Há já algum tempo que verifico uma correlação curiosa entre a classe social e as normas de comportamento que guiam os fumadores no seu dia-a-dia. Pese embora exista um entendimento generalizado de que não devemos fumar em espaços fechados, entendimento esse que tem expressão normativa e legal, naquilo que constitui a vida de um indivíduo (as suas interações diárias, as quais amiúde escapam ao normativo e ao legal), o que é do plano do científico e do normativo/legal assume nuances que são dignas de nota.

Ora, sucede que um fumador como eu está hoje em dia reduzido a uma “meia dúzia” de espaços fechados onde pode fumar sem atropelar a lei e sem colocar em causa o normativo (entendido aqui de forma lata como sendo tudo aquilo que é do plano do quase-moral, mas sem necessidade de tradução na lei). Esses espaços são espaços particulares. O leitor incauto poderia ser tentado a concluir que sendo esses espaços privados, então o fumador pode fumar onde qualquer indivíduo, desde que proprietário do espaço, o permita. Mas isso é uma leitura que reduz o comportamento social e a ordem que daí advém ao que é do plano do legal e/ou (digamos para efeitos de simplificação) da moral individual. Tal visão redutora peca por escamotear um perigo difícil de discernir. É desse perigo que aqui falo, aproveitando para explicar, aos sedentos de verdade, o que constitui a parolice.

Voltemos aos espaços onde um fumador pode fumar… Ora, sucede que aquilo que guia a possibilidade de eu fumar ou não num espaço fechado não é somente a lei, nem a opção individual dos proprietários dos ditos espaços, mas também a sua classe. Esta é uma afirmação sem base científica, o que nos dias que correm dá direito a ‘alcatrão e penas’. Mas é na verdade aquilo que eu experimento, o que nos dias que correm dá direito a tudo e mais alguma coisa. Mas é também aquilo que a leitura atenta da história do liberalismo e de alguma sociologia nos diz. A parolice não está estudada, e é precisamente por não estar estudada pela ciência, mas guiar o comportamento de tantos, que sabemos que a parolice existe…

Todas as residências onde ainda posso fumar um cigarro à mesa de jantar, com crianças presentes diga-se, são espaços cujos proprietários são amigos meus cuja classe é a dita “classe alta”. É verdade que tenho amigos de classe dita “baixa” onde ainda posso fumar, mas isso só ocorre caso eles e elas também fumem. Mas é em casa desse horror que é a dita classe “média” que não só não posso fumar à mesa, como por vezes nem a varanda é espaço de encontro com o sagrado. Os horrores da classe “média” estão bem explanados na literatura sobre o assunto. Horrores esses que eu sempre reduzi ao que em português entendemos por parolice. A parolice da classe “média” é visível na sua obsessão com duas coisas: a irresistível tendência para fazer aquilo que é correto e a necessidade doentia para ser aceite num grupo imaginário do qual, na verdade, nunca fará parte. Comecemos pela última.

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A necessidade doentia de fazer parte de um grupo imaginário foi bem caracterizada por Bourdieu, quando refere na sua obra um dos perigos que adviria da popularização da educação superior: a classe média passaria a acreditar que com isso havia ascendido socialmente, pormenor que, intuía Bourdieu, originaria (digamos que) alguma tensão quando tal falácia se tornasse visível. Outros pegaram nisto, mesmo que de forma mais discreta. Por exemplo, é essa a minha leitura da obra de Michael Sandel, nomeadamente em The Tyranny of Merit: a classe média, a dada altura, imaginou que ensino superior não bastava – para ser superior o ensino teria que ocorrer numa instituição do grupo de elite. No espaço deste artigo não é possível percorrer todo o argumento destes dois autores, muito menos a interpretação que fiz dos mesmos. Basta realçar o seguinte: o movimento descrito por ambos, em que a classe “média” vê na educação uma forma não só de melhorar a sua condição socioeconómica mas principalmente de ascender à classe “alta”, é um movimento que tem raízes históricas complexas, embora sobejamente tratadas. Essas raízes históricas localizam-se naquilo que deu origem à outra obsessão da classe “média”: fazer sempre o que é correto fazer, o que lhe (pensa o parolo) lhe garantirá ascensão socioeconómica.

Esta obsessão é o que explica o horror da classe “média” com o tabaco. E é também o que explica a obsessão com capacetes para andar de bicicleta; o que explica porque é que os parolos passeiam os bébés em carrinhos todo-o-terreno, com malas térmicas para o leite e limpa-rabos de marca; o que justifica que os pais conscientes comprem um carro maior (de preferência uma ‘carrinha’) assim que o ‘ranhosito’ aparece saudável na primeira ecografia; e (pior, talvez?) o que explica o fascínio da classe “média” por comentadores televisivos com doutoramento no ‘estrangeiro’. No fundo, a parolice manifesta-se na tentação irresistível para ler o Expresso imaginando que isso e um curso superior são garantes de cultura dita geral e de acesso a um reino do qual nunca farão parte. A classe “média” nunca conseguiu por isso compreender a excentricidade que caracteriza a classe “alta”, o que sempre colocou aquela numa relação de subserviência que é hilariante. Tal subserviência é bem visível, por exemplo, quando a classe “média” comenta a forma despreocupada como a classe “alta” se veste, ou o embaraço que a classe “média” experimenta sempre que escuta alguém da classe “alta” fazer uso do vernáculo. ‘Ai! Que terra-a-terra são!…’ou ‘Fulano é muito humilde’ são clássicos interpretativos da classe “média” perante a constatação de que a classe “alta” também copula. A classe “média” na verdade nunca percebeu a diferença entre uma camisola Paul & Shark e um clássico da Busnel, daí ter imaginado que haveria uma certa humildade no vestir…

Não estaríamos mal caso a classe “média” tivesse ficado por aqui. O problema é que a classe “média” não ficou por aqui: o movimento em direção à institucionalização da parolice era imparável para quem estivesse atento. Expliquemos porquê…

A institucionalização da parolice é a minha forma de designar, por exemplo, o movimento conhecido por ‘wokismo’. Quando aqui há atrasado um jovem estudante de Oxford pediu que fosse retirado um retrato de sua majestade do colégio onde o dito parolo estudava, passou despercebido o facto de tal jovem ser a caracterização perfeita do que Bourdieu e Sandel descrevem na sua obra: filho de uns indigentes tornados advogados de prestígio (leia-se com dinheiro; ver Bourdieu), o estudante ‘woke’ estudou numa universidade da Ivy League, foi admitido em Oxford (ver Sandel) e convenceu-se, de repente, da sua ascensão social. Ascensão essa que só ocorreu na sua cabeça. Daí não ter claramente percebido onde estava a estudar, mas estar convencido do seguinte facto: o que ele e os seus pais alcançaram individualmente justifica a colocação em causa daquilo que foi alcançado coletivamente. Isto merece explicação, explicação essa que implica uma viagem pelo “calcanhar de Aquiles” do liberalismo.

O liberalismo, com o seu ênfase no indivíduo, nas suas opções e méritos, encerra em si um problema o qual nunca conseguiu resolver de forma clara: como justificar/explicar a ordem social num contexto em que o que realmente importa é o indivíduo? A resposta a esta pergunta teve muitos matizes, alguns dos quais até me ocupam (digamos que) profissionalmente. Mas o problema do liberalismo não foi a sua capacidade ou não de garantir respostas teóricas à questão da ordem para lá do indivíduo, mas a sua incapacidade para perceber (parece-me) que uma vez criada a contradição esta só poderia resultar numa coisa: no preciso oposto do que deveria defender o liberalismo… perante a perda de um referencial (nomeadamente moral) para lá do indivíduo, o que o indivíduo enquanto inserido num grupo fez foi precisamente o oposto de confiar na ‘ordem espontânea’. Assim nasceu, sempre me pareceu depois de ter lido Hayek, a tentação pela administração e burocratização da moral. O controlo burocrático e do mercado já encerrava em si a burocratização da moral propriamente dita.

O que isto significa na prática é que perante a perda de referenciais externos ao indivíduo capazes de garantir a ordem social para lá das escolhas individuais (como por exemplo a religião, a tradição, ou até a própria consciência de classe), acabámos por encontrar na administração da moral a forma de garantir alguma ordem. É evidente que precisávamos, para isso, de encontrar algo que justificasse a transposição dos mecanismos de ordem social do plano do religioso e tradicional para o administrativo… Ora, tal justificação teria que ser coerente, sustentada e facilmente aceite por todos. A melhor justificação que encontrámos, enquanto sociedade, foi a ciência e o seu filho bastardo, o especialista. Esta descoberta foi a nossa desgraça pois, qual ‘faca quente em manteiga’, era a solução perfeita para fazer face ao crescimento exponencial da parolice, crescimento esse traduzido estatisticamente pela crescente relevância política desse horror que é a classe “média”.

E assim chegámos a este estado miserável em que a classe “média” imagina um mundo ordenado, seguro, livre dos horrores da espontaneidade que na sua cabeça são o perigo do liberalismo, e a sua aceitação de qualquer ciência que garanta ordem. É esta a classe “média” liberal, descrita de forma absolutamente brilhante por Bellah e os seus colegas, na sua obra, publicada em 1985, Habits of the Heart – Individualism and Commitment in American Life. Já em 1985 Bellah e os seus colegas haviam identificado aquilo que explica a reação da classe “média” à palermia COVID. Não que tenham previsto uma pandemia; mas sim porque identificaram o movimento, cuja origem nos leva até pelo menos o século XIX de Tocqueville, que destrói os elementos de ordem que a religião e a tradição garantiam e a sua substituição pela ciência. Num registo diferente, outros haviam identificado precisamente o mesmo. Por exemplo, essa foi sempre a minha interpretação da obra de Foucault, quando este identifica o “conhecimento” como um dos elementos capazes de sustentar o poder.

Foi, na minha opinião, a incapacidade de uma certa direita liberal para perceber estes movimentos o que condenou a própria direita liberal à situação absolutamente miserável em que se encontra hoje: aceitando de forma apática a imposição de vacinas e certificados digitais, incapaz de perceber que aquilo que a une à esquerda nesta causa comum não é a ciência, mas sim um grau de parolice expectável para quem estivesse atento. A direita liberal que temos, para mal dos nossos pecados, manifesta a sua profunda parolice quando nos informa sistematicamente dos perigos de um anarquismo anti-estado: ‘não somos contra o estado, mas pela reforma do estado’… essa reforma passa invariavelmente por uma administração estatal entregue a especialistas, perigo para o qual Hayek alertou no que toca à economia, e que Bellah e outros alertaram no que toca ao plano da moral.

Este fascínio da classe “média” com a ordem providenciada pelo burocrata tornado especialista foi a solução encontrada para a perda de referências para lá do indivíduo. Mas não se tratou nunca somente de uma solução… na verdade, a solução foi sempre representativa daquilo a que a classe “média” nunca conseguiu escapar: um entendimento parolo daquilo que é segurança e ordem. Daí que o plano da primeira-ministra neozelandesa para alargar a proibição de venda de tabaco a qualquer pessoa nascida após 2008, ou o plano do governo espanhol para proibir o fumo dentro de carros particulares, não tenham tido oposição significativa: os parolos sempre viram estes mecanismos de ordem como representativos de um comportamento social próprio de uma classe que nunca foi, nem nunca será, a sua… Aqui chegados, não é difícil (espero) perceber porque é que será sempre o campo liberal aquele que terá maior dificuldade em, perante a opinião do especialista (figura macabra, na verdade criada historicamente pelo próprio liberalismo na sua versão parola), rejeitar leis do tabaco restritivas da possibilidade de o indivíduo fumar dentro de uma propriedade que é alegadamente sua (na verdade essa propriedade não é sua porquanto o burocrata estatal tornado especial tem poder para regular a mesma)… daí também que seja precisamente do campo liberal que nos chegam, por vezes, as razões mais hilariantes para justificar o certificado digital covidiota… razões essas que não passam de um aglomerado de dimensões constitutivas da parolice. O liberal que apoia hoje o certificado digital tipicamente orgulha-se de nunca ter fumado porque, dizem os especialistas, fumar faz mal, liberalismo nunca foi anarquia e, vejam lá bem, fumar perto de outros é uma liberdade, diz-nos a classe “média” liberal, que não é verdadeira porque “a minha liberdade termina onde começa a dos outros”… o liberal parolo nunca percebeu que para evitar que um fumador como eu não fume junto dos outros bastam os mecanismo de ordem da sociedade que conhecemos por “comportamento civilizado” gerador de ordem por via de mecanismos ‘transcendentais’ como a tradição, a religião e quejandos, mas que os incautos confundem com anarquia.

Nunca o burocrata tornado especialista foi necessário… À parolice de classe somamos a parolice intelectual, o que explica o estado a que chegámos: liberais que são incapazes de confiar nos outros sem a apresentação de um certificado e sem aquela que é hoje em dia a maior manifestação da parolice da classe “média”: a máscara… É verdade que tenho muitos amigos de classe “média” que não fumam, mas não usam máscara… Um estudo seminal conduzido por mim concluiu, para lá de qualquer dúvida, que estamos perante gente que conseguiu alcançar a classe “alta” mas ainda não sabe… Outro estudo seminal, também conduzido por mim, conclui algo talvez ainda mais preocupante: o crescente número de pessoas da dita classe “alta” que não fuma, usa máscara e pavoneia a virtude com fotografias em centros de testagem… Na verdade estamos perante parolos que imaginam pertencer a uma classe que já não é a sua, daí o fascínio que exercem sobre algum eleitorado digamos que distraído…