Quando nasci saímos de uma casa grande no centro de Guimarães e transformámos o antigo estábulo da quinta numa casa bon chic bon genre com luzes baixas e tetos altos.  Na parte de cima desse estábulo — “aquecidos” pelo calor do gado, que dormia, amontoado, lá em baixo — viviam, da mesma forma, alguns trabalhadores da quinta.

Só no meu quarto dormiam nove. Uma família inteira que, por uma vida, partilhou as mesmas paredes que durante a minha infância tive só para mim. As que me protegiam só a mim quando a minha mãe me vinha dar um beijo de boa noite; as revestidas com posters do meu amor Avril Lavigne; as que me viram partir inúmeros comandos de PlayStation. Escovado e lavadinho, foi dentro desse forte-só-meu-qual-pequeno-príncipe que chorei com o ‘Meu Pé de Laranja Lima’, gritei sem som insultos aos meus pais e fumei os primeiros cigarros às escondidas.

Não faço ideia se estas pessoas foram felizes enquanto viveram e se reproduziram no meu quarto — espero que sim, ambas —, mas sei que nesse quarto, em que durante anos os estômagos estalaram mais do que a madeira, cresceu mais tarde uma criança sortuda, rodeada de cães, flores, amor dos pais e uma empregada-amiga que lhe cozinhava toscanas às escondidas da patroa. Hip-hip. Hurra?

Nasce-se: e tem-se sorte, ou não, em nascer num sítio ou noutro; numa classe ou noutra; com amor ou sem. Depois cresce-se: e repara-se que nem todos os meninos têm computador em casa, que as mãos do teu pai são mais macias do que as dos trabalhadores, que por todos a tua mãe é tratada por “doutora”.

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E eis-me, o insuportável filhinho da “doutora”, com mais admiração pelos homens da quinta — super-heróis com tratores gigantes, as suas irmãs e mulheres com joias douradas, todos rodopiando em faustosas festas minhotas — do que pela gente chata que lá ia jantar.

(Avó, posso levantar-me da mesa?)

E lá ia, de coca-cola em riste, para o fresquinho da lavandaria onde as empregadas me sentavam numa cadeira frágil para, de perninhas a abanar, as ver, aos pares, dobrar lençóis frescos como o mar; cheirosos como flores. E ajudavam-me nos trabalhos de casa; e diziam palavras que desconhecia — e às vezes, quando chorava, que acontecia muito, encostavam-me a cabeça no seu peito quente.

(Não há no mundo sítio melhor do que esse)

Esse fui eu, esse sou eu, desde pequeno sem tamanho para receber tanto amor e ainda atordoado com a sorte. Desanimado por não conseguir devolver a estas pessoas o mundo que me deram na infância. Sabemos que é uma injustiça uns nascerem com tanto e outros sem nada — e por isso só nos resta defender políticas públicas capazes de melhorar as condições dos que não nascem como nós.

Os patetas da meritocracia tiram o IQOS da boca, enchem o peito, desenrolam a língua e dizem: “A sorte dá muito trabalho”. Enganam-se: a mim, como a alguns, a sorte nunca deu trabalho: bastou nascer e ir respirando. Já a outros, demasiados, o azar deu-lhes imenso. Escovadinhos e limpinhos, onde está essa empatia? Não é melhor que todos possamos andar no carrossel? Só custa a primeira volta — e até tem um cavalinho.