Comecei por chorar todos os dias no carro, à ida para o trabalho, à vinda do trabalho. Depois vieram as dores de cabeça que não passavam, as enxaquecas que duravam dias. Um dia dou por mim a dizer “eu já venho, vou só ali ao hospital, porque não estou a sentir-me bem”. Assim, com esta ligeireza.

Chego à triagem a dizer ao enfermeiro: “Por favor ajude-me, não consigo respirar, o peito está a fechar-se e a doer, estou a ter um ataque cardíaco”. Foi o primeiro de muitos episódios de ansiedade, e foi daí que ganhei coragem para ir a uma consulta de psiquiatria. Não me sentia bem, havia qualquer coisa errada comigo, precisava de ajuda.

A primeira consulta, hoje, relembrada à distância, parece uma tragicomédia: oscilava entre rir e chorar, entre o não me sinto muito bem mas faço tudo o que devo. Devia ter percebido que algo não estava bem quando o médico me perguntou quantos dias de férias de anos anteriores tinha, sem nunca me perguntar sequer “se tinha”. Respondi, cheia de orgulho, “mais de duas dezenas de dias de férias de anos anteriores e mais de uma dezena de folgas por tirar”. Quando me perguntou quando tinha sido o ultimo fim-de-semana em que não tinha trabalhado, não me lembrava. Foi nesse dia que soube que era workaholic, uma pessoa que trabalha compulsivamente e excessivamente.

Nunca me tinha visto assim, porque sempre dei os jantares às minhas filhas, chegava a horas aos infantários e às escolas, dava os banhos, tratava da roupa e tinha tudo controlado. Mas não percebia que tinha, compulsivamente, ano após ano, dias de férias por tirar dos anos anteriores, trabalhava todas as noites e aos fins-de-semana, arranjava a desculpa que “era para organizar a semana” ou “despachar trabalho”. Essa não era a minha visão de workaholic, mas essa era (e sou) eu.

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Saí com o diagnóstico de burnout e depressão funcional, que pode ser definido como “stress crónico” ou “uma resposta à pressão emocional crónica resultante do envolvimento intenso com outras pessoas no meio laboral”, com medicação e com recomendações para tudo (desde arrumar o computador em casa, exercícios para o cérebro e exercício físico, sair de casa para andar ou ainda tempo para tomar o pequeno almoço). Nesse dia falou-se pela primeira vez que eu precisava de abrandar, de parar. Mas não dei ouvidos.

E, como na canção do António Variações, “quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga”. Chegou o dia em que não me mexia, não conseguia andar, não conseguia conduzir, não conseguia falar. Só chorava, com a certeza de que o corpo colapsou e que já não aguenta mais. Foi nesta altura de sobrecarga, desgaste, de exaustão física e emocional, que parei finalmente, porque o meu corpo parou. Entrei de baixa e dormi 15 dias seguidos, sem qualquer noção do tempo.

Fui mãe aos 22, 26 e 42 – entre a mais velha e a mais nova são vinte anos de diferença. As minhas filhas, tendo a mais nova seis anos no início deste processo, foram sempre o maior orgulho da minha vida, mas, a seguir, tinha dedicado toda a vida à minha profissão, e deixei que isso me definisse enquanto pessoa.

Eu, que aos 49 anos e no ano em que fazia 50, me demito da função de Diretora, sem plano B, encarar que eu não era a supermulher que resolvia tudo e os problemas de todos, que eu não ia ser CEO aos 50 anos, olhei o fracasso de frente. Tirando as dores físicas, a minha maior dor foi resolver o meu ego, e reescrever a perceção que tinha do que era ser bem-sucedida. Parar de um dia para o outro é complicado, porque está sempre associado a um falhanço, e se eu paro alguém terá que ficar com o meu trabalho. Em casa, alguém terá que ficar com as minhas responsabilidades.

Há um sentimento de vergonha, de culpa e de frustração que nos acompanha, e que também tem que ser desconstruído. Passei também pela humildade, pelo medo e pela vergonha de contar ao meu marido e às minhas filhas. Disse-lhes que estava (muito) doente e incapaz de fazer algumas coisas que fazia. Como é que se explica a uma criança de seis ou sete anos que a mãe está muito triste, mas não sabe muito bem porquê? O apoio de todos foi inestimável, com o espaço que me deram para me poder curar, no meu tempo. Durante meses seguidos não fiz um único jantar em casa, e esse também foi um ato de amor.

A medicação (muita ao início, praticamente inexistente hoje) ajudou-me a encontrar o equilíbrio mental que necessitava. A psicoterapia (que mantenho) deu-me ferramentas para reestruturar a minha vida profissional e familiar, as minhas prioridades, e para uma coisa simples: saber dizer “não”.

Um ano e meio depois, dou valor a não ter ficado com sequelas cognitivas – fiquei com sequelas na memória, existem dias da minha vida que ficaram apagados — e ainda faço exercícios que treinam o cérebro. Não basta parar, é preciso mudar de hábitos, mudar o contexto laboral. É possível Fazer unfollow na vida real como nas redes sociais e eu recomendo vivamente.

Tomei consciência de que não tenho a vergonha de falar deste processo, da mesma maneira que ninguém tem vergonha de partir um braço. Ter parado, tomado decisões difíceis e ter continuado foi o maior ato de coragem, amor, autocuidado e autopreservação que poderia ter tido para comigo e para com a minha família.

Esta condição faz parte da mim e tenho que viver com ela, como se fosse uma doença crónica. Sei identificar os sinais de alarme e consigo agir antes de algum episódio, mas continuo sem ter o tempo livre pessoal que devia e do qual preciso muito. Mas tudo isto é uma maratona, e o caminho faz-se caminhando.

Mónica Cabral Alves tem 30 anos de experiência em IT e telecomunicações. Foi gestora de produto, gestora de marca, marketing manager, diretora de marketing e diretora comercial. Há nove anos que se dedica aos media e estuda modelos de negócio das agências de notícias. Atualmente chefia o departamento comercial da agência LUSA.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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