Tenho 88 anos e sou cuidador informal da minha mulher, três anos mais nova do que eu. Vai fazer em Junho um ano que me venho ocupando das tarefas específicas diárias e permanentes de cuidador dela, a mulher dos meus filhos, com quem estou casado faz mais de 60 anos, que nunca deixamos de nos amar, nos bons e nos maus momentos da vida, nas alegrias e nas tristezas, quando tudo nos parece um mar de rosas e quando nos sentimos destroçados e parece que o mundo desaba sobre as nossas cabeças.

Dia 4 de Junho de 2023, um domingo. Tínhamos acabado de almoçar e encontrávamo-nos na sala a ver um filme na televisão, a minha mulher no seu cadeirão preferido e eu no sofá. A certa altura ela puxa para si o andarilho e, apoiando-se nele, vai à casa de banho. A meio caminho de regresso à sala, vejo-a subitamente imobilizar-se, uma cor pálida tomar-lhe a cara, e, com a cabeça tombada para trás, soltar uns sons roucos de dolorida sufocação, como se não conseguisse respirar.

Corri para ela, agarrei-a, e, indo arranjar forças não sei onde, consegui levá-la em braços, a ela e ao andarilho, para junto da janela mais próxima. Agarrados um ao outro, com os corações batendo acelerados, ligo ao 112, e no segundo seguinte uma voz do outro lado atende. Resumi, numa frase apressada, o que acabara de se passar com a minha mulher, a voz, sempre calma e segura, perguntou-me onde morava, fez-me mais umas duas ou três perguntas, recomendou-me que a mantivesse numa posição confortável, com a cabeça ligeiramente inclinada para trás, e que ia imediatamente enviar uma ambulância.

Não tive de esperar mais do que dez ou quinze minutos pela chegada da ambulância. A equipa de paramédicos fez rápida e eficientemente o seu trabalho, aplicaram à enferma uma máscara de oxigénio, levaram-na de maca para a ambulância e conduziram-na rapidamente para o hospital de Angra, sendo-lhe ali feita imediatamente uma série de exames médicos, que culminaram com o seu internamento no serviço de Pneumologia, algaliada, ligada a um aparelho de oxigénio, numa situação muito delicada.

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No dia seguinte, a minha filha, enfermeira, chegou de São Miguel, para se inteirar in loco da situação da mãe. O Gonçalo, médico no Porto, também se mostrou muito preocupado e ligou imediatamente a saber o que se passava com a avó, aconselhando-me a mim, que alguns dias antes havia adoecido com covid-19, a que não saísse de casa enquanto não estivesse completamente restabelecido.

Só no dia 8, quinta-feira, me senti em condições de a ir visitar. A visita era das 18h00 às 20h00. Quando entrei no quarto, composto por duas camas e casa de banho privativa, a Anita estava a dar o jantar à mãe, e a primeira coisa que me veio à memória foi a lembrança dos tempos em que era a mãe a dar à Anita-bebé a papinha na boca, tanto a ela quanto ao irmão gémeo, o Luís, em simultâneo, uma colherada a um, uma colherada ao outro. A vida é também isto, hoje damos nós a comida à boca aos nossos filhos, amanhã serão eles a fazer-nos o mesmo a nós.

A Maria Teresa encontrava-se muito debilitada, fora-lhe diagnosticada uma pneumonia que lhe afectara drasticamente os pulmões e o seu estado geral de saúde, já de si suficientemente complicado. Dei-lhe um beijo, peguei-lhe na mão, perguntei-lhe como estava, ela sorriu, e depois, inclinando-me sobre a cama, ela fez-me, em sumida voz, algumas perguntas que denotavam alguma desconexão.

Durante a visita do dia 14, quarta-feira, a enfermeira chamou-me à parte para me comunicar que a Maria Teresa iria ter alta no domingo ou na segunda-feira seguinte, e que, entretanto, eu teria de preparar um quarto para a receber, dotado com uma cama articulada, de preferência eléctrica, um banco sanitário, uma máquina BIPAP de oxigénio e respectivas máscaras, e, além disso, a indispensabilidade de contratação de uma equipa profissionalizada de cuidadoras formais, um fisioterapeuta… eu sei lá mais o quê. Apanhado totalmente desprevenido, não estava nada à espera dum choque destes, isto foi para mim como se tivesse levado um tremendíssimo murro no estomago, que me deixou atordoado e perplexo.

A alta foi-lhe dada no dia 18, domingo, e a Anita chegou de novo nessa mesma tarde de Ponta Delgada, para estar junto da mãe nos primeiros dias, os mais difíceis e de adaptação. A Maria Teresa suporta mal a incomodidade da máscara de oxigénio e tende a arrancá-la da cara, pelo que é preciso toda a atenção e uma vigilância constante para voltar a recolocar-lha.

A equipa de cuidadoras formais trata diligentemente das suas tarefas específicas, higiene pessoal, cuidados com o corpo, verificação do possível surgimento de alguma furtiva ferida que necessite ser imediatamente tratada, mas, claro, terminada a incumbência, que não vai além de quinze a vinte minutos, saem para irem atender outros idosos doentes.

Quem fica cá, quem permanece sempre junto da doente, de dia e de noite, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, de segunda a domingo, sem folgas, sem fins-de-semana, sem feriados, sem férias, sem tempo para mim, sou eu, o cuidador informal, somos nós, os cuidadores informais, é o marido ou a esposa, ou o filho, ou o familiar mais próximo. E não é fácil cuidar e tratar de uma pessoa ACAMADA. Que a vimos a debilitar-se lentamente, a definhar aos poucos, a não poder ir à mesa connosco tomar uma refeição, sentar-se na sala a ver televisão, a conversar ou a ler um livro, jantar a casa do filho, dar um curto passeio, deslocar-se sequer pelo próprio pé à casa de banho. O seu mundo é a cama, somente a cama a que se encontra agarrada, com o corpo imóvel na mesma posição, esperando que mão amiga e carinhosa a venha sentar na cama articulada, mudá-la de posição, voltá-la para o outro lado, servir-lhe as refeições líquidas à boca (não consegue engolir alimentos sólidos), pacientemente, carinhosamente, colherada a colherada, conversando sobre trivialidades, sobre boas recordações, mostrando boa cara, ser gentil, e nos momentos em que não há nada para dizer, segurar-lhe pacientemente na mão, afagar-lhe suavemente o cabelo, sussurrar-lhe que se ama e que as coisas hão-de acabar por se compor.

Não é fácil mudar uma fralda com cocó e chichi; não poder mais dormir com a porta do quarto fechada; estar em permanente alerta para os sinais de ruído estridente provocado pelo arrancamento da máscara de oxigénio e saltar da cama para ir voltar a colocá-la e ajustá-la como deve ser; ter a paciência de Jó para dar às refeições a medicação à paciente, levar-lhe à boca os comprimidos, um a um, que ela em crescendo vai sentindo maior dificuldade em engolir. Ficar-se voluntariamente prisioneiro entre quatro paredes, apenas se podendo sair de casa para ir num repente à farmácia, fazer uma compra ou tomar um café. Como facilmente se pode imaginar, é muito, muito penosa e atribulada a vida de um cuidador informal. E quando já nos pesam em demasia os longos 88 anos de vida que carregamos, aumentam de sobremaneira as dificuldades.

Existem em Portugal 827 mil cuidadores informais, que apesar do cansaço, sofrimento psicológico e solidão permanentes, resistem à tentação ligeira de lançar os seus entes queridos num qualquer asilo de velhos e deixá-los ali abandonados, entregues à sua sorte, a definhar e a sofrer, até que a morte os venha buscar. Segundo a Pordata há dois milhões e meio de idosos no nosso país, 24% da população, e a tendência vai no sentido do aumento destes números, o que faz de nós um irremediável país de velhos.

A propaganda do governo socialista lançou aos quatro ventos grande foguetório sobre a criação de um subsídio de apoio ao cuidador informal. Cuidei de saber de que se tratava. O habitual emaranhado burocrático, a quantidade de papelada e de comprovativos exigidos, a documentação disto e de mais aquilo, o tempo e as voltas que teria de dar, de serviço em serviço, pedindo um comprovativo aqui e uma declaração acolá, para, ao fim e ao cabo, feitas as contas, acabar por não vir a receber nada, COISA NENHUMA, só trabalheira e tempo desperdiçado, sei como estas coisas funcionam e acabam, levaram-me a não ter ilusões quanto ao dito subsídio.