Sempre fui aluna de nota 5, mas no décimo ano comecei a sair disparada a meio das aulas. A vontade de chorar aparecia de forma descontrolada. Lembro-me de correr para as casas de banho e vãos de escada e esperar que a pata de elefante se levantasse do meu peito. Chorava, acalmava, respirava fundo e regressava à secretária, vermelha de vergonha.

Desde muito cedo que a doença mental fez parte da nossa família. Uns dias piores, outros melhores. Ao crescer, a palavra chave era “combate”. Eu e o meu irmão usávamos a armadura porque nunca sabíamos o que nos esperava no regresso a casa. Mais tarde, de soldada passei a cuidadora. A minha vida continuava, mas apesar de mim. Era quase como se houvesse dois caminhos paralelos: o de cuidadora e o da Raquel, uma das melhores alunas do curso de Direito do Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa. Pelo meio, o choro parou, instalou-se a apatia, a falta de entusiasmo. Tomava a iniciativa de coisas que deixava pelo caminho. Fugia dos meus próprios jantares de aniversário.

Ao contrário da maior parte das narrativas, no entanto, sempre fui procurar ajuda. Lembro-me de sair de uma aula na faculdade, pegar no meu cartão da ADSE e ir marcar uma consulta com um psicólogo porque o sofrimento da depressão era demasiado. Eu não queria sentir-me assim. Estava disposta a tomar e a experimentar tudo, só para deixar de sentir aquela dor de barriga constante e a insegurança que prendia o meu olhar ao chão.

Quando comecei a trabalhar como advogada as coisas pioraram. E depois melhoraram. E depois pioraram outra vez. Estava numa cidade nova, com tudo por descobrir. O F. C.  Porto era tricampeão e o céu azul em Lisboa era mais intenso. O trabalho era duro, mas muitas vezes acabava na recompensa do Suave, no Bairro Alto. Havia tempo para mim, concertos, sessões na Cinemateca, amigos que se tornavam a família longe de casa. Fazia terapia, tomava antidepressivos, até fazia exercício. Mas as ondas depressivas não deixavam de ir e vir.

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Havia dias em que, mesmo depois de dormir 12 horas, não me conseguia levantar. Nem para ir à casa de banho. Aquela distância de dois metros entre a minha cama e a sanita parecia-me desmesuradamente impossível, tal qual Evereste. Pedia paciência à bexiga e ficava na cama. Noutras noites, não pregava olho. Tinha sempre a companhia dos livros e da música dos “meus suicidas”, o Nick Drake, o Elliot Smith, o David Berman. Escrevia muito.

Sentia-me exausta o tempo inteiro.

A doença afetou o meu trabalho. Mas, curiosamente, também o tornou mais interessante. Não me imaginava sempre sob o jugo dos prazos e da pressão constante de ser advogada. A minha concentração oscilava. A produtividade, apesar da competência, decaía. E, na verdade, nunca fui capaz de manter uma fachada bonita quando me sentia a morrer por dentro.

Portanto, fui trabalhar pelo mundo. Passei por Timor-Leste, Nova Iorque e Moçambique. Experimentei diferentes tipos de organizações, ensaiei diferentes “eus”, viajei muito. Mas a sombra era pesada e eu arrastava-a comigo. Às vezes maior, outras vezes mais pequena, mas colada a mim. Invariavelmente, havia dias em que me deixava consumir, ficava na cama doente e dela não saía.

Ao longo de todo este percurso, era acompanhada. Fiz de tudo: drama terapia, psicanálise, terapia de grupo. Semanalmente, na minha agenda de trabalho, havia uma rubrica de “fisioterapia”. Lembro-me de ter sido numa sessão de grupo que me comecei a sentir “normal”. No início, ficava calada, mas revia-me nas partilhas dos outros e deixava de ser aquela pessoa que “não passava do potencial”.

Tomei e fiz o desmame de vários medicamentos. Uns resultavam durante uns tempos. Outros não. Até que passaram a resultar de vez. Tinha descoberto o meu “shaken not stirred”, a fórmula certa de cocktail, com a ajuda do meu psiquiatra. O estigma fez-me hesitar…ia mesmo ter de tomar comprimidos para a vida toda? Enfrentei-o, reuni todo o (auto-)conhecimento que tinha recolhido nos vários tipos de acompanhamento e nunca mais olhei para trás.

Hoje, entre a medicação e psicoterapia, a minha vida é outra. É uma gestão diária. Os básicos (sono, nutrição, movimento) estão sempre cobertos, nunca são descurados. A sombra continua lá, mas escondida, já não deixa lastro. E quando tenta deixar, eu reconheço-a antes e consigo atenuar os seus efeitos.

Recentemente, descobri que falar abertamente me tornava mais forte. A vergonha da vulnerabilidade dissipou-se e, passo a passo, sinto que consigo ajudar outros e contribuo para derrubar a cultura do sofrimento em silêncio.

Faço-o através do meu trabalho com a Direito Mental, uma associação criada por advogados para a comunidade jurídica portuguesa, que trabalha, essencialmente, a quebra do estigma nestas profissões time-intensive. Através de ações de sensibilização, apoiamos organizações e indivíduos e, neste momento, está em curso um estudo com a Universidade do Minho e a Prochild Colab (aberto a profissionais do Direito), que vai procurar tirar uma fotografia ao estado atual da saúde mental da comunidade jurídica. Os resultados serão apresentados a 10 de outubro – Dia Mundial da Saúde Mental – no teatro São Luiz, em Lisboa.

Faço-o também através do trabalho que desenvolvo em paralelo nestas áreas junto de outras indústrias. A 4 de abril, por exemplo, na escola de programação 42 Lisboa, apresentarei “Darkness and Light: The Journey of a Startup Founder”, uma ação de sensibilização de saúde mental e bem-estar para fundadores de startups.

A atriz Carrie Fisher, a minha Leia e princesa eterna, deixou vários testemunhos de viver com doença mental. Um dos meus favoritos é este: “People relate to aspects of my stories and that’s nice for me because then I’m not all alone with it. I do believe you’re only as sick as your secrets. If that’s true, I’m just really healthy.”[As pessoas relacionam-se com aspetos das minhas histórias e isso é bom porque depois não me sinto sozinha. Acredito que só estás tão doente quanto os segredos que guardas. Se assim for, neste momento, sou só saudável.]

É só isto. Agora, sou saudável.

Raquel Sampaio é co-fundadora e diretora Executiva da associação Direito Mental. Advogada há quase vinte anos, é especialista em regulatório, sobretudo nas áreas de Contratação Pública, Ambiente e Energia. Trabalhou em Timor-Leste, Nova Iorque e Moçambique e, mais recentemente, tem-se dedicado às áreas da Sustentabilidade e Impacto Social.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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