Há uns dias assisti a uma conferência sobre saúde que me deixou perplexo. Alguns intervenientes da área da saúde indignavam-se com o que consideraram ganhos extraordinários da indústria farmacêutica. Questiono-me até se consideram que esta trabalha pro bono para o Estado. Argumentavam que a despesa está em crescimento acelerado, mesmo quando o peso do investimento da saúde no PIB Português é muito semelhante ao do resto da Europa. Para além disso, pareciam insinuar que ganhar dinheiro era imoral, quer por ideologia, quer por sugerirem que a indústria farmacêutica o faz de forma quase ilegal, pressionando os decisores políticos com notícias e indignação social. Alguns destes intervenientes eram, provavelmente, os mesmos que congratularam a indústria farmacêutica por ter permitido que o mundo voltasse à normalidade pela descoberta das vacinas COVID. Fraca memória…

Analisemos agora os factos, que os intervenientes a que me refiro desconhecem ou que não lembraram publicamente.

É verdade que o peso do investimento da saúde no PIB Português é semelhante ao do resto da Europa. Em Portugal, não obstante, o investimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com medicamentos tem vindo a perder peso relativo ao longo dos anos no montante global público despendido em saúde. Em 2022 representava 19,9%, quando em 2010 este valor era de 21,2%.

O Investimento público em medicamentos representa em Portugal 83% do valor médio per capita da União Europeia, sendo o peso do investimento com o medicamento (e não da saúde como um todo) no PIB muito inferior ao do resto da Europa: 0.91% em Portugal versus 1.16% na média europeia.

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É, igualmente, verdade que o Investimento do SNS em medicamentos, só em 2021, e em contexto de pandemia,  ultrapassou o valor registado há 12 anos.

Importa ainda dizer que os anos de 2022 e 2023, para os mais esquecidos,  continuam a ser marcados por uma acentuada recuperação da atividade assistencial no SNS, que foi suspensa durante a pandemia. Ora, este aumento tem um necessário reflexo nos medicamentos prescritos e no respetivo investimento do SNS.

A maior parte da população desconhecerá ainda que a indústria farmacêutica devolve ao Estado (paga, portanto ) quase 12% do investimento anual com o medicamento, todos os anos,  sob a forma de taxas, que apelidamos por “rebate, cap ou pap”.

Também o fim das parcerias público-privadas (PPP) em hospitais como o de Loures, Braga ou Vila Franca de Xira , contribuiu para o crescimento da despesa em cerca de 80 milhões de euros. Este valor já estava inscrito no orçamento da saúde, mas noutra rubrica, passando, depois a ser contabilizado no SNS,  à medida que as PPP terminavam, representando 3% a 4% do investimento com medicamentos a que os referidos intervenientes se referiam. Em suma, é preciso ter em conta estes valores (que somados representam cerca de 15% da despesa atual) quando fazemos considerações vis-à-vis sobre a despesa do Estado com o medicamento.

Portanto, estamos a investir o mesmo que nos anos da troika mas a tratar mais doentes e com doenças mais “agressivas” e raras (cujo custo dos medicamentos é muito mais elevado). O acesso atempado aos medicamentos traz benefícios para todos.

Mas… voltando à despesa do Estado com o medicamento, devemos sempre recordar que é um tema demasiado importante para sobre ele haver conclusões apressadas. Pedindo emprestado o título das crónicas que nos anos 80 Miguel Esteves Cardoso escrevia no semanário Expresso, é importante nunca esquecermos de procurar a “causa das coisas”.