Apesar dos progressos feitos nos últimos anos, a oferta de serviços de educação e acolhimento na primeira infância (0-3 anos) em Portugal continua muito aquém das necessidades, o que é especialmente preocupante dado o contexto de baixa natalidade que o mundo ocidental enfrenta. De acordo com dados do Conselho Nacional de Educação, em 2020, a taxa de cobertura das respostas sociais para a primeira infância era de cerca de 50%. Embora constitua um passo no sentido da universalidade do acesso, a mais recente medida de gratuitidade das creches, que avançou no início deste ano letivo, peca por ser tardia e insuficiente: deixa de fora todas as crianças nascidas antes de 1 de setembro de 2021 e, pelo menos num primeiro momento, todas as que frequentam creches do setor privado.
Para além destas dificuldades, a existência de um maior número de vagas deve ser acompanhada de garantias da qualidade das instituições que as oferecem. A investigação científica mais recente demonstra a importância de um contexto de creche caracterizado por práticas de elevada qualidade que potenciem o desenvolvimento das crianças nos seus primeiros três anos de vida, principalmente daquelas provenientes de contextos mais vulneráveis. Entre outros fatores, a investigação destaca a importância de: estabelecer relações calorosas, sensíveis e responsivas entre os profissionais de creche e as crianças; combinar educação e cuidados, no conceito inglês de educare; e promover o desenvolvimento de competências emocionais e sociais nas crianças. Mas a concretização destes objetivos é indissociável da qualificação dos profissionais de creche – tanto educadores de infância como auxiliares de ação educativa – sendo fundamental capacitá-los não só para compreenderem as necessidades das crianças e identificarem os seus marcos comportamentais, como também para as estimularem no seu desenvolvimento e aprendizagens.
Sobre a formação inicial dos profissionais, são várias as recomendações da OCDE e da Comissão Europeia relativamente à promoção de práticas consideradas de elevada qualidade, cujos potenciais benefícios para o desenvolvimento das crianças nos seus primeiros 3 anos de vida poderão refletir-se em importantes retornos sociais e económicos.
No entanto, em Portugal, a preparação dos profissionais para o exercício de funções em creche parece não ser muito valorizada. O facto de a educação de infância se encontrar ainda sob a dupla tutela do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (responsável pelas respostas entre os 0-3 anos) e do Ministério da Educação (responsável pelas respostas a partir dos 3 anos) aumenta a complexidade do problema e dificulta a existência de uma abordagem pedagógica integrada e sequencial. Mais, estudos realizados sobre o contexto português mostram-nos que na formação inicial de nível superior destinada à habilitação de educadores de infância se perdeu a designação de “educação de infância” e a respetiva especificidade da formação. A licenciatura em Educação Básica tornou-se a base de formação comum para trabalhar com crianças dos 0 aos 10 anos, enquanto nos mestrados profissionalizantes em Educação Pré-Escolar e Educação Pré-Escolar e Ensino do 1º Ciclo do Ensino Básico parecem predominar conteúdos destinados à preparação das crianças para a escolaridade obrigatória. Assim, apesar de se tratar de uma das mais exigentes qualificações do ponto de vista formal a nível internacional (porque só pode ser educador de infância em Portugal quem estiver habilitado com o grau de Mestre), na prática, esta formação inicial é das mais padronizadas e das mais limitadas pela legislação, não tendo em conta o percurso prévio dos alunos nem os projetos pedagógicos das instituições de ensino superior e muitas vezes desvalorizando os conteúdos específicos à educação e cuidados dos 0-3 anos e ao trabalho em creche. Adicionalmente, a qualidade da prática dos profissionais de creche encontra-se condicionada por outros desafios, como o elevado número de crianças por adulto na sala, a discrepância entre o nível de qualificação dos educadores de infância e auxiliares de ação educativa e pela inexistência de orientações pedagógicas para a primeira infância.
No contexto deste diagnóstico, o ProChild CoLAB – um laboratório colaborativo aprovado pela FCT e sediado em Guimarães, que tem como objetivo principal combater a pobreza e a exclusão social na infância – está a desenvolver um projeto intitulado ProFormação 0-3, que visa a caracterização da formação inicial disponível para os profissionais que vão exercer funções em creche, considerando os seus conteúdos, a sua extensão e diversidade, e também as atividades práticas e de estágio. Este projeto pretende ainda identificar as necessidades formativas de educadores de infância e de auxiliares de ação educativa, com a finalidade de se desenvolver uma oferta de formação continuada no âmbito da Academia ProChild.
Encorajar a adoção de práticas de qualidade na educação e cuidados na primeira infância poderá ter um impacto na redução de dificuldades em fases mais tardias do desenvolvimento e da aprendizagem, promovendo a equidade e construindo um sistema de ensino capaz de preparar jovens qualificados para enfrentar os desafios do futuro.
Inês Gregório é Professora e Investigadora, Universidade Católica Portuguesa e ProChild CoLAB. Ana Lúcia Aguiar é Doutorada em Psicologia, ProChild CoLAB.
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.