A casa onde mora o personagem que faz de director da Petro Brasil na série “O Mecanismo” de José Padilla, diz-nos muito sobre o que é hoje o Brasil.  Se voltarmos atrás, em lado algum as aspirações sociais do projecto moderno foram tão ambiciosas como no século XX brasileiro.  O sonho do jovem “prefeito-furacão” de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, e do seu delfim Oscar Niemeyer, feito de obras iniciáticas como a Pampulha (1940-44), seria não apenas materializado na cidade de Brasília, mas em numerosos edifícios por todo o Brasil.  É notável o brilhantismo de arquitectos como Lúcio Costa, Affonso Eduardo Reidy, João Filgueiras Lima (Lelé), Lina Bo Bardi, Oswaldo Bratke ou Vilanova Artigas, bem como toda a elegância e economia do moderno anónimo, no modo como foi absorvido de forma qualificada no tecido urbano de Porto Alegre a Minas Gerais.  O trágico “país do futuro” do judeu austríaco Stefan Zweig, que viu a exposição “Brazil Builds”, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) de 1943, elevá-lo para sempre a potência mundial da arquitectura, parece agora atravessar uma profunda crise de identidade.

Com o colapso da ditadura militar em 1985, a emergência da democracia, paradoxalmente, mergulhou o Brasil numa diatribe pós-modernista de influência norte-americana sem precedentes. Quem conhece o skyline Paulista bem sabe como ficou para sempre marcado com os seus arranha-céus coroados em estilo “châteaux de la Loire” ou “rainha da sucata”.  Toda a elegância, toda a subtileza, todo o rigor cultivado por gerações de arquitectos modernistas exemplares, perdeu-se a favor de uma adesão voluntarista aos clichés do mercado imobiliário. Durante quase duas décadas não tivemos notícias da arquitectura brasileira, excepto de um pequeno grupo resistente acantonado em torno de Paulo Mendes da Rocha e do seu bairro do Bixiga, que incluía jovens arquitectos como os UNA ou MMBB e de onde, de quando em vez, se acendia um fogo-fátuo para nos revelar uma escola-piloto ou um centro social nas favelas Paulistanas.

Do outro lado da cidade, na luxuosa Rua Oscar Freire, o projecto de um boutique hotel (1996-2003) para a família Fasano pelos arquitectos Isay Weinfeld e Marcio Kogan inaugurava um capítulo alternativo da arquitectura brasileira com uma linguagem que procurava domesticar o lado revolucionário do Béton brut brasileiro, cruzando-o com o exotismo vintage de grandes designers como Sérgio Rodrigues e Joaquim Tenreiro.  Num Brasil sob a pressão de um capitalismo voraz, este cosmopolitanismo anti-ideológico ou, se quiserem, esta ideologia “beautificada” teve sucesso imediato.

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Para o filósofo francês Alain Finkielkraut, o modernismo define-se pela tentativa sistemática de libertar o ser humano do êxtase da cosmovisão medieval e emancipá-lo dos significantes transcendentais, em movimentos que vão desde a Contra-reforma ao Iluminismo, passando pela luta contra os totalitarismos do século XX.  Também na arquitectura, reconhecemos que a trajectória do moderno e dos seus manifestos, de Bruno Taut a Le Corbusier, dos CIAM aos Situacionistas, procurou sempre encontrar soluções para problemas prementes da sociedade, mais do que responder a questões puramente estéticas.

Se acreditarmos que a arquitectura pode ainda reclamar esse papel social e ético, como a arte o faz (ou anuncia fazer), não é possível isolar certas tipologias dos contextos altamente tóxicos em que estão inseridas.  Daí que seja difícil não vermos as moradias dos milionários de Kogan construídas hoje em plena duna primária, na mata atlântica brasileira, ou sob o calor caribenho de capitais expatriados para Miami, como uma extensão estética, ainda que talentosa, do “Mecanismo”. Num país fustigado por níveis de corrupção que o aproximam vertiginosamente da noção de “estado-falhado”, esta exibição de afluência sem limites não tem como não nos deixar perplexos. É um velho debate, e é certo que o dilema dos arquitectos da Oscar Freire nos aproxima a todos, porque ‘clientes são clientes’ e creio que poucos os recusariam.  Mas fica no ar a dúvida se esta remissão comercial da poética do moderno brasileiro a uma linguagem ostensiva de ripinhas de madeira, vãos colossais e garagens de vidro para Ferraris de colecção, não empobrece essa herança social como um todo.