Na sequência da instauração do regime democrático, com a entrada em vigor da Constituição da República de 1976, estavam criadas as condições para que Portugal, através do seu governo, pedisse a adesão às Comunidades Europeias, o que aconteceu em 1977, por iniciativa do primeiro-ministro Mário Soares e com o apoio dos partidos do arco da governação, que então se constituía. Portugal entrou nas Comunidades Europeias em 1986 e esse facto tornou-se o principal elemento de racionalização da política nacional até hoje.

Neste artigo, procuro refletir em que medida a opção europeia significou uma mudança radical nas opções estratégicas do Estado português ou, pelo contrário, um realinhamento dos seus interesses. Esta é uma matéria que está longe de ser compreendida. Basicamente está em causa conhecer não só o estado, mas também os fundamentos, da autonomia política de Portugal em contexto internacional.

É pressuposto do que afirmo que a independência de Portugal implica o desenvolvimento de relações políticas, incluindo o estabelecimento de alianças estratégicas de forma livre, a partir da compreensão do contexto geopolítico e de um quadro de valores e interesses permanentes.

É minha tese que a Constituição de 1976 implicou alterações profundas na estrutura política e social portuguesa, com elementos de continuidade. Politicamente, Portugal passou a ser um regime democrático, que teve de decidir sobre o seu passado. A população manteve-se a mesma, com exclusão dos que passaram a ser nacionais dos novos Estados independentes. E a classe política renovou-se, integrando pessoas com relações com o anterior regime. Marcelo Rebelo de Sousa é filho de um antigo ministro do Estado Novo e governador-geral de Moçambique. A sua ação política iniciou-se antes da Revolução de Abril, com a participação nos espaços de liberdade que o regime então vigente permitiu, como foram os casos do jornal Expresso e da SEDES. E foi deputado constituinte, com outros antigos alunos de Marcelo Caetano.

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Os primeiros presidentes da República após o 25 de Abril foram militares, em linha com a tradição do Estado Novo. A solução constitucional de um governo com capacidade legislativa reforçada vinha de trás. E Veiga Simão, o ministro da Educação que mais universidades públicas criou no século XX em Portugal, fê-lo durante o Estado Novo, sendo depois disso ministro por duas vezes em democracia.

Mais importante, o novo regime definiu como prioridade estabelecer relações fortes com os novos Estados de língua portuguesa. O compromisso com a defesa de Timor, ocupado ilegitimamente pela Indonésia, ficou inscrito na Constituição, assim como o gérmen da solução política para Macau. A constituição da CPLP em 1996 foi o corolário do interesse em manter relações estratégicas no emergente espaço da lusofonia.

Tudo isto parece claro, mas não é óbvio. Para muitos, a integração na Europa deve implicar o arrependimento do passado, com a escolha de um quadro de valores alternativo, assim como com a definição de uma agenda nova de prioridades. Mas essa linha pode gerar confrontos inúteis e não valoriza – antes despreza – o capital de experiência, de conhecimento e de relação que a história construiu.

Os tratados europeus consagram os princípios da integração e da subsidiariedade como âncoras complementares de uma Europa unida na diversidade e em que os Estados-membros podem defender estratégias próprias de desenvolvimento, dentro dos limites constitucionais.

Em termos de política externa, todos os governos constitucionais até ao momento apoiaram-se na mesma estratégia, em que a integração europeia deve ser complementada com a aposta nas relações transatlânticas, especialmente no quadro da NATO, e nas relações no espaço de língua portuguesa.

A União Europeia é hoje um espaço crescentemente integrado. Áreas de intervenção da competência dos Estados nacionais, como a educação e a ciência, são cada vez mais assumidas pela União Europeia, em nome da constituição do mercado interno. O programa Erasmus é um caso de grande sucesso nessa matéria. E o mesmo se diga do reconhecimento de graus académicos, tão necessário ao desenvolvimento do mercado de trabalho. Está em curso o aprofundamento do Processo de Bolonha, com o apoio a programas transnacionais nos campos do ensino, investigação e transferência do conhecimento. E se é certo que existe agora uma muito maior proximidade de pessoas e povos, não se criou uma identidade europeia. Nem a União Europeia consegue competir com os Estados Unidos nas políticas mais relevantes. Um teste decisivo poderá ser em matéria de segurança e defesa, sobretudo se vier a ocorrer um afastamento dos Estados Unidos no quadro da Aliança Atlântica.

A história democrática portuguesa evidencia a pretensão de uma maior integração europeia, que se traduza em benefícios para a vida das pessoas. Mas não é certo que estejamos condenados a viver juntos. Não é assim nos Estados Unidos e, por maioria de razão, na União Europeia, onde se verificam clivagens crescentes que podem desencadear a saída de novos Estados da organização supranacional, com impactos significativos.

Por isto é importante que Portugal tenha uma estratégia política clara, em linha com os seus 900 anos de História. O seu desafio principal é no campo dos valores. Ao contrário do que normalmente se pensa, não existe um consenso europeu em matéria de valores. A opção europeia revelou-se acertada e trouxe muitos benefícios ao país de que não se pode prescindir. Mas fica também claro que os Estados europeus competem pelo melhor aproveitamento das condições que o mundo oferece. Esta competição aumentará nos próximos anos, porque as estratégias dos países são, em parte, diferentes, apesar das políticas públicas europeias comuns.

Neste contexto, Portugal deve ser capaz de se posicionar no mundo com base numa estratégia que lhe permita consolidar as suas alianças estratégicas e estabelecer as relações que melhor defendem os seus interesses, a começar pela União Europeia. E é preciso ir mais longe no campo das relações com os países de língua portuguesa, assim como também com os demais países democráticos e não democráticos, com propósitos diversos, à semelhança do que fazem os países maiores.

A população portuguesa pode mudar, mas Portugal é um país com uma história de 900 anos. Podemos carpir pelo mal que fizemos, mas também fizemos muitas coisas boas e o mais importante é perceber o que como comunidade podemos fazer para benefício de todos. De acordo com este princípio, não podemos esquecer a defesa da língua portuguesa, uma das mais faladas no mundo, com implicações em termos de políticas públicas e capacidade de influência internacional. Julgo mesmo que este tempo é de oportunidade, porque assistimos a uma diluição de instituições fortes em alguns países europeus centrais, com a perda de referenciais partilhados. Saibamos, como comunidade política, na Europa e no mundo, contrariar a tendência de diluição, o que historicamente foi sempre um elemento de inteligência e progresso.

[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]