Na primeira parte deste artigo defendi que a democracia periga na Europa Ocidental. Por activa e por passiva, os partidos da chamada direita populista não obtiveram nas últimas eleições uma representação parlamentar condizente com as percentagens de votos obtidas nas urnas.  Para agravar a situação, onde estas foram suficientes para entrar em governos de coligação de direita, os outros partidos encontraram fórmulas para evitar essa participação na governação.

Mesmo ressalvando o facto de não existir uma fórmula que agregue perfeitamente as preferências dos eleitores, não deixa de ser evidente que se assistiu nas últimas eleições na parte mais Ocidental da Europa (Portugal, Espanha, França e Reino Unido) a uma concertação que foi mais além da natural gincana partidária para minimizar a voz de um sector amplo da população. Isso foi particularmente intencional em França, em Espanha e em Portugal e mais fortuito no Reino Unido onde, no entanto, esse resultado acabou por ser o mais distorcido. Compreensivelmente, os partidos  que operaram estas estratégias nunca aceitariam ser acusados de anti-democráticos e podem alegar que agiram dentro dos limites da democracia. Mas, o que defendem como democrático é muito mais a forma que a substância do processo.

Acresce a esta tese o facto de os partidos desta nova direita obterem relativamente mais votos nas camadas economicamente mais desfavorecidas da sociedade. Como escrevi então, os dados ainda não são suficientes para elevar estes partidos à categoria de grandes representantes do povo, mas são os partidos que mais crescem nos bairros mais desfavorecidos das cidades, entre os assalariados das zonas industriais mais deprimidas (e com menores salários) e nas regiões mais distantes do poder central. Na medida em que a democracia é o contrapeso ao poder aristocrático das outras instituições, e essa já era a sua função nos tempos dos tribunos dos plebeus romanos, a sub-representação daqueles que estes elegem é tão perigosa para a Democracia agora, como o foi na época mais aristocrática da República Romana. Não sendo eu, um defensor da democracia directa como única base para o exercício do poder político, não deixa de ser curioso constatar que aqueles que mais propagaram nas últimas décadas a ideia de que esta era a única forma legítima de decisão política e exigiram que cada vez mais decisões tivessem base plebiscitária, sejam agora os que, desde a titularidade do exercício do poder, mais aparentem temer a colheita daquilo que semearam.

Devo, no entanto, reconhecer que a análise efectuada na primeira parte foi essencialmente conjuntural. Grande parte do eleitorado é inconstante (ou constante em relação a outros valores que não o partido em que votam) e tudo isto pode desaparecer nas próximas eleições. Não é essa, no entanto, a minha leitura. O que a primeira parte deste texto identifica é uma tendência. Uma tendência que se tem vindo paulatinamente a afirmar no sistema político por motivos muito mais estruturais do que aqueles os políticos tradicionais (e a nomenclatura intelectual que os acompanha) estão dispostos a admitir. A primeira parte desta composição sempre exigiu esta segunda (e muito provavelmente uma terceira) que ficou no tinteiro apenas por uma questão de espaço.

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A grande ameaça estrutural que envolve, enquadra, circunda e causa este fenómeno, a saber, a crescente preferência por partidos populistas é a falência do chamado Estado do Bem-Estar. Esta falência é uma crónica de uma morte anunciada. Mas também de um projecto político que ficou na memória colectiva, talvez de forma demasiado idealizada, e ao qual grande parte dos eleitores querem voltar. É o sonho que, implicitamente, todos os políticos prometem cumprir mas que se vai distanciando para uma fasquia cada vez maior da população.

O Estado do Bem-Estar, foi um projecto europeu que se convenciona ter começado após a Segunda Guerra Mundial. As origens fascistas do mesmo ficaram encobertas no véu de silêncio da reconciliação social necessária para poder deixar para trás o conflicto. O projecto era um sistema de protecção social universal, do berço ao túmulo, e de um sistema de produção económica concertado entre trabalhadores e empregadores, sob a tutela de um Estado tendencialmente intervencionista. Este foi o propósito que guiou a reconstrução europeia. No início o modelo era barato. Com um alto nível de emprego e crescimento económico acelerado, foi possível criar uma extensa rede de apoio social, educacional, cultural e sanitária universal. Mas os encargos com a mesma foram aumentando e no final da década de 60 os encargos já eram insustentáveis para a maioria dos governos. Grande parte do gasto público necessário foi financiado pela expansão do déficit norte-americano durante a Pax Americana e quando os europeus (em particular a França) decidiram converter os seus saldos em ouro a 35 dólares a onça, o sistema de Bretton Woods fez-se em estilhaços.

A década de 70 marcou o fim do Estado do Bem-Estar na Europa como originalmente projectado. No entanto, este continuava a ser um desiderato da população e, a partir da década de 80, os governos encontraram uma forma de o manter que, em grande parte, consistiu em gastar o mínimo e chutar o problema para a frente. Este curto resumo é um pouco injusto, já que a maior parte dos governos tentou, e em muitos casos conseguiu, implementar reformas importantes no sistema público e abrir espaço à eficiência económica do sector privado durante os anos 80. Uma vaga de privatizações, a que nem a França socialista de Mitterrand pôde escapar, varreu a Europa, trazendo para o lado da competitividade e inovação muitas grandes empresas esclerosadas por décadas de imobilismo e monopólios.

No entanto, a receita monetarista continha uma armadilha mortal, a da expansão do crédito a níveis que a disciplina imposta pelo padrão-ouro (mesmo um sistema de padrão-ouro bastante deficiente no seu desenho como era o de Bretton Woods) nunca tinha permitido nem aos keynesianos mais radicais. Ao cingir a política monetária ao controlo da inflação, isto é, à monitorização do nível de preços de um cabaz de produtos algo arbitrário e, fatalmente composto apenas por bens de consumo, os monetaristas ignoraram, consciente ou inconscientemente, toda a panóplia de preços relativos em aumento que se ia observando nos bens de capital. Numa relação simbiótica perversa entre taxas de juro que baixavam de níveis de 40% para virtualmente zero no espaço de duas décadas, à medida que os bancos centrais introduziam maiores quantidades de dinheiro na economia, cegos à inflação que não se reflectia nos bens de consumo, sem uma âncora internacional como o padrão-ouro que revelasse a perda de competitividade das economias nacionais, já que todas desvalorizavam mais ou menos ao mesmo tempo mantendo o valor relativo das divisas no mercado internacional mais ou menos constante, formou-se debaixo da superfície dos preços dos bens de consumo uma imensa bolha do preço dos bens de capital e duradouros que se pôde observar não só nas subidas dos índices das principais bolsas como, para o cidadão comum, no quase constante aumento do preço do imobiliário. Estas alertas foram interpretadas como virtudes e, durante 20 anos, qualquer reversão nos preços das acções ou do imobiliário era rapidamente erradicada por novas descidas de taxas de juro. Onde os keynesianos julgaram encontrar a máquina do movimento perpétuo do crescimento económico no vínculo entre o pleno emprego e a inflação, estimulando a procura através do aumento do déficit público cada vez que a economia abrandava, os monetaristas aplicaram descidas de taxas de juro cada vez que uma deflação do preço dos bens de capital tentava corrigir os erros de investimento fomentados pela própria bolha económica. O poder de compra relativo dos salários foi-se paulatinamente degradando à medida que o acesso a bens duradouros como a habitação foi sendo “compensado” pelo acesso a um crédito cada vez mais barato e um maior endividamento das famílias.

Para agravar a situação, depois de um breve período durante a década de 80 em que o déficit público foi disciplinado pelas altas taxas de juro, o bar-aberto voltou a ser a regra. E voltou em força. Enquanto os keynesianos durante o padrão-ouro não poderam aumentar os déficits públicos além dos 30% do PIB sem provocar uma forte desvalorização interna e externa da moeda, os monetaristas, com o mercado internacional desvalorizando em conluio e o mercado interno a ser estimulado por novas emissões monetárias, a dívida pública revelou-se subitamente imbuída de uma virtude de que nunca desfrutou: aumentar a capacidade de endividamento da generalidade da economia. E foi assim que dos 25-30% de percentagem do PIB de dívida pública, a dívida pública se colocou nuns incríveis 70% em pouco mais de duas décadas (e a privada de menos de 50% no final da década de 60 a mais de 150% no final do século). Isto enquanto a União Europeia impunha uma regra para a adesão ao Euro que dizia que a dívida pública não podia ser superior a 60% do PIB. Regra que começou a ser incumprida mais ou menos no momento em que foi imposta.

Existem vários problemas no brutal aumento do endividamento privado que culminou na Grande Crise Financeira de 2007 que escapam um pouco ao propósito desta análise. Importa no entanto referir o facto de, desde então, o endividamento privado ter tocado o seu tecto e ter sido substituído por novo aumento do endividamento público em cerca de 20 pontos percentuais adicionais em relação ao PIB. O aumento do endividamento público permitiu, esconder o buraco que existe na capacidade do Estado do Bem-Estar cumprir a promessa de um sistema universal de acesso a bens e serviços públicos de qualidade. Parte da factura foi simplesmente sendo adiada e continua a acumular-se. Os 60% do PIB, que já eram quase 70% aquando da introdução do Euro, são agora 90% (e só porque a Alemanha se mantém orgulhosamente nos 66%, já que as outras 3 grandes economias se situam desafiantes acima dos 100%). Apesar de os economistas da UE nos garantirem que todos os estados-membros (ou quase todos, a França é a excepção de momento) estarem a dar os passos necessários para voltar aos tais 60% de dívida pública em percentagem do PIB (dada uma escala temporal suficientemente longa), a verdade é que entre crises financeiras, “whatever it takes” para salvar a dívida pública dos PIGS, pandemias e guerras na Ucrânia, os governos europeus têm sido incapazes de retroceder a esses níveis idílicos de dívida pública aos que, juram, estão todos empenhados em voltar.

Para agravar a situação, o futuro mais próximo “exige” um aumento do gasto público na Europa por vários motivos. O principal porque a imaginação de políticos e burocratas é fértil quando se trata de encontrar destino para a riqueza que os cidadãos vão produzindo. As pressões norte-americanas para acabar com o chamado “peace dividend”, ou seja, que os Europeus suportem cada vez mais os custos da sua defesa (uma decisão política que é independente de Trump ou Harris se sentarem na Sala Oval a partir de Janeiro do ano que vem) vieram para ficar, mas uma paz negociada para a Ucrânia não aparenta estar na agenda europeia. O envelhecimento demográfico que aumenta o custo (e diminui a qualidade) das pensões de reforma e dos cuidados de saúde paira como uma Espada de Dâmocles sobre a administração pública. O EU Green Deal que não vai salvar nem o planeta nem o bolso dos contribuintes parece continuar a ser insensível à realidade de que não existe riqueza nem tecnologia criada para o fazer uma realidade. A redução do Digitalization Gap face à China e aos Estados Unidos que os burocratas europeus acreditam, ou querem-nos fazer acreditar, se resolve com investimento público, está definitivamente demonstrado ser uma grande oportunidade de crescimento económico para o continente em diversas folhas de Excel.

Todos estes factores vão exigir novos aumentos de dívida pública na próxima década. Exceptuando a ironia com que tudo isto está descrito, não sou eu quem o afirma, é o Banco Central Europeu. A isto podemos acrescentar a nova onda de protecionismo, eufemisticamente chamada “reshoring”, que a UE já legisla a todo o vapor e que vai obstacularizar a divisão internacional do trabalho, quer dizer, a produção barata de bens na Ásia. Bens que os Europeus não querem, não podem e sobretudo não devem produzir ao baixo custo que ali se consegue produzir. Não terá escapado aos mais atentos que, após anos a fomentar o fabrico de carros eléctricos destruindo grande parte da vantagem competitiva europeia no sector, agora que os chineses os conseguem produzir a preços acessíveis, a UE decide aumentar quase 40% as tarifas alfandegárias à sua importação.

Quando tudo o que os partidos titulares têm para oferecer é menos riqueza e mais impostos é normal que as pessoas procurem uma alternativa, em particular as pessoas economicamente mais desfavorecidas e que não vivem das esmolas que os governos dão para comprar votos. Em Maio de 2022, a Fundación de Estudios de Economía Aplicada (FEDEA) publicou um estudo sobre as transferências de riqueza operadas pelo governo espanhol no ano anterior. O Economista espanhol Juan Ramón Rallo aproveitou este estudo para retirar algumas ilações algo surpreendentes para os mais desatentos.  Dos 4 milhões de famílias em risco de pobreza em Espanha, apenas os pensionistas e os que vivem de subsídios são claros receptores líquidos de riqueza através do Estado. Todos os demais pagam em termos agregados, inclusivamente aquelas outras famílias que se encontram abaixo do limiar da pobreza. Neste segmento, os assalariados recebem em bens e serviços do Estado aproximadamente o que pagam em impostos e os trabalhadores independentes nem isso, são contribuintes líquidos do sistema redistributivo do Estado. Acima do limite de pobreza o conjunto agregado de famílias espanholas (cerca de 13 milhões de famílias) é, obviamente, contribuinte líquido. Os pensionistas em risco de pobreza são 1,3 milhões de famílias e os receptores de subsídios (tipicamente o rendimento mínimo garantido) em risco de pobreza são cerca de meio milhão. Ou seja, dos cerca de 4 milhões de famílias em risco de pobreza em Espanha, mais de metade têm um saldo de transferência de riqueza agregado praticamente nulo. E isto depois do endividamento público, e não contabilizando que impostos indirectos como o IRC estejam a ser pagos efectivamente pelas famílias. Quer dizer, a partir de um estudo que até parte do princípio algo duvidoso que o Estado redistribui hoje, mais riqueza que a que confisca à totalidade das famílias. Em todos os segmentos da população existem famílias que vivem das transferências do Estado e famílias que pagam essas transferências. Mas quando o Estado confisca 35% da riqueza produzida para entregar serviços de dúbia qualidade, e apenas 2% desse montante se dedica “à correcção de desigualdades” e, entre estes, não sirvam em termos agregados sequer para aliviar a carga dos trabalhadores cujos ingressos não lhes permitem sair da pobreza, talvez se explique melhor a atracção dos mais desfavorecidos pela chamada direita populista do que chamando-lhes fascistas.

Chegados a este ponto, gostaria de vos poder anunciar que esta chamada direita populista irá resolver o grave desequilíbrio do Estado do Bem-Estar. Infelizmente isso não é certo. Apesar de no início alguns destes partidos terem namorado algum liberalismo económico como forma de captar votos, essa nunca foi a sua essência e rapidamente perceberam que o grosso dos votos está nos descontentes do sistema actual, que acreditam que este ainda não faliu e é reformável. Querem aquilo que os fundadores da social-democracia prometeram, um acesso universal às benesses que o Estado do Bem-Estar ia proporcionar do berço ao túmulo. Os políticos destes partidos acreditam, ou querem fazer-nos acreditar, que com reformas simples como o fim da corrupção, a regulação da corrupção ou o aumento dos impostos à banca o Estado vai poder pagar o que desde 1969 não pôde pagar sem desvalorizações, bolhas económicas ou recurso crescente a dívida pública. A entrada destes partidos no poder teria o condão de os fazer cúmplices da situação, mas a atitude de os relegar por sistema à oposição só os vai fazer crescer à medida que o descontentamento aumentar. E este vai aumentar.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.