A arte e a cultura são duas áreas muitíssimo subjetivas. Se, por um lado, a Dona Maria acha mais interessante ir ao teatro para enriquecer os seus conhecimentos culturais, por outro, o Senhor José prefere ler. Nem todos temos a mesma interpretação do que é cultura e isso não pode ser visto como uma ameaça ou com desprezo. Devia ser a Dona Maria a poder definir o que quer ver, de forma totalmente livre de coerção, e não o Estado a incitar o que é mais ou menos profícuo culturalmente.

Com a atribuição de subsídios a um setor em vez de outro, o Estado, entidade soberana que representa o interesse de cada um dos cidadãos, está a escolher pelos Portugueses. Em vez de ser a Dona Maria a decidir o que é a cultura e de que forma a deve apoiar, é um ministério desconhecedor das suas preferências que escolhe por ela.

O argumento dado por muita gente que defende a intervenção estatal nos setores artísticos, é de que sem o suporte financeiro do Estado a maioria das instituições culturais não conseguiria sobreviver. Sem elas, muitos empregos seriam perdidos e, consequentemente, muitas vidas seriam abandonadas.

Este raciocínio é, em parte, verdadeiro. De facto, se o Estado pusesse um fim aos subsídios na cultura, muitas pequenas instituições desapareceriam. Isso revela o quão dependente de nós, contribuintes, está este setor, e o quão pequena é a autonomia do setor cultural português. Mas a outra parte do argumento já não é tão séria.

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Se o Estado deixasse de apoiar as salas de teatro, por exemplo, a Dona Maria, que pagava 10 euros por um bilhete, teria agora de pagar 20 euros. E se a Dona Maria optar por deixar de ir ao espetáculo, o dinheiro vai também deixar de entrar nas contas do teatro. Imagine-se agora esta situação com todas as donas Marias e os senhores Josés espalhados pelo país. Como ninguém assistiria às peças, os teatros seriam obrigados a fechar portas.

Mas há uma coisa que os defensores dos apoios às artes culturais não têm em conta: a cultura, como parte integrante da atividade económica de um país, não difere dos outros setores, e, por isso, é concorrencial. Teatros concorrem pelos seus espetadores, humoristas competem para ver quem faz rir mais as pessoas, cineastas lutam pelo melhor filme. No fundo, todos disputam (saudavelmente) o bilhete da Dona Maria. Quem oferecer um melhor serviço por um preço mais acessível, conseguirá continuar a receber espetadores e, assim, permanecerá de portas abertas para acolher ainda mais pessoas.

Desta forma, os 20 euros que a Dona Maria não despendeu no seu teatro habitual, serão gastos noutro evento cultural qualquer, gerando emprego. Ou seja, os empregos perdidos na instituição cultural que deixou de receber o financiamento do Estado e os 10 euros da D. Maria serão recuperados noutro lugar qualquer onde esta tenha investido. Como dizia Lavoisier, na cultura “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Outro argumento dado por quem está a torcer o nariz ao ler este texto, é que se o Estado não intervir neste setor, haverá uma “americanização da cultura”. Um exemplo: a RTP. Se o Estado deixasse de “investir” os 250 milhões que investiu em 2020 na televisão pública, a Dona Maria deixava de ver os programas informativos e de “incentivo à cultura geral”, porque a RTP acabava. Assim, todas as donas Marias e senhores Josés deixavam de “ter cultura”, seja lá o que isso for.

Embora compreensível, esta justificação parte de um pressuposto errado. Parte da ideia de que os cidadãos não sabem escolher o que lhes é mais conveniente, tem de ser o Estado-papá a escolher por elas. Se esse é o pretexto para o Estado injetar tanto dinheiro dos contribuintes na RTP, então estamos a assumir que os outros canais não transmitem “programas enriquecedores”. E, seguindo este raciocínio, só há uma razão para não o fazerem: não há ninguém que os veja. Se alguém visse este tipo de programas, os canais privados teriam todo o interesse em transmiti-los.

Mas vamos assumir que este argumento é acertado. Vamos assumir que a Dona Maria não tem capacidade para definir o que é cultura, que tem de ser o Estado a decidir por ela. Mesmo assumindo tal pressuposto, é fácil perceber que foi o Estado que falhou no seu papel à partida. O Estado tem um compromisso, o chamado contrato social, para com os cidadãos. E nesse compromisso está acordada a educação das pessoas. É nas civilizações mais bem qualificadas e formadas onde a cultura é mais aprimorada. Aliás, mesmo dentro do nosso país conseguimos observar este fenómeno, uma vez que são os Portugueses com melhores anos de ensino que mais frequentam eventos culturais de todo o tipo.

O que vemos, então, é o Estado a correr atrás do prejuízo. Falha, à partida, no seu compromisso de educar e formar a população e depois ainda lhe corta as pernas, decidindo o que é ou não é cultura. Se o Estado cumprisse o seu dever inicial, estaríamos aptos para escolher os tais programas mais enriquecedores e nem seria preciso a RTP para os ter à disposição, porque os próprios canais particulares se ajustavam à procura.

Por último, é importante responder ao que muita gente tem medo de perguntar: quem financiaria a cultura? A resposta não é fácil para quem só veja Estado à frente: as pessoas. Ao longo da História, os mecenas (individuais ou coletivos) tiveram um papel fulcral no nosso desenvolvimento cultural. Em Portugal, temos um exemplo muito claro como o da Fundação Gulbenkian. Temos também o Altice Arena, a maior arena de espetáculos no nosso país, que pertence a um grupo privado. Se olharmos para o setor da música, a maior parte dos festivais internacionais são financiados por patrocinadores privados. Mesmo no cinema nacional, nenhum dos cinco filmes portugueses mais vistos da história conta, no seu orçamento, com dinheiros públicos.

Num nível mais universal, a cultura já foi muito liberalizada. Através de plataformas digitais privadas, como o “Patreon”, qualquer um pode tomar a liberdade de financiar e contribuir para a criação de conteúdos culturais. Através do Spotify ou até mesmo do Youtube, podemos ouvir músicas em qualquer altura, quase gratuitamente. Com a criação da Netflix ou da HBO, podemos ver os filmes que quisermos por preços muito acessíveis.

Nenhuma destas empresas precisou do apoio do Estado para sobreviver. Inovaram, criaram e não deixaram ninguém para trás. A Dona Maria, que é capaz de escolher livremente, pode até não querer usar nenhuma destas plataformas, mas o importante é ter por onde escolher.

O Estado é que não devia ter capacidade para avaliar que arte queremos que seja financiada. Só nós, contribuintes e futuros contribuintes deste país, podemos, efetivamente, escolher que cultura queremos ter.