Este é um comentário a um artigo publicado no Público e assinado por um conjunto alargado de pessoas convictas da sua identificação à direita liberal. O artigo em causa tem a pretensão de ser um manifesto da direita moderada e do bem. Na verdade, o artigo acaba por demonstrar que os seus autores são profundamente ignorantes do mundo à sua volta. E que mundo é esse? É um mundo no qual não há acordo acerca do que é verdade, não há acordo acerca do que é real, não há acordo acerca do que é um facto. Tal desacordo generalizado torna o debate de ideias praticamente impossível. Contudo, os articulistas aparentemente acreditam viver num mundo onde existe um acordo fundamental em relação ao que é verdadeiro, real e factual. Mas não existe. E este mundo disparatado em que vivemos existe há umas décadas. Os articulistas claramente confundem o desacordo em torno de ideias com o desacordo em torno do que é verdadeiro, real e factual. Daí imaginarem um fascínio da direita, na verdade inexistente, pela xenofobia e disparates quejandos.
Por forma a exemplificar isto, tomemos o caso de Trump, que os articulistas aparentemente consideram como não sendo representativo da direita do bem ou, como é dito no artigo, “do espaço não socialista”. Consideremos uma das muitas mentiras propagadas acerca de Trump. É facto que os EUA têm “jaulas” para crianças migrantes. Mas também é facto que quem fez as “jaulas” foi o Obama, e não o Trump; claro que a nova “direita do bem” pode contra argumentar e dizer que isso é facto, mas que no final quem criou a política de separar os filhos migrantes dos pais foi o Trump. Falso de novo: foi o Obama! Contudo, num artigo sobre a direita do mal, os articulistas da direita do bem conseguem juntar Trump, xenofobia, “deriva nacionalista, identitária, tribal” (sic) e “colapso moral” (sic). É espantoso, porque dado que Obama, em média, deportou 1,5 milhões de pessoas por mandato e Trump deportou cerca de 800 mil (pouco mais de metade, para efeitos de retórica), seria natural que ao falarmos de xenofobia, deriva nacionalista e colapso moral estivéssemos a falar de Obama. Aparentemente não: a direita do bem informa-nos que estamos a falar de Trump. De notar que, segundo o artigo publicado pela direita do bem, não podemos agitar “fantasmas históricos” (sic). Significa isto que não podemos referir quantas pessoas o Obama deportou? Isso “degrada as instituições” (sic)?
Parece-me que a direita tem duas opções fundamentais. A primeira, ater-se aos factos e discutir ideias. Por exemplo, aceitar o facto de que o Obama deportou mais migrantes do que qualquer outro presidente norte-americano. Na verdade, Obama deportou mais de 3 milhões de pessoas, uma fasquia que mais nenhum presidente ultrapassou; aliás, somando as deportações de todos os presidentes desde 1892, os democratas deportaram cerca de 4,6 milhões de pessoas e os republicanos cerca de 3,7 milhões. Isto é: o Obama deportou quase tantas pessoas como todos os presidentes republicanos juntos!!!!! Verifiquei isto agora mesmo, numa busca de dois minutos (máximo). O que só mostra que a vasta maioria do que por aí se lê é mentira pura e intencional, e não ignorância. Ora, nós só podemos discutir ideias depois de chegarmos a um acordo mínimo em torno dos factos. E este raciocínio aplica-se a tudo o que o artigo em causa refere. Artigo esse, que prefere os chavões fáceis ao debate sério em torno de ideias e após acordo em torno de alguns factos fundamentais. Para os articulistas da direita do bem, importa pouco que Trump, na verdade, tenha deportado muito menos pessoas do que o Obama. O que nos leva a questionar: o que define então um presidente xenófobo e nacionalista?
A segunda opção, aparentemente a preferida pela “direita do bem’”portuguesa, é muito diferente da primeira: eliminamos os factos (os números reais em torno da política migratória do Trump são uma ilusão conspiracionista), inventamos uma realidade alternativa (os migrantes latinos votaram em massa no Trump porque são burros; eles deviam era ter votado no candidato que estava no poder quando os latinos eram expulsos em massa; isso, sim, é que faz de facto todo o sentido), acreditamos em tudo o que os media dizem (os mesmo que lhes pagam pelos comentários que por lá escrevem) e continuamos a escrever disparates nos jornais (aliás, só continuarão a escrever em alguns jornais, caso continuem a escrever disparates). Em resumo: segundo o artigo da direita do bem, o número de migrantes deportados por um presidente é totalmente irrelevante para uma discussão em torno da xenofobia e do nacionalismo parolo desse mesmo presidente. Por isso Obama, recordista do número de deportações de migrantes, é um homem do bem. Vamos também esquecer quem iniciou a política de deportações em massa: Clinton, de novo um democrata, o qual deportou cerca de cinco vezes mais do que o anterior recordista…
No fundo, a “direita do bem” caiu na falácia da relatividade dos factos. Os factos não são o que são, mas sim o que os sacerdotes do regime e o Bispo Louçã dizem. Os limites do que é dito, os limites da verdade, do real e do factual são estabelecidos de acordo com critérios misteriosos para o cidadão comum, mas que aparentemente servem quem espera pelas migalhas do regime. Dispenso…