Estudo música desde os meus 10 anos. No conservatório nacional tive a sorte de descobrir que o mundo da música me interessaria para o resto da vida. Mas foi só depois de terminar os cursos de contrabaixo clássico e de canto lírico que encontrei o meu lugar exato nesse mundo. Não poderia ser mais longe da música clássica. Mas também se vivia em Lisboa. É que a nossa capital tem um conservatório de música clássica mas está cheia, também, de músicos de outra espécie, de todas as partes do planeta e que partilham os cancioneiros das terras de onde vêm. Chamar-lhes “músicos do mundo” soa estranho, mas é a maneira mais fácil de descrever sucintamente a magia que acontece quando esta gente transforma os cantares e tocares tradicionais de “por aí” na harmonia sem raça que ressoa nas paredes alfacinhas.

Fui fazendo amigos e, volta e meia, convido-os para jantar lá em casa. Não é costume chegar-se ao café sem que as guitarras se misturem com os talheres e os copos de vinho e a música comece a soar em São Bento.

Claro que isto só acontece porque a Francisca, com quem partilho casa, o permite. Aliás, a Francisca é uma verdadeira impulsionadora de que se toque e cante por aqui. Isto porque, apesar de a Francisca nunca ter estudado música, ela tem um faro para entender, de ouvido, como interagir com músicos profissionais. A Francisca nunca sai do tom nem falha entradas. E, com o seu ar gozão de quem entra na festa a brincar, responde que não costuma fazer música, quando lhe perguntam: “onde é que cantas?”

Encontro muita gente assim. Gente como a Kika, que não só canta, como fotografa, e costura, e atua, e capta, tão bem como edita, vídeo. Gente com uma apetência para um determinado “tipo” de atividade que não foi suficientemente desenvolvida para ser específica e clara. E que, no entanto, é visível. Está ali, à nossa frente mas longe daquilo que coloca dinheiro no banco.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sempre que isto acontece (ou seja, quase todos os dias) fico um pouco inquieto. Vejo pessoas felizes a falar sobre aquilo que não fazem e cansadas a falar sobre aquilo que fazem. Porque temos tantas pessoas assim?

Posso pensar nesta pergunta de duas formas. Posso tentar entender a Francisca e todas as Franciscas que, individualmente, poderiam alinhar melhor os seus gostos com as suas atividades profissionais. Talvez desse um bom livro de autoajuda, se pensasse muito sobre isto. Talvez até fizesse felizes algumas Franciscas. Mas isso não é para agora. Prefiro olhar para esta pergunta e tentar perceber se existe algo maior que contribui para que mais Franciscas viajem para longe daquilo que gostam de fazer quando trabalham. Ou seja, será que estamos a falar de um problema do sistema?

Tive muita sorte. Não devia ter nem um ano de idade quando a minha mãe me colocou dentro d’água, de cabeça para baixo, na minha primeira viagem para visitar a família, no Brasil. Aos 10 anos, fazia simultaneamente ginástica acrobática, capoeira e surf. Estava prestes a entrar para o conservatório e havia já descartado uma série de outras atividades (futebol, desenho, judo, natação…) que não me diziam grande coisa. A minha experiência enquanto músico possibilitou-me um contacto bastante sensível com a arte e a expressão de muitas formas diferentes. O surf tornou-se numa espécie de trabalho que me fez dar voltas ao mundo, enquanto convivia com patrocinadores, competições e outras obrigações que me deram luzes sobre o que fazer para sustentar a minha paixão, ainda que de uma forma bastante incompleta. Por isso, quando acabei o 12º ano, além das minhas escolhas académicas, tinha na cabeça uma série de experiências que guiavam os meus gostos. O meu mundo, por assim dizer, não era assim tão pequeno, para um miúdo de 17 anos. Foi, sim, o produto de uma infância e adolescência muitíssimo privilegiada. Não tive pais ricos. Porém, tive pais com a possibilidade e, mais do que isso, com a vontade de me baterem um pouco contra o mundo para me ajudarem a perceber o que fazia faísca. Mas, ainda assim, esta é apenas uma parte da razão pela qual, olhando para a minha experiência pessoal, acabei por fazer aquilo de que gosto como trabalho.

O meu trabalho consiste em procurar por histórias que começam no mar, através do surf, e vão um pouquinho mais além. Vou à procura das culturas, pessoas, lendas, comidas, paisagens e de tudo um pouco que possa ser contado por um surfista curioso. Às vezes são documentários, outras vezes são textos, ou palestras ou podcasts. É claramente uma espécie de redução culinária dos meus gostos. Mas a forma de lá chegar não poderia ter sido menos óbvia.

Quando acabei o 12º, era apaixonado por muita coisa. Já era um passo grande, comparando a minha situação com a de muitos dos meus colegas que não sabiam do que gostar e iam decidir um caminho que, querendo ou não, afunila as nossas vidas em determinada direção. Ou seja, tinha respondido a uma pergunta muito importante: “De que é que eu gosto?” Mas as coisas de que gostava pareciam corpos celestes a anos luz uns dos outros. Música clássica e viajar? História do mundo e surf? Fotografia e competição? Tinha uma média para escolher qualquer faculdade dentro da minha área. E estava mais perdido do que nunca.

O meu caminho era estranho, mas as minhas perguntas eram bastante parecidas com aquelas feitas por todos os adolescentes que não têm a vida resolvida antes de tirar a carta (ou seja, todos, tirando, talvez, a Greta). “Será que eu sei de que é que gosto?” “O que posso fazer da vida, a partir daquilo de que gosto?” “Como será que é a vida das pessoas que fazem aquilo que eu talvez possa vir a fazer?” Mas a primeira e mais gritante de todas era a pergunta que, hoje, vejo como a pergunta mais errada para começar: “Que curso vou tirar?”

Gostava muito da minha professora de Português. Certa vez, à saída de uma aula, perguntei-lhe o que ela achava que eu devia fazer da vida. Em trinta segundos ela respondeu-me que eu iria gostar muito de Ciência Política e Relações Internacionais. Foi assim que decidi o meu percurso académico.

Mais uma vez tive muita sorte. No momento certo, percebi que algo não estava bem com as minhas escolhas e tinha um pai mesmo à mão que sabia como me guiar na transformação dos meus gostos em modelos de negócio que, hoje, me permitem trabalhar com amor pelo que faço. E tenho alguns amigos que, como eu, gostam das suas profissões. Alguns são freelancers, empreendedores ou empresários. Mas a maior parte não inventou um caminho e trabalha para alguém. Independentemente disso, o que vejo que estas pessoas têm em comum é que, em geral, trabalham um pouquinho mais e acabam por “estar melhor na vida”. Há sempre casos e casos e não tenho nenhum estudo na manga, mas acho que posso postular a hipótese de que pessoas felizes na sua atividade são, também, pessoas mais produtivas.

Nunca tanta malta tirou tantos cursos. Mas num mundo em que ter um propósito parece guiar a vida de tantos jovens, estar preparado para fazer algo que não sabemos se é o que queremos fazer não parece ser a melhor maneira de canalizar essa educação. E, aqui, o problema deixa de ser de cada uma das Franciscas e passa a ser um problema de todos nós.

Se eu secar a minha história dos seus particularismos, eu reparo que a minha educação e escolhas tiveram, acima de tudo, dois diferenciais que contribuíram para eu saber do que gostar e conseguir perseguir uma decisão profissional alinhada com esses gostos: exposição a muita coisa e uma visão de caminhos possíveis. Se é verdade que aprendi imensa coisa na escola e na universidade, o mesmo não posso dizer relativamente ao ensino no que toca ao encontro com atividades em concreto. Fossem atividades profissionais ou não. Até dei uns passeios. Aprendi sobre as pegadas de dinossauros e sobre a fotossíntese. Mas nunca escavei as falésias perto da minha escola, nem plantei uma árvore nas redondezas. E, menos ainda, entendi como é a vida dos paleontólogos ou dos biólogos. Mesmo na faculdade, durante toda a licenciatura, tivemos a visita de dois ou três profissionais de áreas associadas ao curso e mais dois ou três exercícios em que fingíamos ser diplomatas por uma hora ou duas. Aprendemos muito bem a escrever artigos académicos mas não sei se toda a gente quer ser investigador para o resto da vida.

Pode parecer difícil responder a estas duas necessidades. Seguramente que adaptar currículos escolares para que se viva um pouquinho mais e para que essa vida seja mais alinhada com projetos da realidade é caro e trabalhoso. Mais caro e trabalhoso será que exista algum tipo de acompanhamento sistémico na hora de fazer escolhas quando, afinal, somos todos bichos bastante diferentes uns dos outros. Mas programas como erasmus comparticipados, se pensarmos bem, são um sucesso bastante alienígena e difícil de concretizar. Não indo tão longe, que tanta gente estude durante tanto tempo é, em si, uma enorme vitória. Será que gastar recursos numa melhor orientação de todo esse estudo (e comparticipação, e bolsas, e tudo o que isso implica) não sairia mais barato, no fim das contas? Pelo menos, diria que vale que se façam contas.

Há quem diga que o sistema de ensino não está lá para nos preparar para uma profissão. Mas então eu pergunto: o que está? Não será um problema grande o suficiente para que saia apenas das mãos de cada um e passe a ser uma preocupação de todos? No nosso mundo, ainda vamos passar a maior parte das nossas vidas agarrados àquilo que fazemos profissionalmente. Independentemente de se valorizamos mais sociedades produtivas ou Franciscas felizes, seria bom que esse tempo fosse bem passado.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.