Passaram 150 anos sobre o primeiro salão dos impressionistas em Paris, manifestação de um conjunto de pintores que revolucionou a arte europeia e marcou o afastamento da pintura da arte mimética mais académica. Basta lembrar os nomes de alguns deles para perceber do que estamos a falar: Claude Monet, Auguste Renoir, Édouard Manet, Camille Pissarro, Edgar Degas, Alfred Sisley, Paul Cézanne, Mary Cassatt, Berthe Morisot.

E para o entender melhor, podemos também lembrar alguns dos quadros do novo grupo de pintores: Impression, soleil levant, Le bal au Moulin de la Galette, La classe de danse, Femme à sa toilette, Le berceau, La Place du Havre, Effet de pluie, Petite fille dans un fauteuil bleu, Le déjeuner sur l’herbe, L’Olympia, La maison du pendu.

Talvez o nome do grupo viesse do quadro de Manet, Impression, soleil levant, que criou alguma curiosidade e crítica, como se fosse uma obra inacabada, naquela miscelânea de pinceladas, uma paisagem de água e céu indecisos, com uma luz hesitante, vaga, que parece resignada a ficar assim para o resto do dia.

Era uma novidade, este modo de pincelar as cores, numa amálgama que parecia irresoluta e inacabada? Talvez não fosse, se pensarmos nalguns quadros de Franz Hals ou dos Breugel. Mas o recurso à cor e às cores, a indefinição, o afastamento, quer da precisão “maquinal” da fotografia e da ilustração jornalística, quer do mimetismo mais académico, iam definir o movimento, logo catalogado como “impressionismo”; um movimento que ia ser de tal forma marcante que daria direito a um antes e um depois, e a pré-impressionistas e pós-impressionistas. Entre os primeiros, podemos incluir Eugène Delacroix e Gustave Courbet; entre os últimos, Cézanne, Gauguin e Vincent Van Gogh.

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Ao lado da tragédia política

O impressionismo apareceu num tempo politicamente significativo: em 1874, tinham passado três anos sobre a derrota e a humilhação da França, vencida pela Prússia-Alemanha de Bismarck; e também acontecera a Comuna de Paris, os excessos dos communards e a révanche e repressão dos versaillais. Isto deixara marcas no coração de Paris e dos parisienses, que podiam, em Junho de 1871, olhar as ruínas e os destroços causados pelos fogos de artilharia.

Mas os pintores do impressionismo não se ocuparam da cidade destruída ou das suas feridas, com excepção talvez de Corot, em Le Rêve: Paris incendié. E no entanto, entre a guerra exterior, contra os prussianos, e a guerra civil da insurreição, da ocupação da capital pelos communards e da resposta e repressão dos versaillais, Paris e os seus monumentos tinham sofrido bastante: o Hotel de Ville, o Louvre, as Tulherias, o Palais Royal estavam parcialmente destruídos e a reconstrução iria estender-se pela década de 1870 e entrar pelos anos 80.

Sobre estas ruínas e destruições precipitaram-se os fotógrafos e os ilustradores, em clichés e desenhos que apareceram nos jornais. Mas os impressionistas, excluindo a litografia de Manet Guerre Civile, pareciam alheados da tragédia. O aparente desinteresse artístico pela actualidade jornalística imediata, tomada por fotógrafos e desenhadores, o mercado de arte e o facto de quase todos eles estarem fora da capital poderão talvez explicá-lo: Monet vai para Argenteuil, Berthe Morisot está em Charbourg, Degas na Normandia, Renoir em Bourron-Marlotte; Mary Cassatt ainda está na América, na Pensilvânia. Mas os que estão em Paris, como Gauguin, Guillaumin e Jongkind, pintam paisagens idílicas, como La Seine à Paris (Guillaumin) ou Le Canal de l’Ourcq prés de Pantin (Jongkind). Seurat deixará uma memória desse tempo trágico em Ruines des Tuilleries.

Os quadros de Paris dos anos 70 dos impressionistas voltavam-se preferencialmente para os jardins, para o Sena, para as praças, para as cenas burguesas da joie de vivre em troços da cidade e arredores que não tinham sofrido a destruição da guerra e da guerra civil. Por muitas e complexas razões – da cabeça e do coração, mas também da bolsa.

Os artistas estavam em princípio de carreira e os clientes eram fundamentais. Paul Durand-Ruel, um “marchand d’art” que foi também protector e mecenas da “nova escola”, tinha de bater-se com o antagonismo dos académicos e as consequências do endividamento constante perante a parca procura das obras em França. Iria valer-lhe a América: em Nova Iorque, em 1886, o salão de 300 telas impressionistas ia ser um grande sucesso.

De qualquer forma, os compradores franceses e americanos preferiam paisagens idílicas, almoços na relva, concertos populares, recantos românticos, mesmo se pintados ao novo estilo, a paisagens de ruínas e de guerra.

Também os vencedores, na pós-revolução conservadora, velavam pela ordem e lei, mesmo nas artes: em 1872 saíra uma lei que sancionava obras que fizessem a apologia da Comuna; e os impressionistas, embora houvesse, entre eles, alguns simpatizantes progressistas, não queriam mais confusões. O facto de serem “revolucionários” na estética já lhes trazia problemas de sobra.

Assim, Monet e Renoir vão pintar a Paris do Segundo Império, com as novas avenidas de Haussman. Monet pinta Boulevard des Capucines em 1873, uma paisagem urbana, com a silhueta dos belos edifícios, das árvores, das carruagens, entre neve, nuvens altas e gente que se mexe na neve, como numa tela de Bruegel, o Velho. Em 1872, Renoir pintara Pont-Neuf, uma festa de cor, gente e carros, sob um céu de meio-dia e nuvens brilhando ao alto. Já Le Pont Neuf de Monet, de 1873, ia ser um quadro sombrio e chuvoso, com gente curvada, protegendo-se da bátega debaixo dos chapéus de chuva.

Nestas e outras obras, sob a pressão do mercado ou por vontade própria, os impressionistas procuraram marcas de uma cidade bela, burguesa, moderna, com comboios e estações; uma cidade com referências à monumentalidade aristocrática, mas também com espaço para os bairros e as gentes populares.

O “ano terrível” de 1871 ficaria, assim, esquecido. Como observaria Robert Herbert em 1991, o modo de os impressionistas verem Paris e a vida de Paris era “sintomático do espírito de reconstrução do pós-guerra e da vontade de restabelecer o orgulho ferido da França”, retratando “uma atmosfera de optimismo”.

Impressões de Proust e Baudelaire

Marcel Proust, o narrador por excelência desse tempo de Paris e da França, era um admirador dos impressionistas, sobretudo de Claude Monet. Em A la recherche aparece um pintor, Elstir, que, segundo o narrador, tem uma profunda influência na sua maneira ver as coisas (“Mme de Sévigné est une grande artiste de la même famille qu’un peintre que j’allais rencontrer à Balbec et qui eut une influence si profonde sur ma vision des choses, Elstir.”)

Elstir desorienta os frequentadores do salão de Madame Verdurin, fiéis ao realismo da Academia, porque, como o narrador de A la recherche escreve em A l’ombre des jeunes filles en fleur, se Deus Pai criou as coisas nomeando-as, Elstir recreava-as renomeando-as (“Si Dieu le Père avait créé des choses en les nommant, c’est en leur ôtant leur nom ou en leur en donnant un autre qu’Elstir les recréait”).

É pela recriação de Elstir da realidade, ou pela sua percepção e reinvenção da realidade na luz e na cor, que Marcel Proust reafirma o lado criador e recriador de toda a arte.

Ao pintar a realidade, a nova realidade, os impressionistas também respondiam a uma queixa de Baudelaire que, em 1862, lamentava que os artistas plásticos repetissem as vestes e os décors do passado, de Roma, da Idade Média, da Renascença, do Oriente…

Os impressionistas – e também por isso eram mal recebidos pelos seus pares da Academia – pegavam na realidade, no porto do Havre, nos boulevards de Paris, e pintavam as pessoas comuns, como que surpreendidas no quotidiano, fora das tradicionais poses de retrato. Ao sol, à chuva, de manhã, ao fim do dia, pintavam a vida como ela era. Ou talvez não, talvez fossem só recriações, percepções, impressões, sonhos de normalidade.