Desde longe que a inovação molda a identidade da cultura vitivinícola e marca momentos históricos. O vinho é um “player” fundamental no que diz respeito à geometria do comércio mundial e, em particular, às exportações, atento às tendências globais e sabendo preservar a iconografia e as tradições das suas gentes e territórios.

As práticas de irrigação introduzidas durante o ciclo da Reconquista e influência árabe tiveram impacto até aos dias de hoje, sendo ainda de destacar o relevo da Demarcação da Região Demarcada do Douro, por alvará régio de 1756, e o papel determinante de Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal e Conde de Oeiras, na criação da 1.ª Denominação de Origem vitivinícola do mundo.

A Antiguidade

O vinho é um género alimentício com estatuto próprio que trespassa civilizações e é resultado do triângulo de influências comummente denominado Terroir: labor do Homem, fruto da videira e consequência das condições edafoclimáticas (isto é, ditadas pelo binómio solo e clima).

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Parece ser consensual que a primeira vinha foi instalada na Península ibérica, cerca de 2000 a.C., pelos Tartessos. Contudo, foram os Fenícios que, no Séc. X a.C., tomaram posse do comércio e da chegada de algumas castas à Lusitânia. Segundo Pite, J-R (2024:39) terá surgido nas montanhas do Crescente Fértil, a partir de Vitis Vinifera que ali cresciam espontaneamente, produzindo esta bebida ímpar. Destronou outras em celebrações aristocráticas, eclesiásticas e rituais diversos, onde a sua simbologia é patente.

A Bíblia é exemplo desse testemunho com cerca de 230 menções ao vinho, atribuindo a sua invenção a Noé. Logo no Génesis, após o dilúvio, quando a Terra foi restaurada ao seu estado primitivo (Gn 9, 20), mas podemos citar o estatuto de excepção no milagre das Bodas de Caná ou na transubstanciação da Última Ceia, que opera no acto da consagração a mudança da substância do pão e do vinho na substância do Corpo e Sangue de Jesus Cristo.

Mosaico romano com representação da pisa da uva. Séculos II/III.

Há registos da presença dos Fenícios, no Algarve, em Lisboa e Ribatejo, e de Celtas Galaicos, na região do Minho, que, no sec.VI a.C., teriam trazido novas castas e técnicas de tanoaria. Ao carácter divino do vinho é associado festa e convivialidade, activo transacionável e promotor de coesão territorial com uma exploração de amplitude de castas vinícolas tal, que permite produção versátil de vinhos desde os de luxo a outros que cumpram a democratização do seu consumo. Visto de santo a vilão, de impuro a puro, até sacralizar a presença de Cristo na eucaristia e conseguir, inclusive, excepções relevantes como, na vigência da lei seca, para assegurar a produção dos “vinhos de missa”.

Da Idade Média ao século XIX

O património vitivinícola reflecte a nível cultural, social, iconográfico, literário ou económico todo o percurso de Portugal ao longo dos séculos, enformando a nossa identidade. Primeiro, com a romanização da Península Ibérica há aperfeiçoamentos para incentivar as remessas de vinho para Roma que não tinha suficiente produção própria. Depois com as invasões bárbaras, dá-se a grande expansão do Cristianismo, onde o vinho ganha novo fulgor, à medida que o homem começou a ligar-se ao divino como expressão de religiosidade. Nos Sec. XII e XIII, ganha peso económico com as exportações, ainda que, com o início da Reconquista Cristã, as inúmeras lutas tenham destruído várias culturas. Com a fundação de Portugal em 1143, começam a instalar-se ordens religiosas, militares e monásticas com particular enfoque para os Templários, Cister e Santiago da Espada, que povoaram e arrotearam extensas áreas onde a vinha passou a ter destaque e a fazer parte da dieta medieval, como importante activo agroalimentar destas regiões.

No Renascimento, a expansão portuguesa transporta vinho nas suas naus e galeões, dando-lhes lastro e, no período glorioso dos Descobrimentos, chega ao Brasil e ao Oriente, onde se descobrem – fruto destas longas viagens e passagem pelo Equador – a originalidade dos “vinhos de roda” ou “torna-viagem”, que vieram aprimorar o conhecimento quanto ao envelhecimento dos vinhos pelos efeitos da temperatura, humidade e diferenças de pressão, factores cujos fundamentos científicos vieram mais tarde a consolidar-se.

Vindima; vinha; vinho no Livro de Horas de D. Manuel I / mês de Setembro, Século XVI [1517-1551].

As inúmeras festas e romarias que campeiam de norte a sul do país, em todas as latitudes, e a ligação entre cultura e vinho na literatura são reflexo indelével da tradição da produção de uvas, mostos, vinhos e aguardentes e, naturalmente, do seu consumo.

O Tratado de Methuen, em 1703, permitiu a livre entrada dos lanifícios ingleses em Portugal em favor da redução tarifária aos vinhos portugueses exportados para Inglaterra, com especial impacto nos Vinhos do Porto, assegurando um importante ganho de quota de mercado aos vinhos franceses.

Já no Sec. XVIII, sob a influência do Marquês de Pombal, são consagradas medidas proteccionistas que beneficiam o Alto Douro e, por alvará régio em 1756, é criada a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, visando uma disciplina própria desde a produção de uvas e de vinho, sua distribuição e comércio, e, em consequência, à demarcação da primeira denominação de origem vitivinícola do mundo. Também no Douro, em 1865, dá-se o aparecimento da praga da filoxera, que se alimentava das raízes das videiras, destruindo-as, alastrando e dizimando o Portugal vitícola de então. Apenas escapou a região de Colares, cujas vinhas até hoje radicam em chão de areia e o insecto, aí, não se desenvolve, nem consegue sugar a seiva ao nível radicular.

Em Etudes sur le Vin (1866), de Pasteur, pai da enologia científica, encontramos uma das mais fundamentadas expressões sobre a relevância do processo fermentativo do vinho: “O vinho é a mais sã e higiénica das bebidas”.  Igualmente relevante, o Tratado “PORTUGAL VINÍCOLA” do Prof. Cinccinato da Costa, cuja obra foi premiada na exposição mundial de Paris, em 1900, e que, versando sobre estudos sobre a ampelografia (isto é, a variedade das castas), é uma monumental obra da bibliografia vinícola, cujas estampas, de Roque Gameiro, também permitem revelar a enorme dimensão deste aguarelista.

Do século XX aos dias e desafios de hoje

Em 1907, dá-se início à regulamentação de várias D.O’s  dos vinhos da Madeira, Moscatel de Setúbal e Carcavelos, além do Dão, Colares e Vinho Verde. Já no Estado Novo (1933),  é criada a Federação dos Vinicultores do Centro e Sul de Portugal, o que antecede a Junta Nacional dos Vinhos (1937), que, com a entrada, em 1986, na então CEE, dá lugar ao Instituto da Vinha e do Vinho e que, com a Lei Quadro das Regiões  Vitivinícolas (Lei 8/85, de 4 de Junho), prevê, em cada uma daquelas regiões, a existência de uma comissão vitivinícola regional, para garantia da genuinidade e da qualidade dos vinhos das regiões demarcadas e apoio à sua produção, mantendo-se o modelo até aos dias de hoje.

Se, por um lado, fomos pioneiros a proteger o vinho do Porto de fraudes, criando a primeira D.O., e fundadores em 1924 da OIV-Organization Internationale de la Vigne et du Vin, organismo intergovernamental com o objectivo de harmonizar regras a nível mundial, cujo centenário estamos a celebrar, por outro, também fomos muito criativos, pois, segundo Oz Clarke, no seu Atlas do Vinho, a legislação do vinho em Portugal está em constante alteração desde que aderiu à CEE, na “imprevisibilidade e recusa em conformar-se com as normas modernas internacionais, fazendo  de Portugal um país vinícola gloriosamente fascinante e, simultaneamente, enfurecedor” (1998).

Cultura da vinha, hoje – região do Douro.

A história da vinha e do vinho funde-se, assim, com a história e cultura de Portugal e está indelevelmente associada à Dieta Mediterrânea – património imaterial da humanidade (UNESCO, 2013). Portugal é o país com maior número de vinhas velhas, 14 regiões Demarcadas e 35 indicações geográficas protegidas, de grande valor enoturístico. Mantém a vocação exportadora e é “Embaixador” da marca Portugal para mais de 150 países, num valor de 926 M€ de exportações (2021), que representam 11% das Exportações do Sector Agroalimentar.

Somos o 3.º País do Mundo com maior variedade de Castas (à frente de França e Itália) e reconhecidos como um país de Vinhos únicos, sendo possível fazer vinho de uma lista de 350 castas, das quais 261 castas autóctones! Em 2021, o sector representou 2,7% do PIB, 3,4% do emprego e contribuiu com 1,9% da Receita Fiscal. A maioria dos fornecimentos do sector são produzidos em Portugal (92%), alavancando fortemente a economia portuguesa e já sob referenciais de sustentabilidade em compromisso com os ODS/Agenda 2030 da ONU.

Que a crise actual seja vista como oportunidade de repensar este fantástico sector, permitindo que a sua preponderância continue a ganhar “Novos Mundos ao Mundo”!

Filipa Melo de Vasconcelos escreve de acordo com a antiga ortografia

Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.