A guerra
A designação de “operação militar especial” com que Putin cunhou a agressão à Ucrânia, é um triste disfarce para a invasão armada de um país soberano que ele próprio considerou estar na origem da fundação da Rússia. É uma guerra premeditada, não provocada, nem justificada por razões atuais. É, portanto, uma grosseira violação do direito internacional que a Rússia diz partilhar como membro das Nações Unidas. O que está em causa, porém ultrapassa esta guerra e visa garantir o “domínio imperial da Rússia sobre o leste da Europa” como bem notou Max Fisher do New York Times em 24 de fevereiro. Putin quer alterar a presente ordem de segurança europeia. E começou pela Ucrânia.
Estamos num momento crítico do futuro internacional que, desde a Paz de Vestefália de 1648, assenta no respeito pela igualdade soberana dos Estados agora publicamente violada, e numa altura em que face aos desaires em combate, após 6 dias de impiedosa violência, o presidente russo ordenou a prontidão operacional dos seus sistemas nucleares.
A guerra híbrida com que iniciou a ação contra a Ucrânia, incluiu a movimentação e concentração em torno do país da panóplia de todas as capacidades militares terrestres, aéreas, navais e nucleares russas, conjugada com ataques cíber múltiplos e uma campanha de desinformação e pressão comunicacional inauditas que, todavia, não levaram ao derrube e substituição do Governo como esperado. Avançou então para a primeira fase da guerra convencional, a que chamou de “peacekeeping” nas regiões autónomas que, entretanto, reconheceu como estados. Mas ainda não conseguiu concretizar a sua ocupação. Alargou a seguir os ataques a toda a Ucrânia para o seu “desarmamento e desnazificação”, mas Kiev não foi subjugado.
Estamos a assistir ao reforço da invasão por uma nova vaga de forças terrestres e ao escalar dos ataques aéreos e navais que passaram a incluir a destruição de barragens, depósitos de combustível, infraestruturas civis e centros urbanos. As imagens de horror começam a ser conhecidas, e é necessário garantir que o cenário da destruição de Grozni não se repita. O uso de sistemas de “lança foguetes múltiplos” contra áreas urbanas (como em Kharkiv) prefigura um crime de guerra e é urgente ter observadores das Nações Unidas e do Tribunal Criminal Internacional na Ucrânia para uma análise independente. Como seria bom que o Secretário Geral das Nações Unidas, nomeasse desde já um seu Representante Especial para promover o regresso à paz na região.
Apesar da heroica resposta dos Ucranianos, espera-se que dentro de dias alguns centros populacionais sejam submersos pelas forças invasoras e outros, os mais importantes como Kiev, sejam cercados e atacados do exterior para levar à exaustão e rendição. Desenha-se uma situação semelhante à da Chechénia, ou da Síria. Podemos ter mais uma “Alepo” no meio da Europa.
Para além da desgraça inultrapassável para os inocentes que estão a morrer sem culpa e sem razão e da vaga humana que pode atingir 10 milhões de deslocados e refugiados, a invasão da Ucrânia irá ter consequências políticas, económicas e sociais graves que atingirão todos e sobretudo a Rússia. Mas pode encaminhar o mundo para uma nova confrontação na Europa.
A Paz
É necessário parar esta desgraça humana, política e moral. Regressar ao diálogo diplomático sem perverter o “acquis” do mundo civilizado, mas respeitando os interesses legítimos da segurança mútua e coletiva.
E a solução já está inventada. É a que permitiu garantir a estabilidade na Europa (e no mundo) no pós-guerra. A política do “dual track”, baseada na garantia da defesa e retaliação, conjugada com o diálogo e a negociação. Foi esta política que permitiu obter a segurança mútua no Continente, estabelecer o reconhecimento internacional dos estados europeus e o respeito da sua soberania e integridade territorial, para que ninguém pudesse prevalecer em termos militares ou instabilizar o continente em termos políticos, sociais ou económicos.
Na área das forças convencionais o diálogo iniciou-se num contexto regional limitado ao centro da europa, com as negociações para as “Reduções Mútuas e Equilibradas das Forças”, mas passou a cobrir todo o continente com o “Tratado das Forças Armadas Convencionais” assinado em 1990. Tratado que está hoje desoladamente abandonado por não se ter acordado ainda o seu ajustamento ao fim de guerra-fria.
Na área nuclear, as negociações entre os EUA e a Rússia que em 1969 levaram ao acordo sobre a limitação das armas nucleares (SALT 1) e, em 1972, ao “Tratado sobre os Mísseis Antibalísticos” (ABM). Este consubstanciava a segurança mútua absoluta na área nuclear, pela garantia de que a outra parte poderia sempre ripostar, se fosse atacada. O Tratado ABM foi abandonado pelos EUA na década de 90, o que foi em geral considerado um erro grave, pelo incentivo que constituiu à corrida a novos sistemas de armas. O único acordo nuclear remanescente é o “Novo Tratado de Redução das Armas Estratégicas” (START) que as partes concordaram em prorrogar até 2026, dando assim um espaço de tempo para se negociar um tratado de substituição atualizado.
Na área política, a confiança mútua penosamente alcançada na década de 80 está em causa. O Ato Final de Helsínquia de 1975 que tornou o reconhecimento das fronteiras, o respeito pela soberania dos estados e a integridade territorial o sustentáculo da paz na Europa, foi desrespeitado. Como violada foi a Carta de Paris, de 1990 que está na origem da criação da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e em que explicitamente se confirmavam os princípios definidos no Ato final de Helsínquia.
Há, pois, muito trabalho a fazer para ancorar a paz mundial e europeia em novos acordos. Mas para chegar a um mundo de cooperação é necessário fechar a porta às ações de coerção como a que estamos a assistir com a invasão da Ucrânia. A história ensinou-nos que isso só é possível pela dissuasão e esta, está baseada na capacidade de retaliação.
O uso de medidas ilegítimas e coercivas deve ter um custo que exceda o benefício. Só nessas condições os países e a Europa são respeitados e, portanto, só nessas circunstâncias se podem prosseguir os interesses próprios legítimos num quadro negocial e de respeito mútuo. Sem capacidade de dissuasão efetiva estará sempre aberto o caminho para a pressão, intimidação ou coerção indevidas. A dissuasão e a defesa são, portanto, as condições prévias para alcançar a cooperação desejada.
Estamos num momento em que é necessário mostrar firmeza, sem o que a força bruta prevalecerá. Mas em que a porta para a negociação com vista à conclusão da Guerra deve estar genuinamente aberta.
E nem é necessário “inventar a roda” neste caso. Os Acordos de Camp David de 1978 são um bom modelo para começar. Permitiram a retirada dos Israelitas do Sinai que ocupavam ilegitimamente, mediante garantias de segurança que o acordo estabeleceu e o regresso soberano do Egito a esse seu território, sem ser para atacar Israel. É o único Acordo que persiste no Médio Oriente. Não nos falem, pois, de riscos de segurança. Falem-nos de disposição para alcançar a paz.
Quanto às regiões separatistas na Ucrânia, Portugal é um excelente modelo. As autonomias regionais são um caso paradigmático de sucesso. Foram concebidas para permitir a expressão específica local, condição para que o todo nacional seja mais coerente. Se o cinismo não prevalecer, nada impede que as regiões autónomas da Ucrânia adotem uma solução semelhante. Assim como é passível de adotar para a Crimeia uma resolução mutuamente aceitável no quadro de uma autonomia mais alargada e com um direito reconhecido de utilização da base russa que aí existe.
Claro que as soluções académicas têm que vencer o teste da realidade.
É difícil de entender como é possível que um país que faz da defesa heroica de Leningrado um caso histórico de orgulho nacional tenha invadido a Ucrânia e se apreste para fazer o mesmo a Kiev. Existem duas interpretações, digamos opostas, para esta ação russa.
A crença na “decadência inevitável” do Ocidente e da sua incapacidade de reagir com unidade e vigor, aparentemente partilhada no círculo próximo do Kremlin que tem vindo progressivamente a fechar-se, cada vez mais, a visões diferentes. O que lhes faria pensar terem condições para lançar de forma praticamente impune esta ação. Ou a necessidade de agir externamente perante a inevitabilidade de uma situação de anemia económica interna, para a qual o regime não tem capacidade de resposta para além de maior concentração de poder e de mais condicionamento das oposições.
A rejeição popular da invasão, a reação mundial generalizada e a resposta ocidental conjunta concretizada por medidas e ações concertadas no quadro da NATO e na União Europeia não deixa margens para dúvidas. A Rússia está isolada internacionalmente e os custos económicos e sociais que vai sofrer serão pesados.
O que nos leva à segunda questão, essa sim fundamental, diríamos vital para o nosso futuro comum. A Rússia não vai desaparecer do nosso mapa. Faz parte de Europa. A criatividade, engenho e encanto dos seus artistas e pensadores são uma parte essencial da nossa cultura comum. Nada deve impedir, nem mesmo o regime atual, que o futuro seja de cooperação plena, aberta e harmoniosa.
A bem da civilidade e do interesse mútuo.