O Dia Mundial de Cuidados Paliativos, data de ação unificada para comemorar e apoiar os Cuidados Paliativos a nível global, liderada pela organização internacional não governamental The Worldwide Hospice Palliative Care Alliance (WHPCA), ocorre este ano sob com o lema “Healing Hearts and Communities”, uma escolha motivada pela vivência global do luto, desencadeada pelos eventos mais críticos dos dois últimos anos – a pandemia e a invasão Russa da Ucrânia.

A Organização Mundial de Saúde considera mesmo os Cuidados Paliativos como uma prioridade da política de saúde, recomendando a sua abordagem programada e planificada, numa perspetiva de apoio global aos múltiplos problemas dos doentes que se encontram na fase mais avançada da doença e no final da vida.

Em Portugal, a alteração do paradigma demográfico, com aumento da longevidade e o aumento exponencial da doença crónica e incurável e as alterações na rede familiar, com estudos recentes a reforçar o crescente aumento de pessoas em situação de sofrimento, com impacto crescente no sistema de saúde e nos recursos especificamente destinados aos doentes crónicos, tornou necessária uma remodelação legislativa no que concerne aos direitos dos doentes, nomeadamente daqueles com necessidades paliativas.

Em 2012 foi aprovada em Portugal a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos (Lei n.º 52/2012, de 5 de setembro) consagrando o direito e a regulação do acesso dos cidadãos aos Cuidados Paliativos, cuidados esses centrados na prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, na melhoria do bem-estar e no apoio aos doentes e às suas famílias, quando associado a doença grave ou incurável, em fase avançada e progressiva, com total respeito pela autonomia, a vontade, a individualidade, a dignidade da pessoa e a inviolabilidade da vida humana.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Da mesma lei resulta ainda a definição da responsabilidade do Estado nesta matéria, com a criação da Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP), a funcionar sob tutela do Ministério da Saúde, sendo os cuidados paliativos prestados por serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), podendo, quando a resposta pública se revelar insuficiente, ser também assegurados por entidades do setor social ou privado, certificados nos termos da lei.

Já em 2016, constituiu-se a 1ª Comissão Nacional de Cuidados Paliativos (Despacho nº 7824/2016 de 15 de junho), iniciando-se assim a regulamentação desta Rede e a implementação de um plano estratégico para a organização dos serviços e formação dos recursos humanos (Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos CP no biénio 2017-2018, aprovado pelo Despacho nº 14311-A/2016 de 28 de novembro).

Em termos legislativos, muito se conseguiu em defesa dos doentes com necessidades paliativas, mas a implementação prática destes direitos nem sempre se revela exequível, surgindo dificuldades na sua operacionalização.

Como se poderá constatar na análise do recente relatório para implementação e desenvolvimento dos cuidados paliativos em Portugal, verifica-se que já existe hoje uma cobertura geográfica correspondente a 100% do território continental (pelo menos um recurso específico por distrito).

No entanto, o mesmo relatório demonstra de forma preocupante que a maioria das equipas não cumpre a dotação mínima de profissionais, estando subdimensionadas para as necessidades assistenciais. Desta forma estamos longe de poder afirmar uma cobertura universal e capaz nesta área dos Cuidados Paliativos.

A escassez de recursos humanos com formação e competências adequadas à prestação destes cuidados especializados compromete a eficiente constituição das equipas. Grandes assimetrias na distribuição geográfica das equipas, quer em regime de internamento, mas sobretudo a nível domiciliário, com o incumprimento frequente da dotação mínima das equipas interdisciplinares, comprometendo o acesso equitativo da população a estes cuidados.A carência de recursos humanos deve-se, não só à escassez de formação específica, mas também à falta de condições para a prestação de cuidados nesta área e à interposição de barreiras económicas para que as equipas funcionem em pleno.

A formação Graduada mantém-se parca ou inexistente, pois apenas dois cursos (medicina e enfermagem) incluem unidades curriculares especificamente dedicadas aos Cuidados Paliativos, mas é fundamental aprofundar a formação e especialização nesta vertente dos cuidados de saúde. Se a Enfermagem já tem a especialidade de enfermagem em Cuidados Paliativos, no campo médico a Ordem dos Médicos já aprovou uma competência, mas é um imperativo avançar para a especialidade de Medicina Paliativa.

A nível pós-graduado tem-se observado um crescimento, sobretudo pela disponibilização de cursos de formação básica/ intermédia por parte das Administrações Regionais de Saúde, e avançada por parte das instituições universitárias.

Esta carência de formação, poderá influenciar o não reconhecimento e referenciação precoce do doente paliativo, em detrimento da otimização dos cuidados prestados e do seu bem-estar global.

Existe um hiato entre o que está legislado e o que acontece no terreno, que tarda em ser colmatado.

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) não dispõe das respostas suficientes para responder às necessidades daqueles que carecem de cuidados paliativos, embora a evolução tenha vindo a ser positiva.

A consciencialização deste deficit encontra-se plasmada no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) como programa de aplicação nacional, com um período de execução até 2026, que visa construir ou alargar 20 unidades de internamento de cuidados paliativos, para dar resposta a 400 doentes.

Torna-se imperativo melhorar as referenciações dos doentes paliativos, desburocratizando-as e diminuindo o tempo de resposta, o que evitará o cenário atual, no qual muitos doentes só têm acesso a cuidados paliativos nas últimas horas de vida. A questão da referenciação, que interliga com reconhecida insuficiência de camas de internamento e as carências nos Cuidados Paliativos Domiciliários da RNCP, cria fenómenos indesejáveis de baixas taxas de ocupação de camas disponíveis, sobretudo no setor social, ou de orientação destes doentes para respostas menos adequadas em Unidades de Cuidados Continuados como as Unidades de Longa Duração,

Assim, fará todo o sentido existir uma “partilha de responsabilidade e competências” entre os vários setores, e que as entidades da economia social possam e devam desenvolver respostas complementares aos sistemas públicos de Segurança Social e Saúde, uma vez que têm desempenhado um papel incontornável para ajudar a suprir as necessidades dos setores sociais mais frágeis da sociedade, contribuindo para a construção de um mundo melhor.

A complexidade do sofrimento e a combinação de fatores físicos, psicológicos e existenciais na fase final da vida, obrigam a que a sua abordagem, com o valor de cuidado de saúde, seja sempre uma tarefa multidisciplinar, que congrega, além da família do doente, profissionais de saúde com formação e treino diferenciados, voluntários preparados e dedicados e a própria comunidade.

O cuidador informal surge como aliado fundamental, com a família a ser parte integrante do núcleo de cuidados paliativos, sobretudo quando estes familiares assumem o papel de cuidadores informais.

Decorrente dos cuidados prestados ao doente paliativo, o familiar cuidador é constantemente confrontado com uma série de constrangimentos, dificuldades e necessidades que emergem do novo papel assumido, com fortes implicações na sua vida pessoal, familiar, social e mesmo a nível laboral, pelo que implica uma grande capacidade de adaptação e gestão.

Os cuidadores informais familiares encontram-se perante uma situação de extrema complexidade, na qual têm de lidar com uma dupla confrontação: por um lado, a dificuldade em lidar com o conhecimento antecipado da perda do ente querido, que poderá gerar sentimentos de raiva, choque, descrença, impotência e depressão; por outro lado, os constrangimentos, as responsabilidades e dificuldades que decorrem de assunção do papel de cuidador.

Em julho de 2019 foi aprovado o Estatuto do Cuidador Informal, que regula os direitos e os deveres do cuidador e da pessoa cuidada, estabelecendo as respetivas medidas de apoio que devem passar por colmatar um vasto leque de necessidades, como psicológicas e emocionais, materiais e financeiras, físicas e espirituais e informação e conhecimento.

Na excecionalidade do presente contexto epidemiológico criado pela pandemia COVID19 e a guerra na Ucrânia, em que muitas famílias perderam entes queridos, devendo, apesar da perda afetiva, prosseguir com a sua vida, o lema internacional dos cuidados paliativos – “Healing Hearts and Communities” deve estar assegurado garantindo cuidados holísticos e de qualidade, a quem parte, mas com um foco comunitário, assente na proteção dos sobreviventes e no desenvolvimento da sua esperança num tratamento digno e humano para o seu prospetivo futuro.

A operacionalização deste lema requer, contudo, adaptações imprescindíveis, para fazer face a novos desafios a que deveremos dar resposta neste contexto, sendo importante fomentar a partilha de boas práticas e criar espaços de debate sobre as expectativas e ambições para o futuro.