O Serviço Nacional de Saúde (SNS) Português foi construído à imagem do National Health System (NHS) britânico. Só que a organização anglo-saxónica estava assente na especialidade de medicina geral e familiar, o chamado GP, cujo reconhecimento existia. Explicando melhor, no pós guerra, os britânicos desenvolveram um sistema de acesso aos serviços de saúde que tinha obrigatoriamente de passar pelo GP. Seria depois este médico que orientava o doente para o especialista, via um sistema de comunicação eficaz. E sempre foi assim, tanto no sector público como no privado.

Em Portugal, o SNS data dos finais dos anos 70, mas a especialidade de Medicina Geral e Família (MGF) só existiu a partir do final dos anos oitenta. Ou seja, nos primórdios do SNS havia clínicos gerais, mas não a especialidade de MGF. Quis-se copiar o NHS, mas sem especialistas em MGF. Este facto, esquecido ou pouco referido, inquinou a confiança nos centros de saúde.

Em paralelo, o SNS a nível hospitalar organizou-se bastante bem, e tinha as especialidades, o que fez com que os doentes reconhecessem os hospitais como o local onde havia especialistas. Portanto, era lá que queriam ser tratados. E qual seria o acesso? O serviço de urgência, que, no nosso país,  sempre teve portas abertas a todos.

Esta liberdade de acesso aos hospitais, via serviço de urgência, levou a um movimento assistencial de urgências sem paralelo em qualquer país ocidental. Provavelmente a este consumo de urgências, também não será alheia a época de liberdade recente em que vivíamos.

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Voltando aos hospitais e urgências livres, o resultado foi o consumismo de cuidados de saúde. Os serviços de urgência passaram a ser uma espécie de grande superfície e loja de conveniência, onde se podia ir por qualquer motivo e  a qualquer hora do dia.

A consequência desta situação foi a sobrelotação dos hospitais. Houve várias tentativas de limitar o acesso às urgências hospitalares, mas que só funcionaram temporariamente. Estando o hábito de recorrer livremente aos serviços de urgência hospitalares instalado, nunca houve organização, ou força política, capaz de travar este movimento. A verdade é que os especialistas hospitalares  existiram antes dos especialistas em MGF.
Acresce que esta situação nunca foi travada pelos próprios hospitais, porque os poderia beneficiar, pelo menos em teoria, uma vez que seriam remunerados pelos actos médicos que praticavam. Só que o Estado nunca foi bom pagador e os hospitais ficaram cheios de dívidas.

Por outro lado, decidiu-se colmatar a sobrelotação dos hospitais com a construção de mais hospitais sem fortalecer suficientemente os cuidados primários, quer com especialistas de MGF, quer com estruturas físicas de qualidade. Esta política agradou aos autarcas que ficavam com hospitais novos nas suas autarquias.

Estava criado um círculo vicioso: utentes habituados a frequentar urgências, sem prescindirem deste hábito, nem serem obrigados a tal. Autarcas, que geram votos, a reivindicarem urgências hospitalares a funcionar 24 horas dia, 365 dias nas suas autarquias. Em consequência, o SNS ficou assente em hospitais, em vez de privilegiar os cuidados primários de saúde. Qualquer serviço, ou sistema, de saúde tem de assentar nos cuidados primários e não nos hospitais, que devem ser o topo da pirâmide.

Desde o início dos anos 90 que várias comissões técnicas de saúde identificaram esta questão e fizeram propostas de redimensionar as urgências hospitalares. Mas a política falou sempre mais alto, tanto à esquerda como à direita.
Por sua vez, quando os novos hospitais privados surgiram, todos disponibilizaram serviços de atendimento urgente e permanente de livre acesso. Foi assim mantido, e incentivado, o modelo de consumismo de urgências.
Como resultado de tudo isto chegou-se à actual situação de rotura. É impossível ter  médicos para todas as urgências que existem no país. E, independentemente de haver ou não falta de médicos em Portugal, é impossível dimensionar as necessidades de médicos de um país em função do número de urgências a nível nacional.
Será a presente situação de rotura de múltiplas urgências capaz de inverter a situação?
Estaremos condenados a não sermos capazes de construir a casa pelos alicerces?