Em Portugal, a esperança média de vida aumentou nas últimas décadas, a mortalidade infantil é baixa, reduzimos significativamente muitas das formas graves de doenças e temos acesso a cuidados de saúde com profissionais e tecnologias cada vez mais diferenciados.

No entanto, ao contrário da música de Sérgio Godinho, a maré não está a subir. A perceção dos portugueses sobre a sua saúde é baixa. As notícias focam-se no encerramento e na confusão das urgências, na falta de acesso a médicos de família, nas listas de espera, na integração inexistente dos cuidados e numa centralização inconsequente – tanto a nível executivo, como local.

Para resolver esta dicotomia precisamos de voltar ao princípio. Quais são os objetivos? Os números ou as pessoas? Qual a causa dos problemas? Podemos reverter a situação? Podemos fazer melhor e viver melhor?

Todos os estudos científicos e estatísticas mostram bem que a melhoria dos dados de saúde anda a par com a melhoria das condições de vida das populações – condições sanitárias, escolaridade, emprego, habitação digna, salários e a redução de fatores como a poluição, o tabagismo e as drogas. Grande parte do aumento da nossa longevidade deve-se à maré alta pós 25 de Abril. Mas esta é a abordagem populacional global, aquilo a que chamamos de prevenção primordial.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Depois do controlo das doenças infeciosas, com a melhoria das condições de higiene, antibióticos e vacinas, enfrentamos essencialmente as doenças crónicas. Estas representam cerca de 90% da mortalidade nos países desenvolvidos e uma proporção ainda maior da morbilidade (carga de doença da população). Representam ainda uma fatia significativa dos custos em saúde (calculamos que só a diabetes represente cerca de 10% destes custos). Numa altura em que a Assembleia Geral das Nações Unidas faz o balanço dos objetivos para o desenvolvimento sustentável, temos todos de nos lembrar de que as doenças crónicas são uma das maiores ameaças para atingir esses objetivos e para o desenvolvimento económico de cada país.

E é aqui que entra a prevenção secundária: o diagnóstico precoce das doenças ou dos seus estádios anteriores. Neste campo, Portugal, tal como a grande maioria do mundo, tem falhado redondamente.

O sistema de saúde atual está fragmentado no seu desenho, nas suas respostas e nas populações que cobre. Temos Unidades de Saúde Familiar (USF) que se organizam à volta de listas de utentes sem relação geográfica – no mesmo local, temos pessoas a serem seguidas em diferentes Unidades. Imaginem a complexidade que este sistema introduz quando pretendemos respostas articuladas entre diferentes agentes – saúde, autarquias e sociedade civil. Como conceber planos locais de saúde sem USF populacionais? Como conceber USF populacionais sem coordenação? Como não colocar os velhinhos Centros de Saúde naquilo que lhes deu o nome: CENTROS!

Num outro lado do sistema, temos hospitais com um peso significativo no ambulatório (consultas) e em hospitais de dia (para tratamentos, muitas vezes, de continuidade de doenças crónicas) mas onde estas atividades são desvalorizadas e esvaziadas, para que os hospitais possam assegurar serviços de urgência que, paradoxalmente, se tornaram centrais na resposta de saúde do nosso país.

A fragmentação continua nas Unidades de Cuidados Continuados, que não só não existem em número suficiente, como não estão ligadas às respostas locais da população. Mesmo as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) continuam a ser consideradas os serviços dos pobres, e a Segurança Social não consegue compreender o seu impacto na saúde individual e coletiva, criando grande dificuldade na coordenação e integração de respostas de saúde e sociais.

No princípio do século XX, houve um entendimento de que várias patologias mereciam uma abordagem pluridisciplinar integrada: Hospitais Psiquiátricos, Pediátricos, Maternidades, Institutos de Oncologia e, porque não, a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP). Estas instituições foram criadas porque se reconheceu que algumas condições de saúde mereciam ser acompanhadas em locais que concentrariam os recursos adequados (conhecimento, recursos humanos, infraestruturas…) para que se pudessem atingir os melhores resultados de saúde.

Atualmente, a prestação de cuidados de saúde é muito diferente. Muitas doenças, incluindo a diabetes, necessitam, em algum momento, de apoio de outras especialidades médicas, outros profissionais de saúde, outra tecnologia. Por esse motivo, vemos milhões de pessoas a recorrerem a múltiplas consultas hospitalares fragmentadas, muitas vezes em diferentes hospitais. E, eventualmente, sem a tal concentração de conhecimento e recursos adequados para estas condições, quando poderiam ter uma resposta articulada e integrada em centros dedicados: Hospitais do Pulmão e da Respiração, do Coração e da Hipertensão, Centros de Gastro e Endoscopias, Centros Dermatológicos. Isto para não falar na multiplicação de centros como  a APDP pelos principais centros do país, entre dezenas de outras possibilidades. Esta visão permitiria deixar os Hospitais para a sua grande missão: as Urgências médicas e cirúrgicas e o Trauma, além da realização de exames cuja complexidade justifica a sua centralização.

A par destas mudanças, a criação de Institutos específicos de prevenção parece-nos a única forma de fazer a ponte entre as áreas determinantes de influência social, política, autárquica e sanitária. Esperamos que um Instituto de Prevenção da Diabetes possa ver o dia, fomentando mudanças sustentáveis para a promoção de saúde. Tudo isto mantendo o foco nas pessoas e no desenvolvimento das suas competências para controlarem a sua vida e reconhecendo o seu contexto e as intervenções que as atingem.

Em suma, o desenho de um futuro sistema de saúde terá obrigatoriamente de partir dos cidadãos, com a sua ativa participação no desenho das soluções, através do real conhecimento das suas necessidades de prevenção e tratamento em saúde, das suas necessidades de educação;  da implementação de estratégias de combate aos determinantes sociais das doenças (pobreza, desemprego, iliteracia, habitação sem condições, isolamento social…); e da capacidade de providenciar respostas integradas capazes de prevenir as consequências das doenças crónicas, incluindo as suas descompensações, chegando só ao cimo da pirâmide as situações excecionais e que necessitarão dos hospitais.

A descentralização e integração do poder de decisão, e o pacto pela saúde de profissionais e cidadãos, será a alternativa. Nesse momento, todos nós aprenderíamos a nadar, porque a maré estaria alta e a saúde, finalmente, estaria a passar por aqui!