Foi com enorme angústia que recebi a notícia de que aqueles que constantemente se dizem os defensores da liberdade de expressão e da liberdade cultural interromperam o espetáculo “Tudo sobre a minha mãe”, no Teatro São Luiz, alegando falta de representatividade, uma vez que o ator que representaria uma personagem trans não era trans.

É triste compreender que é precisamente em virtude destes radicalismos obtusos que o populismo se insere nos escombros da sociedade portuguesa.

Uma ativista decide interromper a sessão para afirmar ser prostituta por não conseguir encontrar trabalho no mundo artístico; no entanto, é a primeira a mobilizar-se e a boicotar o trabalho de um colega de profissão.

O teatro deve e deverá ser sempre aquilo que quiser: um espaço de liberdade onde qualquer pessoa tem o direito de abandonar a sala, mas nunca interromper um espetáculo por discordar. A censura está de regresso, como sempre pela defesa dos valores, sejam eles de que natureza forem.

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É, para mim, enquanto pessoa apaixonada pelo teatro, desconcertante ver a liberdade cultural sob ataque do ativismo mais bacoco e bafiento que existe. É de lamentar a postura da companhia de teatro e da direção do Teatro São Luiz, que não se colocaram do lado do ator André Patrício, a verdadeira vítima de todo este triste episódio, que afirma em comunicado ter-se sentido “violentado e castrado”.

Este movimento a nível mundial formou-se em Portugal após o enorme sucesso da encenação brilhante de Carlos Avilez, referência maior na formação de atores deste país e que desde sempre defendeu a liberdade cultural contra a ditadura salazarista, tendo sido responsável pela construção de peças que iam contra um regime fortemente pautado pelo catolicismo mais conservador, por exemplo através do histórico Auto da Barca do Inferno, no qual o encenador representou o diabo como uma mulher sensual e sinónimo de liberdade, enquanto o anjo personificaria o grotesco e a repressão.

Avilez foi fortemente criticado em Charlotte, porque Marco D’Almeida representava também ele uma personagem trans. Como é por isso possível que este conjunto de “legionários do bacoco” tenha a ousadia de colocar em causa a falta de solidariedade e de sensibilidade de uma figura proeminente da cultura portuguesa, que lutou sempre pela liberdade do palco?

Representar as minorias é representar as suas dores, angústias, lutas, causas, belezas, ideologias, ou seja, representar na sua mais pura definição. O teatro é a representação da realidade, uma imagem do real que não é necessariamente o real.

Vivem-se tempos perigosos, tempos em que estes grupos de “ditadores” da trincheira dos bons costumes destroem a liberdade cultural, minam a mente humana e são eles próprios involuntariamente causadores da segregação e da hostilização da comunidade que afirmam defender.

Desde o início dos tempos, os artistas estiveram na vanguarda da revolução contra os regimes totalitários. Hoje esses filhos da revolução devoram a sua própria revolução. Vemos hoje,por isso, alguns dos que costumam apropriar-se do cravo vermelho de abril do lado contrário da trincheira àquele em que o cravo certamente estaria.

Hoje este grupo de totalitaristas retira a poesia da rua, como declamava Sophia e amarra o teatro ao “wokismo” mais bafiento que existe. Estarei sempre ao lado da defesa das minorias e do seu espaço. Estarei sempre na luta contra a segregação, mas jamais compactuarei com a violação da liberdade criativa, em prol da hipocrisia da trincheira do bem. Defenderei sempre, a todo o custo, a salvaguarda do artigo 42.º da constituição.

Afinal de contas, “tudo começou, quando o ator passou a ser ator. Quanto ao limite… apenas há a certeza… de não ser o céu”.