Entra-nos pelos ouvidos diariamente a preocupação com a crise da justiça. Mas ninguém fala de uma outra justiça, a justiça de prevenção dos conflitos.

Numa época em que tanto se fala de avaliação da aplicação da lei, nunca ninguém se deu ao trabalho de contabilizar o número de processos judiciais a que deu origem a chamada desformalização da titulação (Simplex), nem o número de deficiências nos títulos apresentados a registo, com o consequente maior trabalho de qualificação dos conservadores, agora também incumbidos de titular.

Hoje, advogados, solicitadores e conservatórias titulam reconhecimentos de assinatura, procurações, compras e vendas de imóveis, mútuos de bancos, hipotecas; os atos societários, para os quais basta em geral a forma escrita, e contratos de trabalho até contabilistas fazem.

Mas aos advogados e solicitadores, que hoje, na prática, titulam quase todos os atos que eram exclusivos dos notários (antes de 2006 os atos societários, antes de 2009 os atos relacionados com imóveis), com especial enfoque para os atos relacionados com a banca, não têm que ter instalações próprias, não têm competência territorial (os notários não podem praticar atos fora dos concelhos para os quais lhes foi concedida licença), podem associar-se com os advogados que quiserem e em breve poderão constituir sociedades multidisciplinares (os notários só se podem associar com outro notário que tenha licença no mesmo concelho).

Eis que advogados e solicitadores, em concorrência com notários, passaram a agrupar-se e a fazer convénios com a banca: prestam serviço gratuito ao banco de análise de taxa de esforço e em contrapartida fazem o título e cobram ao cliente por ele: um dos advogados do grupo faz o título de compra e venda e mútuo com hipoteca e outro do mesmo grupo representa o banco, que obriga o cliente, se quiser que o empréstimo lhe seja concedido, muitas vezes contra a sua vontade, a ir fazer o contrato àquele grupo de advogados e solicitadores (isto até já aconteceu com notários!). Onde está o Banco de Portugal? Onde está a Autoridade da Concorrência?

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As conservatórias cobram pelos títulos preços abaixo de custo, não cobram IVA e têm um prazo para registar de 10 dias, que vai em muitas delas em atraso de vários meses; mas mais grave ainda: há conservatórias de registo comercial com atraso de três meses, e a sociedade fica à espera para alterar assinaturas no banco e fazer pagamentos… Porque será? Onde está o IRN, que anuncia com pompa e circunstância a transição digital?

A desformalização iniciada por Sócrates com o Simplex, que retirou competências exclusivas aos notários para “defender a concorrência”, sempre com a justificação em recomendações da OCDE, mas na realidade por cedência a pressão de grupos interessados (note-se que o sistema que existia em Portugal continua a vigorar na maioria dos países da UE), veio criar práticas anti concorrenciais muito piores do que as anteriormente existentes e muito maior prejuízo para os consumidores.

Os sucessores políticos de Sócrates decidiram agora fazer uma reforma estrutural das profissões regulamentadas, justificando-o com exigências da OCDE e do PRR, tudo com o objetivo, argumentam, de fomentar uma sã concorrência.

Ora, qual avestruz, ignoram que não é a regulamentação das profissões que distorce a concorrência, mas o compadrio, que desemboca nas situações acima referidas.

A regulamentação de certas profissões existe para defender o consumidor de um serviço altamente especializado cuja qualidade ele em geral não consegue aferir sozinho, o que parece ser menos importante que a pseudo defesa da concorrência.

E vem a Ordem dos Advogados insurgir-se com o facto de os atos próprios dos advogados (diploma que aliás ressalva o regime de outras profissões jurídicas: os notários já o podem fazer) deixarem de ser exclusivos (consulta jurídica e elaboração de contratos). Para os atos notariais, nem uma palavra…

E a Ordem dos Notários considera que está tudo bem.

Como o PS considera que está tudo bem.

Repetição, até à exaustão, até que todos nos convençamos de que está tudo bem.

Se quiser saber mais leia o livro da minha autoria, Contra-Reforma do Notariado e dos Registos: Um Erro Conceptual, em https://lnkd.in/dHqfMD9G