Texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ.

O título evoca uma conhecida obra de Nietzsche, sem dúvida um dos pensadores ocidentais mais críticos em relação à centralidade que os humanos se atribuíram a si mesmos, no conjunto da realidade. Genericamente, o que está em jogo é o denominado antropocentrismo, típico de uma certa forma de humanismo. E, assim como Nietzsche levantava fortes suspeitas em relação à validade desse humanismo, também hoje a mesma tradição humanista é colocada em causa por muitos pensadores e ativistas, marcando cada vez mais o espaço público contemporâneo. Fará isso sentido, na perspetiva da fé cristã? Uma resposta a esta importante questão implica algumas distinções.

Antes de tudo, é necessário compreender suficientemente o perfil do humanismo que agora é colocado em causa. De uma forma muito genérica, podemos fazê-lo corresponder a um perfil do humano que foi construído segundo um certo paradigma denominado moderno. O humano considerado como centro do mundo seria, antes de tudo, o humano que se opõe, como único sujeito da realidade, a toda a realidade não humana, considerada como mero objeto inerte, disponível para a intervenção do sujeito. Correspondentemente, o sujeito seria considerado proprietário absoluto desse objeto, podendo dele fazer o que desejasse; mesmo quando a realidade não-humana, enquanto natureza, oferecia resistência e parecia mesmo muitas vezes dominar o sujeito, ameaçando-o, este foi resolvendo a situação, com recurso ao desenvolvimento exponencial dos meios tecnológicos, até parecer ter conseguido completo domínio do mundo exterior adverso.

Este paradigma, que considera os humanos como proprietários do resto do mundo, estende-se à relação entre os humanos, acabando por definir uns como sujeitos e outros como objetos. Terá acontecido isso na relação dos europeus com os habitantes do resto do mundo; terá acontecido na relação dos homens com as mulheres; terá acontecido na relação dos humanos brancos com os humanos de outras cores. Por esse caminho, o ideal de ser humano estabelecido pelo humanismo moderno foi, tendencialmente, o de um sujeito poderoso, que domina o mundo; a esse ideal corresponderia, da forma mais excelsa, o humano europeu, masculino e branco.

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Este perfil de antropocentrismo – que o Papa Francisco denomina, na Laudato si’, antropocentrismo tecnocrático – terá conduzido, por caminhos mais ou menos complexos, aos diversos colonialismos, sexismos, racismos e mesmo à desmesurada exploração da natureza, com as consequências ecológicas que todos conhecemos, por mais diversas que sejam as interpretações.

É precisamente na relação a este perfil de humanismo que se tem desenvolvido certas reações reflexivas e pragmáticas, as quais pretendem desconstruir as construções modernas. O perfil dessas propostas assume-se, em grande parte dos casos, como claramente anti-humanista ou, pelo menos, pós-humanista. Não se trata, portanto, do denominado pós-humanismo tecnológico (ou transumanismo), o qual, em realidade, dá continuidade ao humanismo moderno, pretendendo levar a tal extremo o desenvolvimento das capacidades humanas que transformará o humano não apenas em senhor do mundo (incluindo de outros humanos), mas em senhor de si mesmo e do seu futuro, enquanto espécie, com a imortalidade no horizonte. Pelo contrário, o pós-humanismo denominado crítico pretende recusar explicitamente o estatuto especial e privilegiado do humano no conjunto da realidade, revertendo assim as pretensões modernas.

Assumindo configurações próximas aos denominados estudos decoloniais, feministas e antirracistas, assim como à base teórica de muitos movimentos ecológicos, estas formas de pós-humanismo pretendem afirmar a inserção dos humanos na rede de relações que inclui todos os agentes planetários, com especial relevo para o conjunto dos seres vivos. Para isso, na maior parte dos casos, assume-se a realidade contínua da vida como base de todos os existentes, nas suas diversas configurações. Nesse sentido, as diferenças que possa estabelecer-se entre os seres vivos serão secundárias relativamente à sua pertença comum ao processo vital que tudo atravessa, como fluxo autorregulado e autopoiético. Trata-se, portanto, de um biocentrismo (ou zoocentrismo) fundamental, ou de um vitalismo monista de base, que relativiza todas as diferenças entre humanos e não humanos.

Como avaliar este processo desconstrutor, na perspetiva do que poderíamos denominar antropologia bíblica? Antes de mais, há que compreender e acompanhar o processo de desconstrução de certo humanismo moderno, pois o seu ideal de ser humano é altamente problemático, precisamente já a partir de uma leitura judaico-cristã do mundo. Nesse sentido, há uma certa forma de crítica ao antropocentrismo que pode e deve ser assumida pelo crente cristão – como fica claro, aliás, na Laudato si’.

Mas é altamente questionável que a solução seja uma redução monista e vitalista de tudo a um processo contínuo, promovido por uma abrangente e anónima força vital. Se assim acontecesse, como poderíamos nós responsabilizar os humanos fosse pelo que fosse? Mesmo não pretendendo ser criaturas privilegiadas, no interior da Criação, muito menos pretendendo ser proprietários de toda a realidade, a antropologia bíblica permite-nos pensar numa certa ideia de “eleição” dos humanos para uma missão específica. Essa eleição resulta do estatuto livre dos humanos, que podem responder a interpelações determinadas (com origem em Deus, segundo a perspetiva crente), assumindo responsabilidade por outros humanos e outras criaturas. Esse estatuto é que torna os humanos sujeitos responsáveis por outros – não sujeitos proprietários de objetos. E essa é a raiz da liberdade e da subjetividade humanas. A articulação dessa responsabilidade realiza-se, concretamente, no cuidado em relação a todos os outros, humanos ou não. O que nos constitui, enquanto sujeitos, será precisamente o facto de sermos chamados a responder, cuidando do outro. Essa vocação é que nos distingue – e que distingue cada um de nós de todos os outros e de tudo o resto, pois ninguém pode responder no lugar de ninguém.

Esta consciência de “eleição”, com base numa exigência específica, não invalida mas antes fundamenta o facto de nos encontrarmos sempre inseridos numa rede de relações, pois é aí onde a exigência e a resposta acontecem. Por outro lado, esta perspetiva também não invalida a consciência de que somos todos dependentes de todos e de tudo, não podendo pretender construir uma existência separada do resto do mundo. Poderíamos, pois, falar de uma antropologia pós-antropocêntrica. Mas não deixa de ser antropologia e de exigir aos humanos algo que não pode exigir aos restantes habitantes do planeta. Tratar-se-á, por isso, de uma espécie de humanismo, ou um “novo humanismo”, uma vez que se reconfigura perante desafios sérios, que os processos contemporâneos – nomeadamente o desenvolvimento da consciência ecológica e transcultural – colocam em palco. Mas nenhum pós-humanismo nos autoriza a fugir a uma irrecusável responsabilidade, por mais exigente que seja.