Quero falar sobre a morte.
Não me recordo de me falarem sobre a morte em criança, talvez porque tive a sorte de não ter nenhum falecimento de pessoa próxima. Não me recordo de nenhuma aula na escola sobre o assunto. Houve catequese e missas, sim, mas a forma como a religião aborda a morte é semelhante a como um pai pouco talentoso lida com o filho: “se te portares bem dou-te um chupa-chupa, se te portares mal ficas de castigo”. Isto é, a religião encara a morte não como um fim mas como uma porta para a imortalidade, como uma transição para algum tipo de Céu ou Inferno, no qual se inicia uma eternidade da existência do espírito. Nunca nos falam da morte como aquilo que realmente é: o oblívio, onde nada existe, onde se anula a consciência e a memória, e desaparece o ser. Nem nos falam da forma como encarar esse oblívio, evitando a questão com a elaborada fantasia da vida eterna.
A explicação para este estado de coisas é óbvia: ninguém gosta de falar sobre a morte e toda a gente faz o melhor que pode para a disfarçar de algo menos assustador ou viver como se ela não existisse. Embora implicitamente na cultura existam algumas ideias de senso-comum para melhor lidar com a mortalidade, como por exemplo o conceito de carpe diem, para aproveitarmos sem desperdiçar o tempo que nos é dado, ainda assim costumam adquirir um tom apaziguador e até mesmo encarar a efemeridade da vida como uma bênção, visto “tornar tudo mais especial”.
E claro, a morte protagoniza uma das ideias (memes) mais difundidas na população, tão enraizada que dizer o contrário é encarado com um levantar de sobrolho e garante que questionem a nossa lucidez; uma ideia vista como banal mas que considero odiosa; uma ideia que nos persegue desde as origens da nossa espécie; uma ideia que motiva o presente ensaio: a ideia de que a morte “é natural”.
Ora, para a maioria de nós, a morte não é entendida como natural somente no sentido biológico, no qual a morte sucede como uma deterioração do organismo devido a erros acumulados no seu aparelho orgânico, levando à sua falência global, destino que acomete todos os organismos vivos. Não, adicionalmente, é entendida como “natural” no sentido em que a devemos aceitar como parte integrante e irrefutável da vida. É entendida como “natural” no sentido em que tem que fazer tacitamente parte da ordem das coisas, e desejar o contrário seria um acto errado, que faria de quem o deseja algum tipo de adjetivo menos agradável, seja “irrealista”, “ingénuo”, “sonhador” ou “egoísta”.
Pois bem, eu não aceito. Não aceito as premissas nem aceito as conclusões.
Para mim a morte é apenas um problema, igual a qualquer outro problema que ainda não foi resolvido. Um problema altamente complexo e que será de difícil solução, sem dúvida. Mas difícil não significa impossível, pois tal só seria o caso se a solução violasse as leis da física; e atendendo a que nós existimos, permanecemos vivos de alguma forma mantendo e reparando a nossa maquinaria orgânica, nos reproduzimos criando nova vida, sabemos que é um problema resolúvel. Falta-nos apenas o conhecimento de como utilizar as leis do universo para manipular a maquinaria orgânica de forma a obter o fim desejado; não é disparatado pensar que esse conhecimento acabará por existir um dia, se continuarmos com a criatividade e engenho que caracteriza a nossa civilização desde o Iluminismo.
Afinal, para o Homo sapiens já foi “natural” morrer de frio. Já foi “natural” morrer de infecção nos dentes. Já foi “natural” morrer no parto. Tudo isto era visto como inevitabilidade inerente à ordem das coisas, que não tínhamos senão como aceitar, porque não podia ser controlado nem evitado enquanto consequência de existir. Caramba, até os monarcas, os mais privilegiados humanos da civilização da época, procuravam ter sempre muitos filhos porque a probabilidade de cada um não chegar à idade adulta era significativa! Era “natural”, até para a elite. Eu faço muitas consultas a idosos, que relatam da sua própria experiência, como até mesmo há poucas décadas atrás era frequente e aceite como natural que os filhos morressem no período neonatal ou na infância… Algum leitor deste artigo aceitaria como natural e inevitável a perda de um filho na infância devido a uma causa que poderia ser facilmente evitável, resignando-se a acolher a monumental dor de tal perda com um simples encolher de ombros e a resignação tácita de que é mesmo assim a vida?
Não resisto a chamar a atenção para o facto concreto de que actualmente vivemos num “Paraíso” em muitos aspectos melhor do que o imaginado por quem escreveu os textos sagrados. Ali, idealizaram um contexto algo idílico, onde a resolução das ansiedades e preocupações perenes da existência se traduziria por uma paz permanente, abundância de alimento, saúde e pouco mais. Em boa verdade, já beneficiamos de grande parte desse ideal: imaginem apenas a incredulidade de um indivíduo desses tempos ao ver a facilidade com que obtemos água potável, a abundância de quantidades e de escolhas que se nos apresenta num vulgar supermercado, as opções de ócio e criatividade com que ocupamos tanto do nosso tempo, para perceber como provavelmente teriam descrito o paraíso enquanto uma imagem do futuro, se ao menos o tivessem podido imaginar.
Entristece-me particularmente que, em especial em tempos recentes, para além de se achar a morte inevitável, começou a considerar-se desejável, usando o argumento malthusiano da finitude dos recursos e insustentabilidade do crescimento. Segundo esse argumento, se não morrermos não haverá “espaço” para os que nascem. Não reconhecendo uma capacidade de resolver os problemas actuais, esse argumento faria sentido: os recursos existentes no planeta são limitados e como estamos a atingir esses limites, há que “decrescer” (palavra por vezes usada de forma racional como contra-argumento ao consumismo desenfreado, mas tantas mais vezes usada enquanto eufemismo para “viver pior”). Nessa visão pessimista do mundo, em que não se reconhece à humanidade a capacidade de resolver problemas, a imortalidade é realmente impensável. Felizmente a realidade não é essa. Temos problemas extremamente sérios e complexos para resolver, contando-se as alterações climáticas entre eles, mas o único factor que irá definir o limite da nossa prosperidade estará sempre ligado a nós: serão as nossas escolhas, o crescimento do nosso conhecimento, e a nossa capacidade de resolver os problemas que irão sempre surgir.
Se conseguir entender os argumentos apresentados até aqui, será fácil ao leitor compreender porque é que eu “levo muito a peito” ser mortal. Sabendo o quão inestimável é cada vida humana, mas para cada um de nós, a nossa própria em particular, não há como não sentir uma indizível frustração perante a percepção de que muito provavelmente fazemos parte das últimas gerações mortais da Humanidade. Não há como não sentir uma grande angústia por a Grécia Antiga não ter conseguido sobreviver e termos sofrido um interregno de progresso civilizacional de mais de um milénio… Porque seríamos agora imortais.
Não faço ideia de qual a forma dessa imortalidade, se erradicaríamos o envelhecimento e a doença, se viveríamos em corpo de robô, se seríamos uma consciência imaterial “na nuvem”, se teríamos corpos suplentes em casa para o caso de nos esborracharmos num muro, se teríamos asas ou viajaríamos à velocidade da luz para outro sistema solar onde um novo corpo nos esperaria, se… convido o leitor a completar esta lista de ideias com quaisquer outros cenários que, até se tornarem realidade, não conseguimos imaginar. Mas alguma forma de imortalidade existiria, e aos nossos olhos parecer-nos-ia alienígena ou mágico, de forma semelhante ao que o camponês medieval pensaria acerca dos nossos actuais aviões e internet.
Esta mágoa, esta tragédia da mortalidade, é partilhada por todos, mais tarde ou mais cedo, quando ocorre a perda de alguém amado. Sentimos no âmago tal injustiça. E depois aceitamos, é a “ordem das coisas”, o “ciclo da vida” e outras tretas que tal… Mas não devemos aceitar. Somos capazes de mais do que isso, e em vez de nos resignarmos, temos perante as gerações futuras a responsabilidade de continuar esta ascensão da humanidade. Não para o sobrenatural, mas para cada vez mais longe das nossas raízes biológicas, pois cada morte que acontecer pelo nosso atraso derivado da falta de curiosidade e ambição, será uma tragédia.