A questão da reparação de acidentes de trabalho perante situações de violência, exercida fora do local de trabalho, não é novidade. Com efeito, remontando ao ano de 2002, relembre-se o caso de uma trabalhadora que, uma vez terminada a sua jornada laboral diária, e durante o seu percurso de regresso a casa, foi vítima de um assalto por “esticão” e que, ao tentar resistir, acabou por ser arrastada e projetada para debaixo de uma viatura, que lhe esmagou o peito e lhe tirou, entretanto, a vida.
À semelhança da dúvida que outrora surgiu a respeito de situações como a descrita (a qual foi considerada, pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 2007, como acidente de trabalho), antevemos um leque de tantas outras situações de zona cinzenta com que os Tribunais se depararão, mormente quando a evolução dos modelos de trabalho assume uma velocidade em muito superior aos impulsos legislativos.
Ora, os modelos de prestação e conformação da atividade laboral ganharam, com a Covid-19, uma nova dimensão, em que se regista, de forma notória, um recurso crescente ao regime de teletrabalho.
O conceito tradicional de local de trabalho foi, naturalmente, alterado, passando a residência do trabalhador a integrar tempos de repouso e de trabalho e em que, muitas das vezes, não se descortina o início de um e o final de outro.
No âmbito desta realidade, já começaram a surgir casos paradigmáticos que passaram a ser integrados na noção de acidente de (tele)trabalho e que até então estavam associados a habituais incidentes domésticos. Pense-se na situação da queimadura causada por um café consumido na cozinha de casa ou na queda ocorrida entre o quarto e a sala.
Mas casos ainda mais obtusos poderão existir e com um impacto que determinará especiais cautelas por parte das empresas e das seguradoras. Nesse leque de hipóteses inserem-se, segundo se crê, as lesões causadas por terceiros durante um assalto levado a cabo nas residências dos trabalhadores, nomeadamente, se esse assalto ocorrer durante o horário de trabalho (em regime, portanto, de teletrabalho).
Assim, se num modelo tradicional de prestação de atividade, em que o acidente ocorre na empresa, é analisada a eventual violação de normas de segurança pelo empregador ou a eventual negligência grosseira do sinistrado na falta de verificação de procedimentos, também no modelo de regime de teletrabalho não poderão ficar esquecidos estes procedimentos e inerentes obrigações.
Do lado do empregador, existe, independentemente do modelo de trabalho, o dever de assegurar ao trabalhador condições de segurança e saúde em todos os aspetos do seu trabalho, bem como zelar pelo exercício da prestação laboral em condições de segurança, o que determina, entre o mais, a identificação de riscos previsíveis e a consequente implementação de medidas para remover os mesmos.
Tanto num plano “interno” (aqui se considerando o interior da residência, nomeadamente o concreto local em que o trabalhador prestará a sua atividade de forma remota e onde, na maioria das vezes, terá o seu computador e rede de acesso devidamente instalados), como num plano externo (na zona externa de acesso à própria residência, em que se integram, entre o mais, portas, janelas, varandas e garagem), a avaliação será sempre possível, desde que haja anuência do trabalhador e desde que a visita seja precedida de um aviso com uma antecedência superior a 24 horas. Aliás, o empregador pode ainda solicitar ao serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área do trabalho uma ação de fiscalização do cumprimento de normas reguladoras de segurança e saúde no trabalho. Sucede que, mesmo nesse caso, o trabalhador se pode recusar a ser alvo de tal visita.
Tanto nas situações de recusa do trabalhador, como nos casos em que a dimensão da empresa e até as distâncias envolvidas não permitem nem justificam esta análise individual de cada residência, será, no mínimo, indispensável que se adote uma política de sensibilização e de auto-responsabilização do próprio trabalhador, no sentido de recomendar e até mesmo exigir, tanto por meio de regulamento interno como através de acordo (sempre que possível), que este adote todas as medidas para manter o seu posto de trabalho e zonas de acesso/circulação devidamente desimpedidas, bem como determinar que todos os elementos de risco sejam removidos (tais como queda de objetos ou zonas de acesso devidamente protegidas)
A este respeito, imagine-se o caso de um trabalhador que pretende desenvolver a sua atividade em regime de teletrabalho, mas a partir de uma residência que se situa num rés-do-chão e em que as janelas não têm qualquer sistema de bloqueio.
Em caso de assalto com violência exercida sobre o trabalhador, e na eventualidade de o empregador não ter feito uma análise e remoção de risco, não poderá ao último ser assacada responsabilidade na reparação das lesões daquele?
Cremos que esse risco existe, nomeadamente, se se fizer prova de que foi a própria inobservância das regras de segurança a causa adequada para a produção, ainda que de forma indireta, das lesões ora sofridas pelo acidente, o que geraria, nos termos legais, uma responsabilidade agravada a cargo do empregador, com um âmbito e extensão superiores à habitual responsabilidade que recai sobre as seguradoras.
Tratando-se de acidente causado por terceiro (neste caso assaltante), claro está que o dever de reparação poderá recair sobre o último, mas tal reparação poderá surgir em momento ulterior (por força de regime de sub-rogação legal) ou até nem sequer se concretizar (pela falta de identificação do assaltante).