1 Há uma semana, a procuradora-geral da República justificou publicamente os atrasos verificados no caso chamado “Tutti Frutti”, uma investigação iniciada há quase sete anos, com a “falta de recursos”.

O argumento não é novo e, se olharmos para a realidade dos recursos do Estado desde há muito, serve para justificar insuficiências em todo e qualquer serviço público. A “falta de recursos” afeta a educação, a saúde, os transportes, os serviços de segurança… Assim, argumentar que há falta de recursos na justiça é o mesmo que nada acrescentar ao que todos conhecem.

2 E que recursos são esses que “faltam”? Desde logo, e numa investigação, falamos de elementos humanos para realizar as seguintes tarefas:

  • perícias contabilísticas e financeiras
  • analisar conteúdos de telemóveis e realizar cruzamento de dados, das mais variadas fontes
  • pesquisar caixas de correio eletrónico e ambientes digitais com gigabytes e gigabytes de informação
  • ouvir horas e horas de escutas telefónicas e passar o seu conteúdo a texto
  • e analisar dossiers com muita documentação, apreendidos como meios de prova, muitos deles com dezenas de anexos.

Ninguém duvide que, num megaprocesso, para se transcrever escutas, temos que ter pessoas a ouvi-las (muitas pessoas) e a analisar cada minuto de conversa para perceber o que é relevante ou não — há imensa coisa que não interessa para nada, como conversas pessoais ou outras.

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Temos de ter também várias pessoas a analisar milhões de e-mails e os seus anexos armazenados em inúmeros computadores e telemóveis, à procura de conteúdos que interessem, cruzando essa informação com toda a demais.

São precisas, depois, pessoas para fazer pesquisas em conversas de whatsapp e mensagens, com o objetivo de detetar prova relevante e saber o que cada um disse e quando, já para não falar em perícias a dados financeiros e contas bancárias, dispersas por vários bancos, nas quais se necessita de inúmeros peritos para cruzar os dados, um a um, para ver se se detecta algum padrão ou movimento suspeito.

Os profissionais da nossa Polícia Judiciária são, sem dúvida, dos mais competentes a nível internacional, pelo que não se põe em causa o seu esforço e dedicação. Mas não podemos estar a pedir-lhes que façam, com rapidez, aquilo que pode ser (para todos e cada um deles) humanamente impossível.

Já para não falar nos limites do cansaço, e na possibilidade de algum padrão ou elemento importante poder escapar ao olho humano, que nem tudo consegue ver. Ou que, pelo menos, não consegue descobrir com a rapidez que seria desejável.

3 É chegada, então, a altura de trazer a debate uma questão essencial: se o que leva objetivamente mais tempo numa investigação criminal é a análise e cruzamento de dados, o tratamento dos chamados meios de prova, e se é humanamente impossível fazer esse tipo de trabalho num curto espaço de tempo, por que não considerar as vantagens de uma aposta na inteligência artificial para contornar esse obstáculo?

Não estou a dizer que a investigação deve ser feita por inteligência artificial. Nada disso. Estou a questionar o facto de ter de ser um ser humano, com auscultadores aos ouvidos, a ter de ouvir horas e horas de escutas telefónicas e passá-las ao papel; ou então, a passar a pente fino uma caixa de correio eletrónico, ou milhares de mensagens guardadas em telemóveis, para pesquisar o que interessa ou o que não interessa, quando o seu tempo pode muito mais bem ser utilizado na definição das estratégias a seguir e na tomada de decisões, para se chegar a uma conclusão quanto à conclusão de um determinado inquérito.

E, já agora, quantas investigações podem correr o risco de ficar incompletas, seja porque não se deixou de analisar o conteúdo de um telemóvel, por falta de tempo, ou porque se entendeu que os “recursos” (humanos, claro está) deveriam ser mais bem empregues na análise de uma parte da prova, em vez de outra, abandonando assim vias possíveis, já que não havia meios para tudo?

4 Muitos dirão que o fator humano é um elemento essencial, e que se retirarmos esse fator da equação podemos fazer com que se produzam abusos, ou situações incontroláveis.

O que defendo, contudo, não põe isso em causa. É que o essencial do fator humano não está nas horas gastas em transcrições de escutas ou nas pesquisas em computadores, mas sim na tomada de decisões. Por isso é que a tecnologia, como ferramenta, pode ser determinante para focar os recursos humanos onde são verdadeiramente indispensáveis, que é no momento da tomada de decisões e na formulação de conclusões, com base em resultados das pesquisas que, muito mais rapidamente, um computador tem a capacidade de fazer.

5 A inteligência artificial já está a conhecer avanços em todos os domínios. Na saúde, nos transportes, nas telecomunicações. Hoje em dia, temos software que até já é capaz de escrever textos ou mesmo surpreender-nos com arte ou música. Há uns anos diríamos que tal seria impossível.

Já ninguém consegue parar esta tendência e, por isso, ou nos adaptamos a ela, ou então corremos o risco de nos tornarmos obsoletos, nas nossas profissões, sejam elas quais forem.

Em alternativa, temos uma solução muito simples, que é a de continuar a queixar-nos da “falta de recursos”. Nesse caso, então, que toda a gente se habitue a megaprocessos sem fim à vista, e ao uso de argumentos de que é “humanamente impossível” concluir as investigações ou proferir decisões em tempo útil.

Porque essa é a verdade de La Palice, se só nos servirmos de recursos humanos.

Infelizmente, a solução mais cómoda é sempre a de aumentar os prazos de prescrição, para dez, quinze ou vinte anos, em vez de encarar as verdadeiras razões dos atrasos e evitar que se perpetuem.

A justiça, contudo, para ser eficaz, tem de se fazer sentir rapidamente. Quer seja para encontrar culpados, quer seja para evitar que pessoas inocentes continuem com uma “espada” em cima das suas cabeças, enquanto duram as investigações.

Todos ganham com celeridade na justiça: suspeitos e vítimas, mas também advogados, polícias, procuradores e juízes. E o cidadão em geral.

De acordo com informação pública, estão reservados fundos do PRR – Plano de Recuperação e Resiliência para que seja implementado um conjunto de importantes reformas e investimentos, destinados à modernização e digitalização da justiça. Mas e o investimento em ferramentas e tecnologias para tornar mais ágeis as investigações criminais, nomeadamente com recurso à inteligência artificial para análise e tratamento dos meios de prova, para quando está previsto?