Algumas pessoas neste mundo sabem o que as faz felizes desde que têm 5 anos.

Mas se, como eu, gostavas que o teu dia tivesse 72 horas porque o tempo de uma rotação da terra não chega para tudo o que interessa, então vamos lá.

Sem querer repetir a nota de rodapé deste jornal, conto-vos um segredo: este artigo é uma encomenda. Vá, um intercâmbio entre o Observador e um tal de grupo chamado de “Global Shapers”. Mas quem são estes Global Shapers? E “shapam” o quê? Ora estas pessoas são jovens que, por se destacarem nas suas áreas, influenciam a sociedade, com o objetivo de impactá-la positivamente. Na primeira reunião que tive com o grupo que vem ameaçadoramente lá do “Fórum Económico Mundial”, o entusiasmo foi grande: de ginastas a militares, passando por médicos e gestores, donos de empresas revolucionárias e ativistas de todo o tipo – a história de quem fazia parte era uma de muitas conquistas nas mais variadas áreas da vida. É esta a base para que os Global Shapers venham dizer coisas para aqui, uma vez por semana. E é aí que eu entro: “João, podes escrever sobre o que quiseres” pressupondo que eu terei muito a dizer sobre uma área na qual me destaco. Que liberdade! Só que, ao contrário de muitos dos meus colegas shapers, eu não sei bem qual a área em que me destaco.

Há uns milhares de anos, o dia de um caçador recoletor passar-se-ia entre, lá está, o caçar e o recolher mas, também, entre o talhar, o liderar, o defender-se de feras e invasores e toda uma panóplia de coisas que parecemos estar preparados para fazer. Mas, depois, o mundo dividiu-se em castas e classes com funções específicas, em engenheiros, médicos especialistas e botânicos tropicais. E acabámos em coisas como “nanobioquímicos”. E, assim sendo, ou viramos hiperespecialistas ou, quando nos pedem para escrever sobre “o que quisermos” arrumamos as malas e emigramos para a posição fetal que necessariamente sucede a síndrome de impostor que nos assola.

Essa é a história da minha vida: razoavelmente bom em muita coisa, nunca o melhor em nada. Resumindo: comecei a competir em campeonatos de surf com 10 anos. Lá ganhava alguns. Mas destacava-me na água principalmente por ser contrabaixista e tocar bem o suficiente para, se quisesse, no curso de Relações Internacionais, poder levar o instrumento para fazer a soundtrack de uma qualquer apresentação sobre realpolitik. Não entenderam nada? Nem eu. E é esta a minha vida. Definida em cada área por uma outra que pratico.

Apesar da confusão que causava em mim e nos outros, lá no fundo, esta coisa de me interessar por muitas coisas parecia não ser um defeito. E cheguei a perguntar: será que isto pode até ser bom?

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É possível que, como eu, te sintas assim. E tenho a certeza que já te questionaste sobre quais serão as vantagens de ter muitos interesses.

Pois bem, aqui vão algumas que aprendi.

Paralelismos

Uma Sonata é uma ótima metáfora para os problemas mais complexos da vida: a primeira vez que nos deparamos com uma peça deste tipo, olhamos com perplexidade para os seus vários andamentos como um contínuo. Uma longa combinação de notas, grande demais para que, naquele primeiro momento de pavor, lhe consigamos tirar algum alguma lógica. Mas qualquer músico clássico, passado um tempo, começa a olhar para uma Sonata como um conjunto, não só de andamentos distintos mas de frases e até mesmo de movimentos isolados. Algo grande, sim, mas que pode ser partido em bocadinhos mais curtos e fáceis de dominar. Quem olha de forma leiga para uma onda pode ter a mesma senação: um surfista está a coreografar um único desenho desde o momento em que se levanta numa prancha até que decide desistir da onda que apanhou. Mas, na verdade, esse desenho é composto por uma série de movimentos previamente aprendidos que, quando executados com maestria, parecem uma coisa só.

Há, no entanto, uma diferença fundamental entre um músico clássico e um surfista: o chão em que um surfista treina os seus movimentos mexe-se, como uma pauta em movimento. E, por isso, o controlo que tem para isolar o que precisa ser trabalhado é muito diferente.

Este exemplo demonstra como pessoas que fazem mais do que uma coisa têm uma maior capacidade para encontrar paralelismos. E nesses paralelismos existem soluções nas quais não poderíamos pensar se só tivessemos acesso a uma realidade. A nossa “caixa de ferramentas” passa a ser maior.

A chave de fendas, neste caso, seria isolar os movimentos que queria fazer melhor no surf, como se de uma passagem difícil num andamento rápido da Sonata se tratasse. Mas isso não se podia fazer no mar. Comecei a olhar para a minha rua como se fosse uma onda e a treinar repetidamente os mesmos movimentos em cima de um skate. Na altura, não fui consciente de que estava a importar um mecanismo de uma área para a outra. O que me leva a pensar em quantos mecanismos conseguimos nós – canivetes suíços com sobrancelhas – utilizar em tudo o que fazemos sem nos apercebermos disso. Foram precisas algumas calças rasgadas e alguns pontos (na cabeça, no lábio…) mas a técnica resultou.

Pokémons Raros

Resultou tanto que, quando tinha 15 anos, a primeira e talvez mais importante revista de surf portuguesa quis documentar um pouco da minha vida de surfista. Só que para o artigo, o que o Ricardo Bravo (um incrível fotógrafo de ondas português) escolheu para registar foi um momento de surf improvável: um miúdo, num estúdio, com o contrabaixo apoiado no corpo.

Não era normal aparecer no conservatório de prancha debaixo do braço e sal nas sobrancelhas porque a sociedade não está à espera de certas combinações nas pessoas. E isso faz com que não existam caixas para guardá-las. Pode ser uma desvantagem. Ou não: a primeira ferramenta que comecei a utilizar, inconscientemente, foi a surpresa. A sociedade não está à espera de certas combinações e, por isso, estas pessoas chamam a atenção. Mas… e depois?

Pontes

Ser um malabarista de atividades pode ser um ótimo pretexto para nos vendermos melhor. Um curriculum enche sempre mais o olho quando, a par de alguns anos numa consultora em Londres ou em Nova York, também contempla uma ou duas temporadas de voleibol profissional.

No meu caso, não me lembro de quantas reuniões começaram com algum diretor de marketing a dizer: “Sabes o que era mesmo giro?” E logo vinha algo um pouco absurdo. Obrigado, mas não quero fazer um recital de canto lírico em cima de um paddle board. Ainda assim, talvez tenha sido essa combinação estranha que me sentou à mesa com esta pessoa e, por isso, podia combinar as minhas paixões de uma forma com mais sentido. O sentido que eu quisesse.

E aí entra algo um pouco paradoxal: querendo fugir de ser um hiperespecialista, transformei-me em alguém que era especialista em conjugar. Na altura, era o único surfista que contava histórias em Portugal. Se, por um lado, em “contar histórias” poderiam caber projetos de impacto ou viagens à procura de ondas e da música do mundo, por outro, essa combinação tornava-me em algo bastante específico. Talvez tanto como, por exemplo, um engenheiro especializado em pontes suspensas. Na verdade, é isso que uma combinação destas tem o poder de criar – um especialista não em uma área, mas nas pontes que as conectam: um escultor que se interessa pelo impacto no mundo ou um gestor apaixonado pela arte têm, procurando, um caminho que conecta as coisas de que gostam de uma forma vendável. Cada um será o engenheiro das suas próprias pontes. E, se a humanidade sempre arranjou forma de dar a volta aos rios mais complicados, também nós, seguramente, saberemos unir aquilo em que queremos passar o nosso tempo, se valer a pena.

Mas… e se eu gostar mais de navegar?

Redes

Aquilo que disse antes coloca o foco de conjugar o que gostamos nas coisas que fazemos. Mas as margens da nossa vida não precisam de ser conectadas por pontes hiper eficientes nem de estar separadas para sempre. Podemos, se quisermos, levar um barco para o meio do rio. E convidar toda a gente.

Algumas pessoas à minha volta perceberam isto mais rápido do que eu.

Apresento-vos o Jayme e o Francisco: o primeiro é um especialista em marketing B2B que desenha, publica livros de poesia e é músico aos domingos, quando não está a dançar forró na Avenida da Liberdade. É também meu pai. O segundo é treinador de futebol, daqueles que comenta os jogos da SportTV mas também escreve letras para grandes fadistas, nas noites boémias de Lisboa. Claro que nem tudo podia ser fado: havia o trabalho na campanha do Carlos Moedas, de manhã. Sim, são pessoas incrivelmente interessantes. Mas melhor que eles, são as festas. Porque, nesses seus barcos no meio do rio, as redes que eles trazem das suas margens são redes de gente: pessoas de todos os cantos da sua vida. E, por isso, as conversas sobre marketing são interrompidas pelo forró que irrompe ao som da poesia. Os valores e os projetos viram serões de música até o céu da noite começar a ganhar tons rosados. O que se passa nestes encontros pode ser traduzido em propostas e projetos e tal. Mas estas redes são em si mesmas a recompensa.

Não sei quem és nem por quantos interesses tens de dividir o teu tempo. Mas algo me diz que, se chegaste até aqui, por mais ou por menos que saibas o que queres desde os teus 5 anos, é porque também te sentes um pouquinho assim.

E será que não nos sentimos todos?

João Kopke é um contador de histórias que utiliza o surf, a sua formação artística em música clássica e a sua formação académica em Ciências Políticas e Relações Internacionais para criar conteúdos. Juntou-se ao Global Shapers Lisbon Hub em 2020.

O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa.  O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.