em nome do realismo, do senso comum, da continuidade dos modos de vida e das comunidades que construímos na História. E se os partidos sistémicos e as instituições se calam, teremos de ser nós, os que não temos medo que nos achem estúpidos, a resistir.

Camões, o realista

O 10 de Junho era o dia da Raça. E a raça era a dos Portugueses de todos os séculos, de todas as raças e que foram de muitos continentes. Somos uma nação de pioneiros da globalização que, na universalidade, nunca perdeu a identidade, antes a foi recriando com os povos que foi encontrando. E não nos vangloriámos com irrealidades, antes tivemos também sempre um grande sentido do real e do trágico na vida dos homens e dos povos, na ascensão e queda dos Impérios e das civilizações. Ou tiveram-no os nossos melhores. E ainda que as notas “científico-humanísticas” que se adivinham sobre “desinformação e preconceito” em Camões possam vir a dizer o contrário, é difícil não ler n’Os Lusíadas grandeza, aventura, vitórias, também cupidez, servilismo, traição.

Como Fernão Lopes, como Gil Vicente, como Diogo de Couto ou Fernão Mendes Pinto, Camões é um épico lúcido que, como os clássicos gregos e latinos que o inspiraram, conhece a natureza humana (coisa que os novos puritanos do radicalismo importado parecem desconhecer), e sabe que os heróis – os seus heróis individuais, o Fundador, o Condestável, Gama ou Albuquerque – são profundamente humanos. Humanos no bom e no mau. E que o seu herói colectivo – o Povo Português – também vacilou, também esqueceu, também abandonou, também traficou, também se perdeu. E que foi um povo que, no ano da morte do poeta, perdeu a independência com a “união real” a Madrid.

Camões teve o cuidado de dar voz ao contraditório da Expansão, com o Velho do Restelo (o “Idoso do Restelo” não falaria assim), queixando-se também do “desamor às boas letras”. E no lamento final do seu poema maior, foi dizendo:

Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.

Contra a decadência e o decadentismo

Esta é também uma das nossas muitas horas de decadência, decadência crónica ou que continuamente encontramos e que alguns dos grandes pensadores e patriotas de oitocentos – como Herculano, Antero de Quental e Oliveira Martins – também viram aprofundar-se no seu tempo. Mas que diriam se estivessem hoje aqui e se confrontassem com a nossa agravada submissão e veneração ao exterior? Que diriam das delirantes ideias e práticas que não nos servem nem a ninguém mas que agora que nos chegam em virtuais caixotes…da América? E qual não seria o espanto de Camilo e de Eça ao reencontrar hoje um Portugal de Calistos Elóis, de conselheiros Acácios, de Dâmasos, de Palmas Cavalões em múltiplas réplicas tristemente actualizadas em traços caricaturais mais ridículos e mais carregados ainda?

Toda esta bela e festiva sociedade está agora alarmada, ofendida e até assustada porque, ao fim de 47 anos de regime mais ou menos concordante, aparecem algumas vozes de discórdia.

É bom que se sinta alarmada. Mas pior que classe dirigente e a esquerda radical alarmadas é uma direita que não vê a utilidade e a utilização desse alarme para a perpetuação no poder dessa mesma classe. Uma direita ora obediente e também alarmada ora chorosa, derrotista e masoquista, descrevendo o tempo e o modo da Decadência e do Fim como um irremediável e inevitável castigo da História a que não podemos nem devemos resistir.

O 10 de Junho deve significar o contrário e inspirar e dinamizar a vontade sem medo que o povo português sempre mostrou. Resistir e mudar as coisas é e deve ser a palavra de ordem.