A Justiça, essa denominação do que é propriamente o Direito, esse suporte que conserva o Estado, de forma muito simplista, essa ferramenta de violência estrutural política está na ordem do dia.

Teima em manter-se atual a parábola Diante da Lei, de Kafka que traduz o que, cerca de 200 anos antes, Kant sublinhara lei pura como «vigência sem significado». Na atualidade, este aspeto da lei, cujo propósito é o da submissão, ultrapassa a dimensão da instituição a que, acima nos referimos como Justiça. A abstração contínua da lei, portanto, a constante perda de significado impele à procura da justiça na praça pública: o domínio é o dos órgãos de comunicação social e o das redes sociais – o espaço do espetáculo.

Neste espaço, a presunção inclina-se à culpa, raramente à inocência. Guia-se pela empatia ou falta dela que o envolvido possa provocar. O trabalho performativo que existe nos tribunais é, aqui, ampliado, refinado e apresentado sob a forma de uma linguagem que tem tanto de popular como de assertiva, qual técnica elementar de vendas. Os estereótipos incham até, por vezes, rebentar: nem tudo cabe nos estereótipos das séries consumidas compulsivamente. Habituados ao dejá vu, a um fim de filme ou série que, face à pobreza  ou repetição ad nauseam do argumento, facilmente todos adivinham, com as pipocas no regaço, lá sai o veredicto e até uma proposta de sentença.

Mas se aquele pretenso infrator, mais ou menos incógnito, é sujeito a uma fúria desejosa de sangue, ao mesmo tempo que se coloca um rótulo de coitado na vítima, o mesmo não se passa com os notáveis. Talvez com estes funcione melhor a estereotipação, pois o enredo é quase sempre do mesmo tipo. Perante uma chusma de jornalistas que acossam esses notáveis, o discurso , geralmente, passa por afirmar que nada se fez de ilegal, que nada se fez de eticamente condenável, descartam-se conhecidos, enterram-se amizades, etc. A própria essência do espetáculo inclui – porque provoca, porque demanda, porque necessita – a incoerência: rapidamente a ambiguidade cai na contradição. Note-se que não se trata de sinal de culpabilidade, mas sim de cedência à pressão mediática, para a qual contribui o carrossel de comentadores, generalistas e pseudoespecialistas que gravitam pelos diversos canais repetindo até à exaustão aquela que é a sua opinião e com convicção. Convicção que  também faz parte do ato performativo.

A questão do discurso do notável que acima observamos está ligado ao objeto deste artigo, justamente, da lei como «vigência sem significado». Com efeito, no palco que transcende o do tribunal, quem é acusado escuda-se na abstração da lei, porque, na verdade, na ausência de qualquer outro significado que não o que Montaigne e Pascal afirmaram, de que se obedece às leis, não porque são justas, mas porque são leis, a sua obrigação “moral” foi cumprida. Coloquei moral entre aspas propositadamente, pois não existe obrigação moral de cumprir leis, tampouco, apesar de se relacionarem, a moral constitui o fundamento do Direito. Daqui se depreende que tendo em vista a moral, padrão característico de uma sociedade, dificilmente se consegue perceber o argumento do preceito individual que é o de recorrer aos princípios da ética: quem garante que aquilo que é ético para A, seja para B, quando moralmente já se poderá julgar como errado?

No entanto, nada disto retira o fundamental da exposição, que a abstração da lei não cessa. Como na parábola de Kafka, a lei, nas palavras de Derrida, guarda-se sem se guardar, por um guarda que nada guarda, com uma porta aberta  e aberta sobre o nada. É assim que tudo se passa numa produção onde os intérpretes são, frequentemente ao mesmo tempo, realizadores de uma trama que aparece e desaparece perante uma indignação que passa a desencanto e acaba na indiferença. Não é à-toa, que Kafka, na parábola, coloca na boca do Padre a triste realidade de que a justiça nada quer de quem é acusado, agarra-o quando vem e larga-o quando parte.

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