O impacto social e cultural da emigração é sem dúvida um dos problemas mais complexos do nosso tempo. O efeito combinado da redução da natalidade, com a obrigação de manter a força de trabalho em inúmeras áreas da economia, criou as condições para a necessidade de ser permitida a entrada de migrantes nos países da Europa. Somem-se os serviços públicos de saúde gratuitos, e temos as condições necessárias para uma grande pressão de cidadãos oriundos de outras paragens. As empresas especializadas em “import-export” de mão-de-obra não tardaram a aparecer.
O mês de junho é o mês dos santos. Em cada esquina um arraial mistura os lisboetas que ainda resistem, com forasteiros, numa festa popular e simples. Onde muitos de nós gostam de estar e de se ver. A música toca alto, as sardinhas, as febras e o frango no churrasco crepitam. As vozes misturam-se e os ecos do Brasil e de África estão lá. Nos bairros que resistiram à gentrificação a festa prolonga-se pela madrugada, e apesar da mistura de idiomas e de idades, de nações e de hábitos de vida, a festa faz-se, e o principal risco é o que provém da ingestão excessiva de bebidas alcoólicas.
Passeamos pelo centro de muitas cidades, com grande peso para Lisboa, ou nas regiões do país onde empresas de qualquer ramo interromperam a laboração ou terminaram uma atividade essencialmente sazonal e os migrantes são entregues à sua sorte. Aqui não há festa. Confrontemo-nos com as condições de vida sub-humanas de muitas destas pessoas, que circulam aos grupos pelas ruas, que estão cá porque a vida nos países de origem é ainda pior. E porque já não se consegue imaginar a agricultura, a pesca, todo o setor primário e de serviços, sem a sua presença diligente.
A aceleração da entrada de migrantes mostrou a ausência de planeamento e a grande capacidade que temos para fazermos de conta de que nada de especial está a acontecer. Até que as filas na AIMA começaram a encher as ruas e os écrans das televisões. Os números surgiram, aumentando todos os dias, e olhando para o dados estatísticos o crescimento parece exponencial. Mais de quatrocentos mil imigrantes à espera de validar os seus “papéis”. Casas alugadas onde dormem dezenas de trabalhadores uns em cima dos outros, como nunca se tinha visto mesmo nos piores momentos da história das cidades. Muitos gostavam que eles trabalhassem para nós, mas não os víssemos. São gente como nós.
E enfrentemos o mais difícil problema: a diferença de religião, cultura, socialização, que leva à formação de “tribos” que se separam do todo social. Sabemos que Portugal, país de emigração e de comerciantes, que foi origem ou destino de migrações, muitas delas forçadas, tem na sua génese, como qualquer nação marítima, um cosmopolitismo e uma amálgama social inescapáveis. A criação do nosso modo de estar foi cristalizada ao longo de muitas gerações, e mesmo que seja muito difícil definir o que é ser português, percebe-se intuitivamente, que a combinação lenta de tantos elementos diversos, se comporta um pouco como a formação de uma rocha que, não sendo homogénea, deixa cristalizar os minerais que na sua diversidade e unidade formam por exemplo o granito que, bem polido, está em muitas bancadas de cozinha. Como sabem os geólogos, o arrefecimento tem de ser muito lento.
E com as comunidades migrantes a crescer, começam a aparecer também os seus restaurantes. Os seus lugares de culto. As suas formas diferentes de vestir e de estar. E num país que sempre fez gala de se dizer hospitaleiro, começam a crescer as tensões sociais e o racismo. Uma junção de culturas, tal como aconteceu ao passado, mas muitíssimo mais rápida, e mais intrusiva. Sem a máquina niveladora da religião obrigatória. A ocupar progressivamente um lugar na economia para o qual não há alternativa, porque está muito abaixo das expetativas dos nossos filhos. Que também são poucos porque são altas as expetativas que temos para eles.
No futuro talvez uma parte destes migrantes seja sazonal e nestes casos é exigível que quem os contrata no exterior assegure alojamento e condições de vida condignas. Noutros casos vêm para ficar. E pergunta-se: como pode alguém vindo de um mundo diferente tornar-se “mais português”? Que devemos fazer para que seja um bom cidadão, cosmopolita e aberto ao mundo. Que não tenha uma lealdade religiosa que se sobreponha à lealdade nacional. Que não se dissolvam os progressos sociais, económicos e culturais que nos trouxeram até aqui e que tornaram Portugal um país para onde se quer vir viver? E que considerem sua a “portugalidade”, e connosco se considerem cidadãos europeus e do mundo?
Adaptando, fora de contexto, um título de um grande livro de Valter Hugo Mãe, precisamos urgentemente de uma máquina de fazer portugueses.
Não sei de que peças é feita essa máquina, mas a primeira tem de ser o respeito. Respeito pela cultura de quem entra e respeito de quem entra pela cultura de quem está. Outra deve ser a língua, que é muito mais que um conjunto de fonemas, ortografia e de regras gramaticais, o que leva a que o aumento da ligação com os países de língua portuguesa seja importante, até porque a nossa língua já tem embebida uma parte da memória comum. Passa pela Escola, que é muito mais do que uma máquina de ensinar. Passa pela cultura, em todas as suas vertentes, que pode ser mais sofisticada como a filosofia clássica ou a grande música e outras formas de arte que desde há milénios nos construíram, ou mais prosaica e popular. Que inclua a síntese europeia da cultura mundial.
Passa pelo respeito da interação histórica entre a Europa e o cristianismo, que se moldaram um ao outro. Passa pela ciência e a tecnologia como formas de ler o mundo. Passa por não facilitar a tribalização, não admitir comportamentos violentos nos serviços públicos como a saúde ou a escola, e na rua. Compreender, mas agir depressa, e não fingir que se não vê.
Acabou o mês de junho, e com os arraiais ainda nos ouvidos, vem à memória que a criação de comunidade que precisamos rápida, passa também pelas festas populares. A Lisboa do futuro será diferente da de hoje, e ainda mais daquela que ecoa na memória da nossa infância e que o “conta-me como foi” consegue por vezes recriar. Tal como a Lisboa do ano em que nasci diferia em muito daquela que em quinhentos viu partir as naus para a aventura. Não desconheço que na segunda geração de migrantes os problemas se voltam a colocar, por vezes com mais dramatismo, e que a pertença é um sentimento que vive paredes meias com a recusa e a exclusão.
Quanto mais estranho nos for o modo de vida dos que se juntam, mais medo teremos de que desapareça a parte da memória a que chamamos lar. Ouçamos os compassos da marcha, trauteemos em conjunto, e talvez seja verdade que “Enquanto os bairros cantarem/enquanto houver arraiais/Enquanto houver Santo António/Lisboa não morre mais”. E será assim em todos os santos e em todas as cidades.