O debate sobre o uso da bicicleta nas cidades – em particular na cidade de Lisboa, pela sua orografia – é muitas vezes inundado por minorias ruidosas contra a expansão da rede ciclável e, no outro lado do espectro, por grupos igualmente barulhentos, defensores da abolição do uso dos carros. Não é por serem minorias que devem deixar de ter voz, mas a verdade é que a opinião moderada da maior parte das pessoas não chega sequer a ouvir-se de tão alto que gritam as tais minorias ruidosas, tornando a discussão menos enriquecedora e mais bipolarizada.
Em Lisboa, cidade onde vivo desde que nasci, este tipo de visões maniqueístas são usualmente defendidas por quem vê como intransponível o facto de Lisboa ser a “cidade das 7 colinas”, ou, no outro extremo, por quem ignora por completo esta condição natural da capital. A Câmara Municipal de Lisboa, tendo as competências necessárias para implementar políticas de mobilidade de incentivo ou desincentivo ao uso de meios de transporte alternativos ao carro, criou, em 2017, uma plataforma digital para o aluguer de bicicletas: a GIRA.
A criação da GIRA teve esse mérito inicial – uma ideia bem conseguida e estruturada, que desafiou todos aqueles que julgavam impossível o uso universal de outro meio de transporte que não o carro numa cidade como Lisboa. Reconhecendo o desafio que tinha em mãos, inicialmente optou-se por uma Fase Piloto numa zona nova da cidade, o Parque das Nações, experiência que permitiria ganhar tração para uma expansão progressiva em toda a cidade. E resultou: se inicialmente Lisboa tinha apenas 10 estações e cerca de 200 bicicletas GIRA em operação, no final desse primeiro ano de atividade, apesar da dimensão da rede ainda não ser expressiva, contava já com cerca de 700 mil viagens acumuladas. Hoje, o projeto municipal tem mais de 102 estações e 1.600 bicicletas.
À semelhança das plataformas digitais deste tipo existentes noutras cidades espalhadas pelo país e pelo mundo, a GIRA é uma app que pertence a uma empresa municipal, neste caso a EMEL. A gestão deste projeto é, neste momento, totalmente pública. Em 2017, ano de fundação das bicicletas de Lisboa, a EMEL geria internamente a Relação com o Cliente e a Política Comercial (tarifários, receitas), mas quem tinha a missão de implementar, gerir e operar a rede era uma empresa privada vencedora de um concurso público, empresa essa que faliu em 2019, o que levou a EMEL a internalizar totalmente a gestão da GIRA.
Este processo de internalização (talvez estatização seja a melhor palavra) é muito comum na Administração Pública Portuguesa. Quando os contratos de concessão a privados falham na sua execução, os erros são imediatamente apontados ao modelo de gestão de parceria público-privada, sem nunca se apresentar fundamentos de caráter económico. Neste caso, a Órbita, empresa que operacionalizava a rede GIRA, apresentava, de facto, falhas graves no cumprimento dos encargos contratualizados com a EMEL. Em 2018, o DN noticiava que, segundo a EMEL, a ausência de bicicletas GIRA se devia às dificuldades operacionais da Órbita, o que fez com que a empresa do município rasgasse o contrato e exigisse mais de 6 milhões de euros por incumprimentos.
Mas a verdade é que depois deste processo de estatização, a GIRA não está melhor. Antes pelo contrário. Neste momento, posso dizer com toda a franqueza que andar de GIRA me tira felicidade, sobretudo pelo tempo de espera em cada bicicleta retirada e pelas constantes avarias. Digo-o enquanto utilizador assíduo – senti a degradação contínua da qualidade do serviço ao longo dos 3 anos de Ensino Secundário no percurso casa-escola-casa (Parque das Nações-Alvalade), e durante estes últimos 2 anos de Universidade no percurso casa-faculdade-casa (Parque das Nações-Santos) – mas também porque as estatísticas não mentem: segundo dados do Relatório e Contas de 2021 da EMEL, o número de chamadas relacionadas com o sistema GIRA aumentou 65% desde 2019 e as reclamações também aumentaram significativamente. Desta vez, não havendo parceiro privado em quem despejar as culpas, é o excesso de procura, explica a EMEL, que justifica a ausência de bicicletas.
Financeiramente falando, as contas da GIRA não são as melhores. As despesas com pessoal da EMEL aumentaram 23% desde 2017, justificado pelo aumento drástico registado no número de colaboradores (mais 180 em 2021 do que em 2018), o que, segundo a própria empresa, se deveu sobretudo “à internalização da operação da GIRA”. É por de mais evidente o défice de exploração do Município com a estrutura atual, bastando notar que a despesa de investimento estará próxima dos 6 milhões de euros e os rendimentos ainda não totalizam mais que 1,5 milhões de euros.
Dirão os críticos a esta análise estatística que o grande impulsionador da implementação de sistemas de bike sharing públicos é a promoção da mobilidade suave e do seu consequente impacto positivo no ambiente, e não propriamente o lucro. Isso explica, em parte, a incapacidade de evolução das receitas em comparação com as despesas, uma vez que os tarifários definidos estão alinhados com o propósito da maximização dos impactos ambientais desejados – pago 25€ por ano para ter o serviço completo da GIRA. Um preço maior poderia beneficiar as contas, mas prejudicaria a missão do projeto. Ainda assim, a pergunta que importa fazer perante todos estes números é se o prejuízo constatado com a GIRA se verifica noutras cidades, ou seja, se o défice financeiro é ou não comum à generalidade dos sistemas congéneres.
A resposta é não.
Se olharmos para outras cidades europeias com características semelhantes a Lisboa, Dublin é um bom benchmark. Naturalmente que não conta com a inclinação característica da cidade alfacinha, mas tem quase a mesma área e população que Lisboa. De acordo com informações do site oficial do Dublinbikes, o sistema irlandês conta com cerca de 1.500 bicicletas distribuídas em 101 estações pela cidade, tendo por isso números muito próximos da realidade lisboeta.
O sistema de bicicletas partilhadas em Dublin é gerido pela empresa JCDecaux, que tem um contrato com a Câmara Municipal de Dublin para operar o serviço. O contrato inclui a manutenção das bicicletas, estações e equipamentos do sistema, bem como a gestão das infraestruturas. Segundo a JCDecaux, o sistema é atualmente autossustentável, gerando receita suficiente para cobrir as despesas de operação e manutenção. Em termos de preços para os utilizadores, a assinatura anual tem um custo de 25€ e permite que os utilizadores usem as bicicletas por um período até 30 minutos, com uma taxa de uso extra para viagens mais longas. Exatamente como a GIRA, só que este sistema é bem gerido.
E para quem torceu o nariz à comparação com uma cidade irlandesa que não chega perto das 7 colinas, podemos comparar com uma cidade topograficamente mais similar a Lisboa: Trondheim, na Noruega. Cheia de relevos e inclinações, esta pequena cidade também tem um sistema partilhado de bicicletas concessionado a funcionar.
Operado pela privada Bysykkelen AS, o sistema existe desde 2009. Inicialmente lançado como um projeto-piloto financiado pelo município de Trondheim, desde então tem-se expandido gradualmente para incluir ainda mais estações e bicicletas. Em 2015 estimava-se que cerca de 20% da população de Trondheim utilizava a bicicleta no seu dia-a-dia, mesmo com a temperatura média durante o dia no Inverno a rondar os dois graus negativos. Um excelente exemplo de que a orografia não é de todo um fator impeditivo para que as pessoas adotem a bicicleta como modo de transporte quotidiano.
É nesse sentido que me parece urgente voltar à missão inicial do projeto GIRA: trazer mais qualidade de vida aos lisboetas. Da forma como está implementado neste momento, para além dos referidos prejuízos que traz à CML, impede a criação de novas, diferentes e melhores soluções para a oferta ciclável na cidade, uma vez que promove a deslealdade na concorrência com os privados que atualmente operam no mercado, criando também barreiras à entrada de novos players através da sua operação altamente subsidiada. Ao estrangular os atuais concorrentes e impedir que novos apareçam, está também a impedir que haja mais oferta de bicicletas em Lisboa, prevaricando na luta contra as alterações climáticas. A concessão dos ativos detidos pela EMEL é uma necessidade para atrair mais competitividade e eficiência a um mercado em expansão global e com grande potencial.
A mobilidade em Lisboa podia, de facto, ser mais Gira. Não é mais Gira, não devia ser mais Gira, nem tem de ser mais Gira. O verbo certo nesta frase é mesmo poder conjugado no pretérito imperfeito, porque o poder deve estar na mão das pessoas, soberanas nas suas decisões, e não na mão do Estado, Estado esse que deve, sim, capacitar as pessoas na sua escolha ao invés de impor decisões num dado mercado, contribuindo perversa e negativamente para a causa ambiental.