Talvez por estarmos esgotados pela atenção que prestamos à nossa reputação internacional em matérias de desporto, de propriedade horizontal, de fritos estaladiços, e de artes, que nos honram colectivamente, não foi dado cuidado devido ao relatório recente que, à semelhança da Macedónia do Norte, da Bélgica e do Panamá, nos caracteriza como uma democracia com problemas. Esses problemas estão diagnosticados, e aliás a falta de diagnósticos não é um problema. Os verdadeiros problemas são a nossa falta de interesse pelos problemas, e também o nosso interesse pelos diagnósticos.
Existem opiniões muito variadas sobre a democracia ou a sua ausência, ou sobre as aflições que a podem afligir; mas a esperança de que se possa fazer colectivamente alguma coisa quanto à questão da democracia não tem até agora dado frutos. Considerada a abundância de soluções disponíveis, e o número de especialistas avençados, não parece útil aventar mais soluções. Podemos não obstante permitir-nos uma hipótese metafísica menos profunda: a de que o sintoma que melhor exprime a nossa posição internacional pouco lisonjeira em matérias de democracia é a utilização pública que fazemos do adjectivo ‘democrático.’
A contumácia no seu emprego promete distinções conceptuais entre ‘estado de direito’ e ‘estado de direito democrático’; ‘vida’ e ‘vida democrática’; e ‘liberdades’ e ‘liberdades democráticas.’ Não se percebe porém quais possam ser essas distinções; não se percebe aquilo que o adjectivo ‘democrático’ acrescenta a expressões no geral satisfatórias. Não podemos portanto levar a mal que um uso tão reiterado do adjectivo ‘democrático’ levante a suspeita de que possa ali haver gato. Qual será porém a natureza do felino? A nossa hipótese metafísica permite pensar que sempre que usamos a palavra ‘democrático’ em expressões dessas se possa estar, apesar da nossa vontade, a indicar que se teme que a cerimónia não sirva para muito; ou que pelo menos não se sabe para que possa servir. O adjectivo ‘democrático’, usado para transmitir piedade em público, será antes um indicador de nervosismo acerca da democracia.
A democracia é um meio e um arranjo prático que permite calcular razoavelmente o que se vai passar em certos domínios, e que permite liberdade continuada no que diz respeito a modos de vida que se tornaram familiares. Está ligada a uma ideia de previsibilidade e persistência que não é muito diferente da convicção de que tudo indica que o sol nasça amanhã, e que os nossos pais ou mães nos venham buscar esta tarde à creche. O termo ‘democrático’, acrescentado a distinções políticas, foi provavelmente pensado com a melhor das intenções para sublinhar essas convicções razoáveis sobre a persistência das coisas. Mas a frequência e a unção no uso da palavra ‘democrático’ mostram ansiedade acerca dessas convicções. Numa altura em que nos voltaremos a precipitar em comemorações da democracia, pode ser proveitoso lembrar que os protestos de amor verbal por Atenas são aquilo que define a Macedónia do Norte.