No próximo dia 13 de agosto faz noventa anos sobre a morte de Ignacio Sánchez Mejías, escritor, dramaturgo, encenador, actor, cronista, jornalista, conferencista, mecenas, presidente do Real Betis Balompié e da Cruz Vermelha de Sevilha, piloto, empresário de aviação, jogador de polo, sportsman e também toureiro, ou, antes de tudo, matador de toiros.
Garcia Lorca dedicou-lhe a elegia, “Llanto por Ignacio Sánchez Mejías”, por ocasião da sua morte, “eran las cinco en punto de la tarde”, corria o ano de 1934, quando saiu o quarto de Ayala, Granadino, na praça de Manzanares.
Muitos outros escritores e poetas vanguardistas da idade de prata do grupo de homenagem a Góngora no Ateneu de Sevilha, que os ensaístas da literatura espanhola cunharam de Geração de 27, exultaram a vida e choraram a morte de Sánchez Mejías.
Quem foi este personagem que viveu tantas vidas numa só e que transcendeu à imortalidade dos mitos cantados pelos poetas?
Ignacio Sánchez Mejías nasce em Sevilha, em 1891, no bairro de San Lorenzo, é o vigésimo segundo filho de um médico cirurgião, José António Sánchez Martínez e de Maria de la Salud Mejíaz Díaz, família burguesa da cidade andaluza, muito longe do estereótipo dos maletillas que enveredavam pelos toiros para fugirem à fome daqueles tempos.
Faz amizades com facilidade, desde a aristocracia sevilhana até à Alameda Hércules que nos primeiros anos do sec. XX é local de convívio popular na cidade do Guadalquivir. Por essa altura conhece José Gomez Ortega (Joselito el Gallo) o mais novo da dinastia dos Gallos, quatro anos mais novo do que Ignacio.
Frequenta o colégio dos padres Escolapios e os estudos de bacharelato no Instituto Geral y Técnico de Segunda Enseñanza de Sevilha, que termina anos mais tarde, no instituto onubense de la Rábida, mas a sede de conhecimento é uma constante como o seu entusiasmo pela filosofia, o teatro, a literatura, a cultura popular e a defesa intransigente dos seus valores.
Numa horta perto de casa Sánchez Mejías e outros miúdos brincam às corridas de toiros com trapos e cornos improvisados em restos de bicicleta, entre eles está também Joselito, que diziam ser um caso à parte porque había nacido en el vientre de una vaca.
Sánchez Mejías foi toureiro porque o momento sevilhano em que nasce, la gloria romántica hispalense estaba en la torería, no dizer de Joaquín Romero Murube. A geração a que pertence é fortemente marcada pelos ecos da morte de Espartero em 1894, toureiro sevilhano e herói popular, morto em Madrid por um toiro de Miura. Joselito, Belmonte e Ignacio Sánchez Mejías crescem nesse ambiente que inspirou para sempre as letras de coplas e poemas entre o toiro Perdigón e Espartero.
Para Romero Murube a verdadeira dimensão da vocação de Ignacio Sánchez Mejías está em que Joselito, pelas suas circunstâncias não podia ter sido outra coisa senão toureiro, já Ignacio podia ter sido tudo, médico, político ou escritor, mas foi inoculado com o veneno de los toros.
O caminho até matador de toiros é atribulado, aos 17 anos abandona a casa dos pais e embarca para Nova York e depois México, numa aventura para ser toureiro com o seu amigo Enrique Ortega (Cuco), chegam a ser presos e confundidos com perigosos anarquistas.
Sem dinheiro, Ignacio Sánchez Mejías só consegue regressar a Espanha na quadrilha do cordobés, Fermin Muñoz, já apodado de valiente pela forma como bandarilhou em praças mexicanas.
Em 1913 apresenta-se em Madrid com novilhos do seu grande amigo Fernando Villalón, conde de Miraflores, poeta e ganadero excêntrico, onde impacta pelo seu valor e despreocupação com o perigo, mas ainda com carências de ofício.
A rivalidade entre Joselito e Belmonte está instalada em 1914, mas Ignacio tarda em despontar e sofre cornada dura em Sevilha, no ano seguinte sai de subalterno com Belmonte, Rafael el Gallo e com o irmão deste, Joselito, sem nunca abandonar o sonho de chegar a matador de toiros.
Com 28 anos volta a Sevilha como novilheiro e consegue alcançar a alternativa em Barcelona (1919), num cartel para a história, Joselito, Belmonte e Sanchez Mejías, com toiros de Vicente Martinez e seguem-se três temporadas de estrondo.
Em 16 de maio de 1920, comparte cartel em Talavera de la Reina com Joselito e vive a dor e o drama da morte do seu amigo, cunhado e ídolo. Retira-se em 1922, depois de matar sete toiros em Ávila, para regressar em 1924 em Alicante.
Inicia em 1925 intensa actividade de cronista e escreve a primeira novela, “La amargura del triunfo”. Em 1927 volta a retirar-se dos toiros e organiza o histórico encontro literário de homenagem a don Luis de Góngora no Ateneu de Sevilha e em sua casa de Pino Montano, com todos os poetas vanguardistas de então, Garcia Lorca, Rafael Alberti, Gerardo Diego, Dámaso Alonso, Bergamín, Jorge Guillé e Juan Chabás.
Hoje considerado um marco na história da cultura espanhola e estudado na cátedra, Ignacio Sánchez Mejías de Comunicación y Tauromaquia de la Universidad de Sevilla, que há poucos anos voltou a ser recordado por iniciativa de outro toureiro, Miguel Ángel Perera.
Ignacio Sánchez Mejías era um homem de cortesia antiga, dono de uma elegância intelectual a par de um porte senhorial e cosmopolita, depois de estoquear dois toiros, envergava com toda a naturalidade o traje mundano para conferenciar num qualquer salão ou universidade, sobre filosofia, história, literatura, ética, teatro e, sempre, a tauromaquia.
Brilhante, culto, versátil sedutor e polémico, saltou de espontâneo à arena do jornalismo madrileno para enfrentar José Maria Salaverría, no polémico ataque deste à tauromaquia no ABC, onde Sánchez Mejías contou, em sua defesa, com as palavras de Unamuno que o tratava como compañero de letras.
Estreia as primeiras obras de teatro em 1928, Sinrazón em Madrid e Zaya, em Santander.
Na companhia de Garcia Lorca, volta a Nova York onde profere uma conferência na universidade de Columbia sobre tauromaquia – El pase de la muerte, aos alunos de espanhol, num texto que ombreia com o celebre prólogo de Ortega e Gasset, nos Veinte años de caza mayor, de Eduardo Figueroa Alonso-Martínez, Conde de Yebes.
Nas primeiras décadas do século passado, em Espanha, os toureiros são os grandes heróis populares, como Bombita e Machaquito, Manuel Bienvenida, Vicente Pastor, Joselito e Juan Belmonte, Rodolfo Gaona, Manuel Granadero Marcial Lalanda, Chicuelo, Nicanor Villalta e Ignacio Sánchez Mejías.
Em 1934, inconformado com os múltiplos afazeres, apesar dos sucessos nos negócios, no jornalismo e na literatura, Sánchez Mejías decide voltar a vestir-se de luces em Cádiz, numa decisão sem paralelo com outros regressos, não precisa de dinheiro como seu cunhado Rafael el Gallo e tem uma vida criativa e cosmopolita, ao contrário de Juan Belmonte que definhava longe dos toros.
Para Sánchez Mejías era chegada a “hora de la formalidade”, a hora de criar a obra transcendente capaz de somar a arte, que quase sempre lhe negaram, ao valor que sempre lhe reconheceram e ouvir então do sol gritarem, uma e outra vez: Así toreaba Joselito!
Ignacio tinha alcançado a glória com uma fé inquebrantável que o fez vencer a batalha do esquecimento e ressuscitar na poesia, na escultura, pintura, música e no ballet, muito para lá dos horizontes andaluzes, castelhanos ou da própria Festa.
Mejías acreditava na dimensão transcendental da tauromaquia à maneira de Bergamín como transmitiu aos estudantes de Nova York, “a ciência de la tauromaquia es el caminho de la vida eterna, de la inmortalidad. El triunfo de la vida sobre la muerte”.
Talvez por isso, Garcia Lorca descreve a prodigiosa geração taurina da edad de oro e concede a Ignacio Sánchez Mejías el sítio de la fe. Joselito fue inteligencia pura, sabiduría inmaculada. Belmonte, el iluminado, el hambriento desnudo de Triana. Sánchez Mejías es la fe, la voluntad, el hombre, el héroe puro. Ignacio representa la escuela de la dignidade. No se trata de um torero, se trata de un hombre que tórea, como também o definiu, o critico, Gregorio Corrochano.
Quando Ignacio Sánchez Mejías morre a 13 de agosto de 1934, em resultado da cornada de Granadino, dois dias antes em Manzanares, é sepultado por uma multidão em Sevilha, no mausóleo que Mariano Benlliure havia esculpido para Joselito, no cemitério de San Fernando e os dois chiquillos que um dia se conheceram na Alameda, brincaram aos toiros nas margens do Guadalquivir, voltariam a estar juntos, agora, para sempre.
Muitos dos seus amigos poetas foram tocados pela manifestação daquela dor, José Maria de Cossio, Gerardo Diego, Miguel Hernandez, Rafael Alberti, Pedro Salinas, mas todos foram sublimados pelo “Llanto por Ignacio Sánchez Mejías” de Federico Garcia Lorca, transformado em poema maior da literatura universal que converteu em mito a morte de Sánchez Mejías, mais do que o toureiro, a morte de um homem sem limites.
Personagem de talentos invulgares, Ignacio Sánchez Mejías não pôde ser poeta porque se transfigurou em poema depois de regressar aos toiros onde encontrou a paz.
Por iniciativa da Fundación del Toro de Lidia, 16 de maio foi escolhido para assinalar o Dia Internacional da Tauromaquia!
Neste dia recordamos os que lhe entregaram tudo e celebramos, apesar das intempéries, os que continuam a busca incessante da transcendência da vida entre o sol e a sombra.
Lisboa, 16 de maio de 2024